— Eu não costumo me analisar. Deixo isso pra vocês, os especialistas — brinca o bamba, soltando uma risada entre uma frase e outra.
Homenagem:'Uma das maiores emoções da vida', diz Martinho da Vila, enredo da Vila Isabel em 2021
Aos 82 anos, com o disco “Rio: Só vendo a vista” recém lançado e prestes a ser homenageado pela sua escola de samba do coração, a Unidos de Vila Isabel, Martinho é visto por intelectuais e artistas como um dos maiores mentores da cultura brasileira. A carnavalesca Rosa Magalhães, campeã do carnaval de 2013 com o enredo composto pelo cantor, destaca um ensinamento do bamba que tem seguido neste ano tão conturbado para a cidade do Rio de Janeiro.
55º álbum da discografia do músico, "Rio: Só vendo a vista" é repleto dessas "aulas" de Martinho. Pode-se aprender por exemplo sobre a história do Rio de Janeiro na canção "Vila Isabel anos 30", que evoca cenas do bairro de Noel Rosa na década de 1930. Ou então, na canção "Ginga do amor", tomar notas da lição que o bamba mais gosta de cantar — a importância de um olhar afirmativo pra vida: "Mesmo sem malemolência / O negócio é sambar", diz um trecho da letra.
Essa busca pela alegria mesmo na adversidade é destacada pelo professor e historiador Luiz Antonio Simas dno texto de apresentação do álbum. Segundo ele, Martinho é detentor da sabedoria definida numa frase do sambista Beto Sem Braço: “o que espanta miséria é festa”. Como sintetiza Simas, a "lição do mestre Martinho é um candeeiro que, aceso no respeito ao passado, ilumina o presente e aponta o caminho do futuro. Por aqui, afinal, não se faz festa porque a vida é fácil, mas pela razão inversa”.
'Cronista da história carioca'
As canções do compositor da Vila Isabel são vistas pelo poeta e imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) Geraldo Carneiro como verdadeiras aulas de história. E não só da “História” oficial, dos livros, mas da sabedoria popular que circula dos botequins às esquinas, igrejas e terreiros.
Artigo: Martinho da Vila, um sambista que pensa o Brasil
Segundo Martinho, mais do que dos livros, a sabedoria acumulada que ele carrega vem da sua “vivência”. É da fonte do léxico popular que ele bebe para buscar inspiração. São imagens usadas, por exemplo, por sua mãe (“uma analfabeta culta”, em suas palavras), que dizia pra ele evitar dívidas, pois cada pessoa que você deve é uma “caveira” que passa a te assustar – mote esse que virou o samba “Caveira”, gravado em seu novo disco.
Geraldo Carneiro dá um exemplo sobre como funciona a filosofia-bamba do mestre da Vila. Recentemente, jogando conversa fora com o sambista por telefone, Geraldinho ouviu a seguinte tirada: “Devo ter feito alguma coisa errada para estar tanto tempo trancado em casa”, disse Martinho, em referência ao isolamento social, com seu incansável espírito de transformar as dificuldades em riso e alegria.
— Na hora senti que aquela frase dava samba – conta Carneiro, aos risos. — E vai ser esse o tema da nossa música nova.
Segredo da felicidade
Aliás, é a última parceria de Martinho com o poeta que batiza o disco recém-lançado do bamba de Vila Isabel, “Rio: Só vendo a vista”. Inspirado no Rio de Janeiro, o músico apresenta em canções inéditas, como “Umbanda nossa”, e regravações, como “Menina de rua”, as belezas e mazelas da cidade.
— O Rio as vezes é um grande abacaxi — diz Martinho da Vila citando um verso da parceria com Carneiro — Você vê esse prefeito (Marcelo Crivella), ele é um ladrão daqueles bem organizados. Mas não se organizou tão bem.
Recolhido em seu apartamento na Barra da Tijuca, o compositor aguarda ansioso pela vacinação contra a Covid-19 para finalmente “voltar pra quadra da Vila Isabel, parar num bar pra tomar um chope e abraçar muito meus amigos”. Ele prevê uma explosão para o carnaval pós-pandemia (“dizem que o carnaval depois da gripe espanhola foi fortíssimo”).
E a receita para manter a esperança, o bom humor e as risadas em dia, ele garante que é simples: basta não pensar em coisas negativas.
— Se alguém me pergunta “Martinho você já teve dor de barriga?” eu preciso dar uma parada pra pensar. E não é porque nunca tive, é claro que sim. Mas eu não curto as desventuras, as tristezas, as dores, eu deleto tudo e fim de festa — ensina o sambista.