BARCA
Arthur Azevedo
Há maridos e mulheres, dizem as más línguas, que passam o verão em Petrópolis para fazer das suas à vontade. Não sei se é isso exato quanto às mulheres; quanto aos maridos, tenho certeza de que o é.
D. Senhorinha, esposa exemplar, exemplaríssima, era casada com um negociante rico, o João Saraiva, que todos os anos, em fins de novembro, dava com ela em Petrópolis até abril, sob pretexto de que a cidade do Rio de Janeiro se tornava inabitável durante a canícula.
O que ele queria era estar como o boi solto que, segundo o rifão, se lambe todo. Havia na Rua do Riachuelo uma francesa que lhe dava volta ao miolo e constantemente o obrigava a perder a barca.
Nessas ocasiões, D. Senhorinha recebia sempre um telegrama, e acreditava, coitada, porque tinha a mais cega confiança no marido, e sabia que ele era muito ocupado. Por fim, João Saraiva tantas e tão repetidas vezes perdia a barca, por este ou aquele motivo, que marido e mulher resolveram adotar uma palavra convencional para cada vez que isso acontecesse. Adotaram a palavra "barca".
* * *
Uma vez, D. Senhorinha, ali por volta das 2 horas da tarde, bocejava na sua solidão petropolitana, quando lhe levaram um telegrama. Ela abriu-o um pouco sobressaltada, pois o marido não costumava telegrafar àquela hora, e qual não foi a sua surpresa vendo que o telegrama dizia simplesmente: "Barca".
– Não pode ser! Pensou D. Senhorinha. A barca sai da Prainha às 4 horas e são apenas 2! Com duas horas de antecedência meu marido não podia adivinhar que perderia a barca! Aqui há coisa.
* * *
Naquele dia, o marido não apareceu em Petrópolis, e, no dia imediato, quando a senhora lhe pediu uma explicação, ele não se atreveu a dizer-lhe que o progresso agora era tal que os telegramas chegavam ao seu destino antes de mandados, ou que houvesse duas horas de diferença entre o meridiano do Rio de Janeiro e o de Petrópolis.
João Saraiva deu a D. Senhorinha uma razão esfarrapada, que ela fingiu aceitar, e, na manhã seguinte, entrou furioso no escritório, dirigindo-se imediatamente a um dos empregados.
– Ó seu Barros, a que horas você passou anteontem aquele telegrama?
– Logo que o senhor m'o deu.
– Fê-la bonita! Pode limpar a mão à parede! Pois eu não lhe disse que só o passasse depois das 4 horas?
– Disse, disse; mas como tive que ir lá para os lados do Telégrafo, julguei que não houvesse inconveniente.
– Ora valha-o Deus, seu Barros! Você deu cabo da minha tranquilidade doméstica.
* * *
D. Senhorinha desceu imediatamente de Petrópolis e nunca mais quis saber de vilegiaturas, receando que o marido continuasse a perder a barca.