SÃO PAULO — Diante de uma provável "segunda onda" da Covid-19, o Brasil precisa guiar sua ação estratégica respondendo a muitas perguntas duras. Em encontro virtual promovido pela Faculdade de Medicina da USP com participação do GLOBO, os cientistas Paulo Lotufo e Márcio Bittencourt se juntaram a Ricardo Schnekenberg, da Universidade de Oxford, para responder a algumas delas.
Veja abaixo o que esses e outros especialistas dizem sobre os principais pontos relacionados ao recrudescimento da pandemia no país:
O que é a segunda onda de uma epidemia de Covid-19? A do Brasil já começou?
Não existe uma definição técnica, científica e formal, ainda, para caracterizar quando a primeira onda de uma epidemia cessa e quando a segunda começa. A maior parte dos especialistas consultados pelo GLOBO afirma que prefere usar essa expressão no caso de lugares que conseguiram reduzir a primeira onda a praticamente zero, depois viram a chegada de uma segunda.
Essa queda drástica não ocorreu na maior parte do Brasil, que reduziu o número diário de casos e mortes a um nível ainda alto, depois voltou a vê-lo crescer. Essa dinâmica, além disso, precisa ser vista de forma regionalizada no Brasil, onde a epidemia se distribui de maneira heterogênea.
A discussão sobre segunda onda, por outro lado, preocupa cientistas porque pode desviar o foco sobre o que é mais importante agora: o volume da pandemia voltou a aumentar, não importa o nome dado ao fenômeno.
— A distinção entre primeira e segunda onda é um preciosismo acadêmico sem relevância prática para a população, que está novamente exposta ao vírus — diz o médico Ricardo Schnekenberg, pesquisador da Universidade de Oxford que trabalha na análise de dados e construção de modelos para entender a epidemia.
Como sabemos se o número de casos (e mortes) está subindo ou descendo?
Para ler a tendência da Covid-19 no Brasil, os epidemiologistas olham diferentes conjuntos de dados. Alguns, como monitoramento de sintomas em uma população de pacientes, são rápidos de aferir, mas pouco precisos. Nem todos os que apresentam “síndrome gripal”, que é o conjunto de sintomas que caracterizam a gripe ou a Covid-19, terão sido infectados pelo coronavírus.
Os dados de mortes registradas por Covid-19 são o oposto: mais precisos, porém demoram a se consolidar. Em geral, um caso da doença que foi grave o suficiente para matar foi confirmado por um teste em algum momento, e as mortes têm menos subnotificação que casos leves. Quando um gestor público espera um sinal de aumento nos óbitos por Covid-19 para tomar uma decisão, porém, é tarde demais, porque a transmissão comunitária já está mais intensa.
Outros tipos de dados ficam num plano intermediário, como o monitoramento de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) e o monitoramento de internações novas. Há dados ricos sobre internações em São Paulo, por exemplo, mas muitos municípios não têm estrutura para levantá-los em tempo real.
— Em São Paulo a gente está vendo um aumento de internações e precisa agir como se fosse uma coisa importante mesmo que o sinal seja ruidoso e que talvez a gente esteja avisando demais — diz Márcio Bittencourt, epidemiologista do Centro de Pesquisa Clínica da USP. — Precisamos agir logo, porque o que fazemos agora leva duas a três semanas para ter um efeito perceptível na pandemia.
Onde no Brasil a Covid-19 está entrando num segundo momento de crescimento?
Em muitos casos é preciso olhar município a município, mas Bittencourt, da USP, destaca algumas regiões onde já se vê alguma complicação.
Em São Paulo, apesar do aumento na capital, na Baixada Santista, em Campinas e no Vale do Paraíba, no interior, perto de Araraquara e Bauru, a segunda onda não chegou, ainda.
