RIO — Nunca mais haverá um time como esse. Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Carlinhos de Oliveira, Sérgio Porto, Antonio Maria... Nascidos na primeira ou segunda década do século XX, todos se firmaram na imprensa em 1950 e 1960, iniciando o que se considera hoje uma era de ouro da nossa crônica. Aliás, uma não. A Era de Ouro da Crônica.
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Três novos lançamentos traçam um panorama original dessa produção, que ainda ecoa nos dias de hoje. “Os sabiás da crônica” (Autêntica) reúne pela primeira vez os nomes citados acima (com exceção de Antonio Maria), num intercâmbio que costura a diversidade de vozes em uma espécie de romance de formação. “A fina-flor de Stanislaw Ponte Preta” (Companhia das Letras) concentra-se, como o título indica, no heterônimo de Sérgio Porto. Por fim, “Vento vadio” (Todavia) traz nada menos do que 132 textos inéditos de Antonio Maria, um cronista ainda pouco editado em livro.
Publicados quase que simultaneamente, as antologias nos ajudam a entender uma época e o seu contraste com a atualidade. A síntese mais famosa dessa geração é uma foto feita em 1967, na cobertura de Rubem Braga, e que estampa a capa e serve de mote para “Os sabiás da crônica”, projeto idealizado pela editora Maria Amélia Mello. É a imagem de um outro Brasil, em preto e branco: os cronistas que hoje aparecem na antologia posam de terno e gravata para a câmera para celebrar o início da editora Sabiá, fundada por Sabino e Braga.
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Os “sabiás” já são bem conhecidos em edições individuais. Só que um sabiá sozinho não faz verão, como lembra o organizador do livro, Augusto Massi. Na nova publicação, que amarra 15 textos de cada autor, eles acabam “conversando” entre si. Em determinado momento, Fernando Sabino lembra de quando emprestou uma crônica a Braga, em um dia em que faltou inspiração ao amigo. Anos depois, quando chegou a vez de Sabino ficar sem ideias e pedir ajuda, Braga lhe devolveu a mesma crônica. Massi, aliás, montou a antologia de forma com que o último texto de cada autor contivesse uma deixa para o outro retomar.
A leitura do conjunto também enfraquece o clichê de que estes cronistas se limitaram ao impressionismo despolitizado. Ao escrever sobre uma apresentação de Bidu Sayão, Braga se espanta com a falta de negros no Teatro Santa Isabel, que ironicamente possui uma placa em bronze celebrando a abolição. Ele encerra a crônica com uma frase que registra o mesmo que os discursos antirracistas da atualidade: “Velho Nabuco, há muitas abolições a fazer ainda”. Até mesmo a postura festiva e bon vivant do grupo pode ser vista como uma forma de resistência em tempos sombrios.
— Esses autores não paralisaram, continuaram tentando viver e ser feliz enquanto a felicidade desaparecia na ditadura — lembra Massi. — Fico feliz que esses três livros sobre a geração de ouro saiam agora, porque a situação daquela turma era semelhante à desses jovens cronistas de hoje. Nomes como Gregorio Duviver e Antonio Prata, que vão para a linha de frente com bom humor e ironia.
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Como “capital da crônica”, o Rio é o cenário máximo dos três livros. A cidade possibilitou a efervescência de “sabiás”, e não apenas por suas características culturais e geográficas. Foi justamente nos anos 1950 que surgiu uma nova expansão de revistas. Havia ainda 20 jornais diários, alguns com duas edições.
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Sete décadas depois, o ritmo da vida mudou, mas os leitores continuam “respirando” com os cronistas. Os sabiás contemporâneos agora têm a concorrência das redes sociais, em que todo mundo é um cronista em potencial com seus “textões”. Muitos dos novos cronistas, inclusive, vieram de lá.
— Tudo interfere na crônica, e com certeza o cinematógrafo e o carro fizeram com que aumentasse a diferença do texto de João do Rio, que viveu essas urbanidades, para o de José de Alencar — diz Joaquim Ferreira dos Santos, cronista que viveu essa atividade antes da internet e que continua a vivendo nas páginas do GLOBO. — Seja no papel, seja numa plataforma digital, é preciso atualizar os verbos dessa conversa com quem lê.
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— Ódio não dá crônica, dá artigo, discurso, manifesto — diz.
Menino de Copacabana, Sérgio Porto criou Stanislaw Ponte Preta para fazer o retrato dos costumes da Zona Norte. Hoje, talvez muitos o acusassem, de forma simplória, de não ter lugar de fala para retratar os tipos que povoam suas crônicas. A explosão dos textos em blogs e redes sociais, vale lembrar, ajudaram a dar visibilidade a vozes que vieram de espaços periféricos — e que agora retratam outras realidades. É o caso de cronistas como Anderson França, sucesso no Facebook com seus textos sobre a periferia do Rio. Ou José Falero, que acaba de reunir no livro “Mas em que mundo tu vive?” crônicas sobre a vida na periferia porto-alegrense originalmente publicadas na rede.
— Na internet tivemos um espaço que historicamente não conseguíamos — diz. — Não é apenas uma mudança tecnológica, mas de paradigma, que ajudou a crônica e a literatura como um todo a se renovarem e se tornarem mais plurais.
Trechos
De Vinicius de Moraes para Antônio Maria: “Nós éramos os reis da noite. Não havia condição de não nos encontrarmos. Eu tinha conhecido você através de Caymmi, uma noite em que havia festa em minha casa, aí pelo verão de 1950 (...). Não posso esquecer a noite em que Caymmi, convidado por mim, trouxe você a reboque. Eu avaliei seu pé-direito, seu carão de lua e seu corpanzil de lutador de catch — e fui tudo”.
De Antônio Maria para Rubem Braga: “Homens e mulheres sabem, de cor, vários trechos de suas crônicas e gostam de repeti-los, em êxtase, o que encabula um pouco o autor, obrigando-o a levar o copo à boca para cobrir o rosto. Dança mal e é razoavelmente desafinado. Mas gosta de música e sabe distinguir o que é bom do que não serve”.
De Fernando Sabino para Paulo Mendes Campos: “A primeira vez que o vi, ele já era um rapazinho, cabelo caído na testa — e já de copo na mão: o Paulinho, ‘perdido na dramaticidade existencial da poesia’. E eu, outro rapazinho, perdido na dramaticidade existencial da prosa. Numa festa em casa do cônsul inglês em Belo Horizonte, eu havia buscado com a namorada o recanto de uma varanda deserta, para ver se lhe furtava um beijo. E dei com ele ali, copo na mão, sozinho, a conversar consigo mesmo e a atrapalhar-nos com a sua presença indiscreta. Tive de adiar o beijo”.
De Paulo Mendes Campos para Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta): “Era no tempo da gravata, dos sapatos lustrosos, dos cabelos bem-aparados. Sérgio era impecável na sua aparência e só os íntimos o conheciam por dentro, e o por dentro dele era bem simples: uma ágil comicidade de raciocínio e uma pronta sensibilidade diante de todas as coisas que merecem o desgaste do afeto. Anos mais tarde, ele me diria, queixoso: ‘O diabo é que pensam que eu sou um cínico e ninguém acredita que eu sou um sentimentalão’”.