Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Arthur Azevedo domingo, 11 de fevereiro de 2018

A RITINHA

 

A RITINHA

Arthur Azevedo

 

 

Naquela noite, o Flores entrou em casa oprimido por um sentimento penoso, que não podia definir. Tinham-lhe dito que estava no Rio de Janeiro a Ritinha, aquela interessante menina que, há trinta anos, lá na província, fora o seu primeiro amor e a sua primeira mágoa.

 

Andou morto por vê-la, não que lhe restasse no coração nem no espírito outra coisa senão a saudade que todos nós sentimos da infância e da adolescência – queria vê-la por mera curiosidade. Satisfizera o seu desejo naquela noite, quando menos o esperava, num teatro. Ela ocupava quase um camarote inteiro com a sua corpulência descomunal. Mostrou-lha um comprovinciano e amigo:

 

– Não querias ver a Ritinha? Olha! Ali a tens!

– Onde

– Naquele camarote.

– Quê! Aquela velha gorda?...

– É a Ritinha!

– Virgem Nossa Senhora!

 – E aquele homem de óculos azuis, que está de pé, no fundo do camarote? É o marido?

– Qual marido! É o genro, casado com a filha, aquela outra senhora muito magra que está ao lado dela. O marido é o velhote que está quase escondido por trás do enorme corpanzil da tua ex-namorada.

 

O Flores, estupefato, contemplou e analisou longamente aquela mulher, que fora o seu primeiro amor e a sua primeira mágoa. Não podia haver dúvida: era ela. O olhar tinha ainda coisa do olhar de outrora. Com aqueles destroços ele foi reconstituindo mentalmente, peça por peça, a estátua antiga. Tinha a visão exata do passado.

 

Representava-se uma comédia. Ritinha ria-se de tudo, de todas as frases, de todos os gestos, de todas as jogralices dos atores com uma complacência, de espectadora mal-educada e por isso mesmo pouco exigente. Aquelas banhas flácidas, agitadas pelo riso, tremiam convulsivamente dentro da seda do vestido, manchado pelo suor dos sovacos. O genro, que se conservava sério e imperturbável, lançava-lhe uns olhos repreensivos e inquietos através dos óculos azuis. Ela não dava por isso.

 

– Que diabo vieram eles fazer ao Rio de Janeiro? Perguntou o Flores.

– Nada... apenas passear... estão de passagem para a Europa.

 

* * *

 

E aí está por que o Flores entrou em casa oprimido por um sentimento que não sabia definir. Quando ele se espichou na cama estreita de solteirão, e abriu o livro que o esperava todas as noites sobre o velador, não conseguiu ler uma página. Todo o seu passado lhe afluía à memória. Ele e Ritinha foram companheiros de infância. Eram vizinhos, – brincaram juntos e juntos cresceram. Tinham a mesma idade.

 

Depois de dezessete anos, aquela afeição tomou, nele, nela não, um caráter mais grave: transformou-se em amor. Mas Ritinha era já uma senhora e Flores ainda um fedelho. Como o desenvolvimento fisiológico da mulher é mais precoce que o do homem, raro é o moço que, ao desabrochar da vida, não teve amores malogrados.

 

Foi o que sucedeu ao nosso Flores. Ritinha não esperou que ele crescesse e aparecesse: tendo-se-lhe apresentado um magnífico partido, fez-se noiva aos dezoito anos. O desespero do rapaz foi violento e sincero. Ele era ainda um criançola, mas tinha a idade de Romeu, a idade em que já se ama.

 

Um pensamento horroroso lhe atravessou o cérebro: assassinar Ritinha e em seguida suicidar-se. Premeditou e preparou a cena: comprou um revólver, carregou-o com seis balas, e marcou para o dia seguinte a perpetração do atentado.

 

Deitou-se, e naturalmente passou toda a noite em claro. Ergueu-se pela manhã, vestiu-se, apalpou a algibeira e não encontrou a arma.

 

– Oh!

 

Procurou-a no chão, atrás do baú, por baixo da cômoda: nada!

 

* * *

 

– Para que precisas tu de um revólver, meu filho? Perguntou a mãe do rapaz, entrando no quarto.

– Está com a senhora?

– Está.

– Mas como soube...?

– As mães adivinham.

 

Flores não disse mais nada: caiu nos braços da boa senhora, e chorou copiosamente. Ela, que conhecia os amores do filho, deixou-o chorar à vontade; depois, enxugou-lhe os olhos com os seus beijos sagrados, e perguntou-lhe:

 

– Que ias tu fazer, meu filho? Matar-te?

– Sim, mas primeiro matá-la-ia também!

– E não te lembraste de mim?... Não te lembraste de tua mãe?...

– Perdoe!

 

E nova torrente de lágrimas lhe inundou a face.

 

– Ouve, meu filho: na tua idade feliz, um amor cura-se com. outro. O que neste momento se te afigura uma desgraça irremediável, mais tarde se converterá numa recordação risonha e aprazível. Se todos os moços da tua idade se matassem por causa disso, e matassem também as suas ingratas, há muito tempo que o mundo teria acabado. Raros são os que se casam com a sua primeira namorada. O que te sucedeu não é a exceção, é a regra. O mal de muitos, consolo é.

– Eu quisera que Ritinha não pertencesse a nenhum outro homem!

– Matá-la? Para quê? Ela desaparecerá sem morrer... nunca mais terá dezoito anos... A idade transforma-nos tal qual a morte. Não imaginas como tua mãe foi bela!

 

O velho Flores, pai do rapaz, informado por sua mulher do que se passara, e receoso de que o filho, impulsivo por natureza, praticasse algum desatino, resolveu mandá-lo para o Rio de Janeiro, onde ele chegou meses antes do casamento de Ritinha.

 

* * *

 

Naquela noite, o Flores, quase quinquagenário, chefe de repartição, lembrava-se das palavras maternas e reconhecia quanta verdade continham. Ainda naquele momento, sua mãe, que há tantos anos estava morta, parecia falar-lhe, parecia dizer-lhe:

 

– Não te dizia eu?

– E que impressão receberia Ritinha se me visse? Pensou ele. Também eu sou uma ruína...

 

* * *

 

O Flores apagou a vela, adormeceu e sonhou com ambas as Ritinhas, a do passado e a do presente.

Dali por diante, todas as vezes que encontrava esta última, dizia consigo:

 

– Olhem se eu a tivesse matado!


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