A região Sul do país como um todo está em alerta. Em Curitiba, o número de casos ativos da Covid-19 já é o pior desde o início da pandemia. Em Santa Catarina, há recrudescimento claro em Jaraguá, Blumenau, Criciúma e Florianópolis. No Rio Grande do Sul, várias cidades estão subindo o nível de alerta, e Porto Alegre já tem alguns hospitais lotados.
Há aumento no Espírito Santo e em alguns lugares do Nordeste, onde muitos municípios não têm estrutura boa de monitoramento. Manaus, a capital que mais sofreu com a Covid-19 no auge da primeira onda, começou a ter uma nova subida de casos, mas mais modesta.
A segunda onda pode vir a matar tantas pessoas quanto a primeira?
Um fenômeno que se observou em alguma medida na Europa e nos EUA é que, naquilo que se chamou de segunda onda, o número de casos registrados subiu muito, mas o de mortes não se elevou no mesmo ritmo.
Especialistas atribuem isso em grande parte a uma melhor estruturação para realizar testes, porque, com um grande número de pessoas fazendo exames, é natural que o número de diagnósticos aumente. A “letalidade real”, porém, número de mortes dividido pelo número de infectados, não necessariamente aumenta, e os números brutos passam a impressão de que a doença está diminuindo em gravidade.
Há outros fatores por trás do fenômeno, como a mudança de perfil etário das pessoas que estão se infectando mais, com muitos jovens, fora do grupo de maior risco, contaminados na segunda leva da pandemia.
— Pessoas mais susceptíveis costumam pegar a doença primeiro e morrer na primeira leva. Uma parte daqueles que são os mais frágeis morreu durante a primeira onda, então há menos deles disponíveis para o vírus infectar e matar agora — diz Bittencourt, da USP.
Será preciso fechar comércio e escolas de novo? Um 'lockdown' está no horizonte?
A expressão "lockdown" é outra para a qual não existe uma definição universal precisa. De modo geral, porém, ela significa fechar a economia e restringir a circulação de pessoas num nível que o Brasil não chegou a fazer. Pesquisadores defendem que se dê prioridade para impedir a abertura de eventos “superdisseminadores” do vírus, como shows e jogos de futebol, mas também a estabelecimentos menores, como bares e academias, que demonstraram ter um papel de disseminação muito intenso.
As escolas, apesar de estarem ligadas em alguma medida à força de disseminação da pandemia, estão sendo tratadas de maneira diferente em muitos lugares.
— Na Inglaterra a gente está agora em "lockdown", mas as escolas e universidades estão abertas — conta Schnekenberg. — Mas é preciso tomar cuidado, porque quando se abre uma escola, existe toda uma economia em torno dela que volta a se movimentar, com transporte, alimentação etc.
O que muitos gestores públicos levam em conta, porém, é que o fechamento de escolas tem o efeito socioeconômico mais nocivo. A interrupção do ensino na pandemia causará uma perda de capacitação que pode resultar em uma queda de 1,5% do PIB global pelo resto do século, estimou a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e qualquer medida para minimizar esse dano deve ser bem-vinda.
— Nós devemos estar nos perguntando o que podemos fechar para poder manter as escolas abertas — diz Paulo Lotufo, epidemiologista da Faculdade de Medicina da USP.
A oferta de leitos é suficiente? Hospitais de campanha precisarão voltar?
Muitos municípios estão ainda com capacidade de leitos para acomodar doentes. Aqueles que tiveram hospitais de campanha desativaram algumas instalações e tentaram reabilitar vagas de UTI em hospitais preexistentes.
Com a queda no número de casos vista até outubro, porém, em geral o número de vagas diminuiu junto dos casos, por isso a taxa de ocupação percentual não caiu em todos os estados. Isso não significa que a demanda por leitos continue tão alta.
— Mas essa desmobilização dos recursos foi uma completa irresponsabilidade, porque ocorreu junto a uma reabertura econômica, e deveria ser o contrário — afirma Ligia Bahia, sanitarista da UFRJ.
