AS ASNEIRAS DO GUEDES
Arthur Azevedo
Não é precisamente um conto o que hoje vou escrever.
******
Voltou do seu passeio a São Paulo o Guedes – o Guedes, sabem? – O maior asneirão que o sol cobre, aquele mesmo que respondeu aqui há tempos quando numa roda lhe perguntaram se tinha filhos:
– Tenho uma filha já adúltera.
– Adúltera?!
– Sim, senhor, adúltera; vai fazer 17 anos.
– Adulta quer o senhor dizer...
– Ou isso. E uma boa menina; só tem um defeito: é muito luxuriosa.
– Luxuriosa?!
– Sim, senhor, luxuriosa: gosta muito de luxar.
– Ah!
– Mas lá está minha mulher para lhe dar bons conselhos... sim, porque minha mulher é muito sensual.
– Sensual?!
– Sim, senhor, sensual: tem muito bom senso.
******
Pois é como lhes digo: tive o prazer de encontrar ontem esse precioso Guedes, cujas asneiras, colecionadas, dariam um volume de trezentas páginas, ou mais.
Eu estava num armarinho da rua do Ouvidor, onde entrava para cumprimentar a minha espirituosa amiga D. Henriqueta, que andava, como sempre, fazendo compras, enchendo-se de caixinhas e pequeninos embrulhos, adquiridos aqui e ali:
O Guedes, mal que me viu, correu a dar-me um abraço, dizendo:
– Li no "O País" a notícia do seu aniversário...
E recuando dois passos, tomou uma atitude solene, deixou cair as pálpebras, e acrescentou:
– Faço votos para que você tenha um futuro tão brilhante como o que passou.
Agradeci comovido essa manifestação de apreço envolvida num disparate, e apresentei o Guedes à minha espirituosa amiga D. Henriqueta, que mordia os lábios para não rir.
– Apresento-lhe, minha senhora, o mais extraordinário reformador da língua portuguesa: o Guedes, o grande Guedes, que acaba de chegar de São Paulo, onde esteve a passeio.
– Era tempo de fazer uma viagem! – Explicou ele. – Foi a primeira vez que saí do Rio de Janeiro.
– Eu também não saí ainda desta cidade senão para ir uma vez a Petrópolis e duas a Niterói – disse D. Henriqueta.
– Vejo então que a senhora é cortesã... – acudiu o Guedes curvando os lábios no mais amável dos seus sorrisos.
– - Cortesã?!
– Cortesã, sim... filha da Corte...
– Oh! Guedes! - Observei baixinho. – Pois você não vê que está dizendo uma inconveniência?
– Tem razão... Atualmente não se deve falar em Corte...
– E emendou:
– Vejo então que a senhora é capitalista federalista.
******
– Ó Guedes! Vamos lá! Diga-me! Que impressões trouxe de São Paulo?
– Muito boas! Aquilo é uma grande terra!
– Dizem que há lá muita sociabilidade.
– Como?
– Muita convivência...
– Isso há... As famílias visitam-se... Ou moços coabitam com as moças.
– Ora essa!
– Que entende você por "coabitar"?
– É... é...
– É uma indecência... uma inconveniência... uma coisa que não se diz!...
O Guedes inflamou-se:
– Está você muito enganado... "Coabitar" é...
E voltando-se para um dos caixeiros do armarinho:
– O senhor tem aí um dicionário que me empreste?
– Pois não!
E daí a dois minutos o Guedes tinha nas mãos os dois volumes do Aulete.
– Muito bem! - Disse eu. – Procure "coabitar".
Depois de folhear em vão o dicionário durante um ror de tempo, o teimoso exclamou:
– Não dá! Não dá! Vejam...
– Perdão: você está procurando com u: deve ser com o!
– Tem razão, tem razão... Onde estava eu com a cabeça?
E o Guedes pôs-se de novo a folhear o Aulete.
– Não dá! Também não dá com o! Veja: de coa para coação! Não dá com u nem com o!
Valha-o Deus, Guedes, valha-o Deus! Você está procurando sem h? Dê cá o dicionário!
E com um sorriso de triunfo mostrei ao Guedes a significação da palavra.
– Olhe, leia: "Coabitar, habitar, viver conjuntamente".
– Mas isso...
– Agora veja o que o Aulete acrescenta entre parênteses:
"Diz-se particularmente de duas pessoas de diferente sexo".
– Perdão! – Bradou o Guedes furioso. – Perdão! Eu não disse particularmente, mas alto e bom som, e só não me ouviu quem não me quis ouvir!
E batendo com a mão espalmada sobre o balcão:
– Eu não sou homem que diga as coisas particularmente!
(Do Livro Contos Cariocas)