RIO - Não tem muito tempo, Jards Macalé descobriu que “Soluços”, música de seu primeiro compacto, de 1970, conta com quase dois milhões de streams no Spotify. Está certo que a gravação entrou na trilha da novela “Amor de mãe”, mas não deixa de ser um feito e tanto para o artista que sofreu como poucos com a pecha de maldito em boa parte do seu mais de meio século de carreira.
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Fiel à máxima de que “todo ser humano acaba criando a sua lenda, mesmo que não queira”, o artista ainda sim diz achar estranho que a sua “humilde figura de Don Quixote de La Mancha, quando muito Sancho Pança” tenha rendido um volume com mais de 500 páginas. Ao ler o livro, Jards Anet da Silva emocionou-se e riu, ainda mais nas vezes em que se viu confrontado com aquele tal de Jards Macalé, um personagem “anárquico entre aspas, que vai na emoção direta”:
Preparado para encontrar um biografado com uma fama de gauche que o precede, Fred Coelho teve surpresas logo que começou o trabalho:
— O Jards é um cara pontual e organizado, que tem um arquivo incrível. Ele sempre teve noção do lugar que ocupa na história da sua geração e da cultura brasileira.
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Amigo, produtor e parceiro no grupo Dobrando a Carioca, o cantor e compositor Moacyr Luz também foi enganado pela imagem maldita de Macalé:
— Eu marcava oito e meia no aeroporto, ele chegava oito e vinte e ficava tirando onda de que era o mais pontual do grupo.
Altos e baixos
O livro acompanha as desventuras do carioca nascido na Tijuca, que passou a adolescência nas areias de Ipanema (onde herdou o apelido de Macalé daquele que era considerado um dos piores jogadores de futebol de sua época) e que cedo se viu no meio do turbilhão de renovação musical pós-bossa nova.
Aplicado estudante de música na Pró Arte, Jards acabou se misturando a turma dos baianos Caetano, Gil, Bethânia e Gal que desembarcava no Rio para o sucesso. Descolou-se deles na Tropicália e foi sensação em 1969, no Festival Internacional da Canção, com a performática “Gotham City” (“Cuidado! Há um morcego na porta principal!”).
Nos anos 1970, apesar da ditadura, Macalé fez, de fato o que quis. Como artista solo, gravou três LPs ousados e sofisticados, que conjugavam tradição e modernidade sem a preocupação de fixar-se a rótulos: “Jards Macalé” (1972), “Aprender a nadar” (1974, que ele lançou numa performance na barca Rio-Niterói ao fim da qual jogou-se na baía de Guanabara) e “Contrastes” (1977). No entanto, as dificuldades em lidar com as exigências de gravadoras, rádios e contratantes de shows o levaram a um longo período de escassez de espetáculos e discos de canções inéditas (“Let’s play that”, que ele gravou em 1980 acabou saindo apenas 14 anos depois). E a duas tentativas de suicídio.
Novos tempos
Mas em 2021 as coisas são bem diferentes para Jards Macalé. Ele tem três discos para sair: um só com canções de Zé Kéti, gravado em Nova York com o trio do pandeirista Sergio Krakowski; um de inéditas em parceria com o pianista João Donato (que grava em janeiro pelo selo Rocinante) e um de instrumentais, a ser feito para a gravadora Atração.
E homenagens lhe não faltam, como o recente disco “Quero viver sem grilo – uma viagem a Jards Macalé”, da cantora Emanuelle Araújo, e a indicação ao Grammy Latino por “Besta fera” (2019), álbum que gravou, depois de passar por sérios problemas de saúde, com Kiko Dinucci, Tim Bernardes, Juçara Marçal, Rodrigo Campos e outras feras da música dos anos 2010 de São Paulo.
Falando em gerações (ou melhor, degenerações, como ele prefere chamar), Macalé vê a sua como uma que “se cristalizou, bolou fórmulas, ganhou algum dinheiro e não quer mais sair da poltrona para não se incomodar”.
— Já essa nova degeneração é inquieta, eles querem saber o que aconteceu, o que está acontecendo, e querem fazer alguma coisa para acontecer. Eles são bons, não à toa que botaram a Elza (Soares) lá no espaço sideral (com o disco “A mulher do fim do mundo”, de 2015).
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Presente tanto no disco de Elza quanto no de Macalé, Dinucci considera o mestre carioca “o grande herdeiro de João Gilberto”:
— Enxergo o Jards como a sua continuação, na interpretação e na invenção. O próprio João adorava vê-lo tocar. A primeira coisa que me vem à cabeça sobre ele é originalidade e pluralidade, uma facilidade para percorrer vários mundos — observa. — É um camaleão que vai se adaptando por onde passa, mas não de uma maneira passiva. É sempre transformando, sacudindo, desafinando o coro dos contentes.