Como o aumento de casos já era previsto com a abertura, o ideal seria ter sido já manter em pé a estrutura necessária para acomodar uma eventual segunda onda.
No Rio de Janeiro, o volume de atendimento perdido com incêndio no hospital de Bonsucesso, por exemplo, não foi recuperado ainda.
Será preciso restringir transporte? E fechamento nos locais de trabalho?
Márcio Bittencourt, epidemiologista da USP, afirma que a maneira como se planejaram as restrições de transporte público pode agravar em vez de aliviar a pandemia. Manter o serviço ativo, mas com número reduzido de ônibus e trens, favorece a aglomeração de pessoas.
Uma medida que poderia ajudar a desafogar o transporte público, também, é o escalonamento de horas de entrada e saída dos locais de trabalho. A redução do horário de funcionamento, porém, mais atrapalha do que ajuda, porque também incentiva a aglomeração em momentos específicos.
A discussão sobre fechamento parcial do espaço aéreo é raramente discutida, porque o Brasil ainda é um dos países vistos como epicentro da epidemia. Haveria mais aeroportos estrangeiros preocupados em receber brasileiros do que o inverso.
As vacinas chegarão a tempo de ajudar a deter a segunda onda?
A resposta da maioria dos especialistas a essa pergunta, infelizmente, é um sonoro “não”. Na melhor das hipóteses, uma vacinação começaria dentro de seis meses, e dificilmente até o meio do ano que vem o país já terá testado, aprovado, produzido, distribuído e aplicado as vacinas que nem sequer concluíram a etapa de fase três.
Com muitas metrópoles brasileiras já dando sinais de que estão aumentando internações, e com o exemplo do que se viu na segunda onda europeia e do recrudescimento da epidemia nos Estados Unidos, não há como depositar esperança em vacinas por enquanto.
Como as eleições municipais afetam a Covid-19 agora, e como são afetadas?
Na eleição de primeiro turno, de modo geral, viu-se que políticos que tiveram postura de negação durante a pandemia perderam espaço. Isso se refletiu, segundo analistas políticos, na perda de popularidade do presidente Bolsonaro, que elegeu uma fração pequena dos candidatos que apoiou abertamente. Medidas de fechamento econômico, por outro lado, também são muito impopulares, e é provável que em cidades nas quais a eleição será decidida no segundo turno essa discussão seja evitada, mesmo quando necessária.
Prefeitos que tentam se reeleger ou eleger correligionários são aqueles sob maior pressão, porque precisam tomar decisões agora. Epidemiologistas mais experientes não esperam que isso ocorra.
— Os prefeitos que estão no segundo turno podemos esquecer — diz Lotufo, da USP, que considera os candidatos à reeleição uma causa perdida. — Para os prefeitos que já estão eleitos meu conselho é que já estejam trabalhando com prioridade na questão da Covid-19.
Que impacto terão as festas de fim de ano? Elas devem ser canceladas?
A importância cultural que os brasileiros dão ao Natal e às comemorações de Ano Novo são uma preocupação especial dos epidemiologistas, porque elas abrem brecha para que muitos eventos de “superdisseminação” ocorram no país.
“Sei que aqui no Brasil o Natal é *o* momento de reunir a família. Então, ao invés de focar apenas em pedir para evitar, faço outro apelo: se fizerem reunião, façam quarentena no retorno, ok?”, afirmou o epidemiologista da Fiocruz Marcelo Gomes em uma postagem de Twitter sugerindo como minimizar o problema.
Segundo o epidemiologista, se todos aqueles que se aglomeraram entre Natal e réveillon se isolarem por duas semanas no retorno, independentemente dos sintomas, o problema será minimizado. “Não façamos do Natal a distribuição massiva da Covid-19 país afora”, escreveu. “O potencial de leva-e-traz por conta das famílias com residentes em municípios distintos que se juntam nessa época é gigantesco.”