O pedido chega e MC Rebecca abre um sorrisão e logo transforma a bancada de maquiagem do estúdio numa mesa. Tem feijão, arroz, bife, batata frita e ovo. Enquanto corta um pedaço de carne — vermelha —, a cantora, de 22 anos, fala animadamente sobre a música com participação de Elza Soares que lançaria no dia seguinte. “A coisa tá preta” mostra a veia sambista da carioca, que ganhou fama, 3,6 milhões de seguidores no Instagram e milhões de visualizações no YouTube com funks em versões light e proibidas.
Com versos contestadores, (“Natural do Rio de Janeiro, onde preto favelado é destaque só no mês de fevereiro ou na página policial. Prende neguinho, a gente arruma um culpado e sai na capa do jornal”), “A coisa tá preta” é, na visão da MC, algo que a coloca em outro patamar na indústria. “Saí da minha zona de conforto com essa música, mas não era um universo completamente desconhecido para mim. Durante uma década, fui passista do Salgueiro, uma das maiores agremiações do carnaval. Acho que vão me olhar com mais respeito por eu estar ao lado da Elza. Para ela, também deve ter sido uma experiência. Estou chegando agora na indústria fonográfica, e ainda canto funk proibidão.”
O clipe do single, que estreou na segunda-feira, é a menina dos olhos da cantora. Além de Elza, sua mãe, Cristina, e a filha, Morena, de 3 anos, protagonizam as cenas. “Mamãe topa minhas loucuras”, diverte-se. “Ela me ajuda à beça. Tive minha bebê cedo, sozinha, aos 19. Em seguida minha carreira deslanchou. Tive todo o apoio em casa.”
Cria do Morro São João, no Engenho Novo, Rebecca acredita que suas vivências a transformaram na mulher determinada e sincera que é. Aos 11 meses de vida, quase foi parar no conselho tutelar quando sua mãe biológica foi presa por roubo. Sua guarda ficou com Cristina, sua tia, e o avô materno, morto em 2018. Foi uma infância simples, porém feliz. “Claro que a realidade era dura. Tiroteios eram constantes, e existia o medo da bala perdida, mas não faltava amor. Quando a música surgiu, enxerguei uma oportunidade de melhorar nossa situação. Às vezes, me sinto culpada de não ser uma mãe presente. Perdi passagens importantes do crescimento da Morena. No entanto, consegui tirar minha família da favela, o que me deixa bastante aliviada. Moramos no Recreio dos Bandeirantes.”
Com a mãe biológica, não existe uma relação muito profunda. “Mas há respeito e carinho por ela, que não deixa de frequentar meus aniversários e outras datas festivas. Entretanto, não posso afirmar que há aquela coisa de mãe e filha.” Com Morena, a história é outra: “Minha menina é pequena demais para ter noção da proporção do que eu faço. Mas conhece as coreografias. Ah, e também adora um celular. Não me dá qualquer tipo de trabalho. Dorme a noite inteira.”
Às gargalhadas, Rebecca conta que Cristina ficou um tiquinho assustada ao vê-la treinando para gravar sua primeira música, “Cai de boca” (sim, é sobre sexo oral), em meados de 2018. “A vontade de cantar era latente. Minha ex-mulher, Suellen, sabia desse desejo e percebeu uma chance de torná-lo real ao ouvir uma música composta pela Ludmilla. Como eram amigas, ela falou para a Lud que aquele som seria perfeito para mim. Coloquei minha voz, porém ninguém queria produzir. Bati na porta de vários DJs, e o único que topou foi o Zebrinha, que incluiu a faixa em seu set mixado. A minha, no entanto, se destacou e ele testou colocá-la solo. Deu certo”, relembra.
O boom veio na Gaiola, famoso baile funk que acontece na Penha. DJ Rennan soltou o pancadão para uma multidão. “Estava exausta de tanto sambar na quadra do Salgueiro e não quis acompanhar Suellen no fervo. Minha ex foi e pediu ao Rennan essa chance. Na mesma noite, ele tocou diversas vezes a música. Na sequência, me convidou para cantar no baile para um público de 25 mil pessoas. Foi o auge.”
De rainha das passistas do Salgueiro, de repente, Rebecca virou uma aspirante a estrela do batidão. Vieram os pedidos para shows e o repertório foi crescendo. Seguindo a linha de proibidões, ela lançou “Coça de Rebecca”. “Nunca passou pela minha cabeça que poderia existir preconceito contra essa vertente do funk. Ao frequentar certos lugares, notei que a sociedade enxergava como um problema uma mulher preta e favelada falar sobre sexo de forma explícita. Quero muito ter liberdade de cantar o que eu quiser. Os homens nunca tiveram problema em colocar o sexo oral em pauta. E a gente não pode tocar no assunto? ‘Cai de boca’ é justamente sobre isso.”
Até o lançamento de “A coisa tá preta”, Rebecca estava totalmente focada no funk. No fim de outubro, colocou nas plataformas de streamings “A preta é braba”, com participação da rapper Karol Conka. Em 2019, foi assunto com os hits “Sento com talento”, “Deslizo e jogo” e “Repara”. Mas nada se compara ao sucesso de “Combatchy”, projeto de Anitta que contou também com Luísa Sonza e Lexa. O clipe, inclusive, foi eleito o melhor do ano na última edição do Prêmio Multishow.
“É uma mulher forte, independente e muito talentosa. A nossa amizade só cresce. Espero trabalhar mais com ela. Vejo na Rebecca um potencial enorme e sei que só vimos o início do que ela tem para mostrar”, observa Anitta, que já ficou com a colega no passado. “Porém, não aconteceu nada além do beijo. Hoje, ela é quase uma irmã para mim”, acrescenta a MC.
Para a cantora, não existe tabu. Sua bissexualidade é aberta, e ela diz que não usa a condição para se promover, como já acusaram por aí. “Sempre gostei de meninos e meninas. Na infância, dei o primeiro beijo numa garota no banheiro da escola. Sou livre, independente e faço o que bem quiser. É tudo muito natural. Aos 17 anos, contei para minha família e foi a maior polêmica.” Hoje, Rebecca está namorando o empresário Lucas Godinho, dono de uma empresa de estacionamento e de uma academia de artes marciais. “Fiquei com ele pela primeira vez no dia 12 de junho. Não transava desde março por causa da pandemia. Meus brinquedos eróticos que me salvaram na quarentena”, diz. “Fora isso, de vez em quando, dou umas chamadas no bofe. Ele não é muito transante, mas o chamo para agir. No geral, não tenho razões para reclamar”, emenda.
Falante, Rebecca não se esquiva nem da treta virtual envolvendo sua fada madrinha, Ludmilla. “Não nos falamos mais, porém tenho carinho e respeito pela Lud. Tudo que eu sou devo a ela. Não houve uma discussão ou qualquer tipo de briga. Nunca entendi a razão de nosso afastamento.”
No fim da conversa, a MC afirma que não pensa muito no futuro. “Quero conquistar o Brasil”, diz. “Não é a hora <QL>de cogitar uma carreira internacional, mesmo já tendo feito shows na Europa e nos Estados Unidos. O fato é: gravei com a Elza Soares. Eu posso tudo.” Pode mesmo.