“Anitta, made in Honório”, na Netflix, foi filmado no século passado de 2019 quando ainda era o máximo do escândalo uma cantora abaixar a calça jeans diante da câmera e o farmacêutico lhe aplicar no bumbum, sempre funkeiramente empinado e em close, uma injeção de corticoide. Um ano depois, na realidade heavy-metal de dezembro de 2020, o grande escândalo é a morte e o discurso contra a vacina que impede a morte.
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Anitta não tem culpa se seus escândalos, muito mais divertidos e libertadores, foram rebaixados. Num momento em que o país é governado pelo preconceito mais reacionário, esta nova rodada da exibição deles presta serviço emergencial de anticaretice. Numa festa, ela beija ao mesmo tempo a boca de um homem e de uma mulher. Numa resenha com amigos, sobre o que lhe aconteceu na cama da noite passada, simula o enfrentamento com uma “anomalia peniana” e mostra o desconforto que tal causou. Em seis capítulos de meia hora, fica claro: o único pecado aqui é trair. O resto vale — acima de tudo, o direito de a mulher escolher ser feliz do jeito que quiser.
Nunca na história do showbiz deste país uma artista abriu com tanta disposição as portas e janelas dos seus quartos, banheiros e camarins. Entrem, rapazes, e mostrem o que lhes for da curiosidade. O documentário de Andrucha e Pedro Waddington, com uma edição ao estilo nervoso dos clipes, é jornalisticamente excepcional. A devassa da devassa. Não é a investigação clássica da intimidade da artista, mas a exibição despudorada dos seus segredos feita por ela mesma. Houve o cuidado apenas de, em quatro ou cinco momentos, botar um emoji gaiato no rosto dos bofes com quem a cantora, nos meses do final de 2019, estava na cama.
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De resto, lá vai Anitta caminhando pelo corredor de seu casarão ao mesmo tempo que deixa a calcinha escorregar domesticamente entre as pernas. Lá vai a superstar preparando a bolsa para o fim de semana: lubrificante, preservativo, vibrador. Lá vai a cantora de “Menina má” explicando para a mãe, ansiosa em saber a profissão do peguete de ontem à noite, que não tinha a mínima noção: “Era só um gato!”
Briga com equipe
Os bastidores da carreira são divulgados em detalhes, às vezes cruéis. O esporro que Tom Cruise deu semana passada na equipe de “Missão impossível 7” soa como declaração de amor diante das broncas de Anitta, a pistola empoderada dos negócios. Imagine os palavrões em f e p quando ela soube que o editor do clipe pôs em câmera lenta as bundas das dançarinas.
“Eu não dou ponto sem nó”, diz sobre as estratégias que desde a infância pobre em Honório Gurgel, subúrbio do Rio, desenvolveu em busca da eficiência para um dia realizar o sonho de “chegar lá” e ser “a dona da porra toda”. Gogó e repertório são coisas do tempo da Ângela Maria. É preciso estratégia digital. Em outubro, tinha cinco bilhões de visualizações no YouTube contra 3,4 bilhões da Madonna. Não foi à toa que se boquiabriu com quem entrava numa loja de Aspen: “Mariah!”, gritou. E imediatamente Mariah Carey (4,8 bilhões) gritou de volta: “Anitta” — e as duas rainhas das redes se abraçaram muito.
“Made in Honório”, em pleno retrocesso civilizacional do país, é um rebolado pela liberdade de ir em frente. “Dei pra muita gente, mas porque é bom, não pra conseguir favores.” “Tia, me mostra a foto da tua filha, soube que ela gosta de pegar mulher.” No momento dramático da série, o estupro aos 14 anos. “Foi daí que nasceu a Anitta”, diz. “Da minha vontade e necessidade de ser uma mulher corajosa, que nunca ninguém pudesse machucar, que nunca ninguém pudesse fazer chorar, magoar.” Os comentários sobre a cena chegaram aos trending topics do Twitter, onde tem 12,5 milhões de seguidores — e mais uma vez Honório Gurgel se encheu de orgulho.