No mesmo dia em que boa parte dos avós recebia a notícia de que, por pertencer ao grupo de risco da Covid-19, não deveria beijar, abraçar nem conviver com os netos, potenciais vetores de transmissão assintomática da doença, um dos maiores nomes da MPB estava “na estrada” com a única menina de seus dez netos. Naquela sexta-feira 13 (de março) os sinais de terror começavam a pipocar em diferentes cantos do planeta. Gilberto Gil, de 78 anos, desembarcava em Copenhague, na Dinamarca, para gravar o documentário de encerramento da turnê de “OK OK OK”, enquanto no Rio o governador Wilson Witzel decretava a suspensão dos eventos públicos e o fechamento das escolas para tentar conter o avanço do novo coronavírus.
Acostumada a subir no palco com o avô desde 2018 — quando fez backing vocal ao lado da tia Nara nos shows de “Refavela 40” — Flor Gil Demasi, de 12 anos, estava ansiosa para se apresentar na DR Koncerthuset, “uma das melhores salas de concerto do mundo”, segundo Gil. Um dia antes do evento, no entanto, o governo dinamarquês anunciou a decisão de fechar as fronteiras do país e lacrou a casa de shows.
A tristeza tomou conta da banda que, prontamente, anunciou a volta ao Brasil. Filha de Bela Gil com o designer João Paulo Demasi, Flor seguiu as recomendações do Ministério da Saúde e ficou em isolamento com os avós. “Éramos só eu, Flor, minha mulher, Flora, e Nara, minha filha mais velha. Foi um período muito interessante, de conversas profundas. Nara é suave, além de inteligente e engajada. E Flor, uma menina extremamente precoce no sentido dos interesses múltiplos e da capacidade de foco”, diz Gil.
A família do cantor é gigante e, excepcionalmente este ano, passará o Natal sem uma grande reunião. Ele é pai de oito filhos — Nara, de 54 anos, e Marília, de 53, do casamento com a professora Belina Aguiar; Pedro, morto em um acidente de carro em 1990, Preta, de 46, e Maria, de 44, da união com Sandra Gadelha; e Bem, de 35, Bela, de 32, e José, de 29, da atual mulher e empresária Flora. E avô de dez netos — João, de 30, Francisco, de 25, Pedro, de 24, Lucas e Gabriel, de 22, Bento, de 16, Flor, de 12, Don, de 8, Nino, de 4, e Sereno, de 3 — e bisavô de Sol de Maria, de 5 anos, a netinha de Preta. Para todos eles, é uma grande referência de alto-astral e serenidade, mas com Flor, a menina dos olhos azuis, cabelo cor-de-rosa e sorriso largo, a afinidade parece especial. “A sintonia é tanta que, em vez das duas semanas sugeridas pelos médicos, Flor acabou ficando três meses com a gente”, conta, orgulhosa, a avó Flora.
E, como quem respira arte não fica parado, dessa temporada nasceram o EP “De avô para neta” — em que Gil e Flor cantam “No norte da saudade”, “Refazenda” e “Nel blu, dipinto di blu (Volare)” — e uma troca geracional sem precedentes. A garota apresentou ao avô fenômenos pop como TikTok, Jason Mraz e Ariana Grande. E, com ele, aprendeu técnicas de afinação e um pouco mais sobre a obra de Bob Dylan e Pepino di Capri, entre outros.
Para Maria, quinta filha de Gil, que o acompanha na produção dos shows e na coordenação das agendas, a relação entre os autores do EP é de admiração mútua. “Em janeiro, nascem Pina e Roma, as gêmeas de José, meu irmão caçula. Mas, até lá, a Flor é única menina entre os dez netos, o que faz dela um pouco o xodó da família”, diz. Flora endossa a tese e pontua que o vínculo passa muito pela música: “Embora tenha herdado da Bela o gosto pela cozinha, Flor, ao contrário da mãe, que fugia das canções da escola, é afinadíssima. Adora cantar, tocar e fez até uma vaquinha na família para comprar um piano”. Preta vê na sobrinha talento e maturidade raros para a idade. “Ela tem uma luz e uma disciplina impressionantes. Quando tinha 10 anos, fez uma homenagem para mim, no programa do Márcio Garcia,que me levou às lagrimas: cantou “Ver o mar”, tocando ukelele direitinho”, recorda-se.