A RÉCLAME
Arthur Azevedo
I
Era um domingo. O Comendador Viana acabou de almoçar, sentou-se numa cadeira de balanço, cruzou as mãos sobre o ventre, atirou o olhar pela janela escancarada que enchia de ar e luz a sala de jantar, e viu, no jardim vizinho, um homem a escrever, sentado à sombra de um caramanchão.
– Ó menina, dá cá o binóculo.
Laura, a esposa do Comendador Viana, trouxe-lhe o binóculo, que ele assestou contra o homem do caramanchão.
– Não me enganava: é ele... é o tal Passos Nogueira!...
– Que Passos Nogueira? Perguntou Laura.
O Comendador não respondeu; voltou-se para a criada, que levantava a mesa, e interpelou-a:
– Aquele sujeito mora ali há muito tempo? Você deve saber...
– Que sujeito?
– Aquele que está escrevendo acolá, no jardim da casa de pensão, – não vê?
– Ah! O poeta?
– Quem lhe disse a você que ele é poeta?
– É como o ouço tratar na vizinhança. Já ali morava quando viemos para esta casa.
– Entretanto, observou Laura, estamos aqui há oito meses e é a primeira vez que o vejo.
– Deveras? Perguntou dentre dentes o Comendador, com um olhar de desconfiança.
– Ora esta! Murmurou Laura, muito admirada da inflexão e do olhar do marido.
– Parece impossível que minha ama não tenha reparado, acudiu a criada, porque o poeta vai todas as manhãs e todas as tardes escrever naquele lugar.
– Todas as manhãs? Indagou o dono da casa levantando-se.
– E todas as tardes, repetiu ingenuamente a criada.
E foi par a cozinha.
– Viana, obtemperou Laura, aproveitando a ausência da criada, você faz umas coisas esquisitas! Esta mulher vai ficar convencida de que meu marido tem ciúmes de um homem que nem sequer conheço!
– Aquilo é um bandido! Regougou o Comendador.
– Pois deixe-o ser! Que temos nós com isso? Ele está na sua casa e nós na nossa.
– Se eu soubesse que aquele patife morava ali, não tínhamos vindo para cá!
– Mas que importa que ele more ali?
– Importa muito! Aquilo é sujeitinho capaz de manchar a reputação de uma senhora com um simples cumprimento. Ele algum dia já te cumprimentou?
– Pois eu já lhe disse que nunca reparei nesse homem?
– Ali onde o vês tem causado a desgraça de umas poucas de senhoras! Por causa dele a mulher de um negociante deixou o marido, a filha de um despachante da Alfândega saiu da casa do pai, e a viúva de um coronel tentou suicidar-se!
– Com efeito! Exclamou Laura, agarrando rapidamente no binóculo, – deve ser um homem excepcional!...
– Não! É melhor que não o vejas! Ponderou o marido, tomando-lhe o binóculo das mãos. Que interesse tens tu...?
– Apenas o interesse que você mesmo me despertou, contando-me as conquistas deste Napoleão do amor.
– Mulheres doentias e malucas... pobrezinhas que se deixaram levar por cantigas, ora aí tens!... Aquele peralta faz versos, e os jornais levam a dizer todos os dias que ele tem muito talento... e que é muito inspirado...
– Lembra-me agora que já tenho lido esse nome de Passos Nogueira.
– Oh, menina, vê lá se também tu...
– Descanse: já não estou em idade de me deixar levar por poesias.
– Pois sim. Peço-te que não te debruces nesta janela quando o tal poetaço estiver no seu caramanchão.
– Por quê? Receias que eu caia? Ora deixe-se de ciúmes!
– Não são ciúmes, são zelos. Não receio pelo que possas fazer... mas tenho medo que a vizinhança murmure.
II
Laura, que até então ignorava a existência do poeta Passos Nogueira, começou a interessar-se muito por ele, graças à réclame feita pelo Comendador. Sentia-se atraída pela figura daquele horrendo sedutor de solteiras, casadas e viúvas, e duas vezes ao dia, reclinada à janela, olhava longamente para o poeta.
Este acabou por notar a insistência com que era contemplado pela vizinha, e prontamente correspondeu aos seus olhares lânguidos e prometedores.
Estabeleceu-se logo entre eles um desses namoros saborosos e terríveis, ridículos e absorventes, que monopolizam duas existências.
Para justificar a precipitação dos fatos, digamos que Laura, mulher de vinte e seis anos, romântica e nervosa, casara-se, muito nova ainda, com o Comendador Viana, homem quinze anos mais velho que ela, curto e positivo, que não correspondia absolutamente ao seu ideal de moça.
Digamos ainda que o poeta Passos Nogueira, rapaz de talento vantajosamente apreciado, atordoou-se quando se viu provocado pelos bonitos olhos de uma bela mulher casada. Apesar da reputação que gozava e da qual se fizera eco o próprio Comendador, Passos Nogueira jamais inscrevera ao seu canhenho de conquistas fáceis
aventuras tão interessante tão considerável como essa que agora lhe desassossegava o espírito e lhe espantava as rimas.
Digamos ainda que o Comendador continuava todos os dias a fazer réclame ao namorado, referindo-se à sua pessoa em termos desabridos, insultando-o de modo que ele não ouvisse, e, finalmente, exprobrando a Laura, por mera presunção, que ela o animasse e lhe desse corda.
Não tardou que o poeta escrevesse à vizinha um bilhete, lançado por cima do muro que separava as duas casas. Perguntava-lhe pelo seu nome e pedia uma entrevista. Ela respondeu: “Não! Não é possível! Não me persiga! Esqueça-se de mim! Bem vê que não sou livre! Um encontro poderia causar a nossa desgraça!”
Mas, não obstante desengano tão decisivo e formal, no dia seguinte os olhos da moça encontraram-se com os do poeta. Ela sentia a necessidade, o dever de fugir daquele homem, mas não tinha forças para fazê-lo. E o namoro continuou.
Dois dias depois, novo bilhete. Ela abriu-o sôfrega e palpitante, – e leu estes versos:
“Eu não sou livre”, escreveste;
Porém, se livre não era,
Por que com tantas quimeras
Encheste um cérebro nu?
Pedes que não te persiga...
Mas, por teus olhos ferido,
Reflete que o perseguido
Sou eu, meu anjo, e não tu!
Quando da tua janela
Atiras aos meus desejos
Olhares que valem beijos,
Por que tens beijos no olhar;
Quando esses ternos olhares
Com meus olhares se cruzam,
Teus lindos olhos abusam
Do seu condão de encantar!
Não te compreendo, vizinha;
Tu mesma não te compreendes:
Fazes-te amar, e pretendes
Que eu fuja e te deixe em paz!
Mas não vês que é negativo
Este sistema que empregas?
Tudo, escrevendo, me negas,
- E, olhando, tudo me dás!
Vizinha, bela vizinha,
Vizinha por quem padeço,
Pois tais palavras mereço
Que me fizeram chorar?
O prometido é devido...
Para que o peito me aquietes,
Ou dá-me quanto prometes,
Ou não prometas em dar!"
III
Para encurtar razões: Passos Nogueira e Laura foram por muito tempo, e não sei se continuam a ser, os amantes mais apaixonados que ainda houve.
Ela nunca perdoou ao marido o mau passo que deu. Seria ainda hoje o modelo das esposas, se o Comendador não se lembrasse de fazer réclame ao poeta.
Este, por expressa recomendação da amante, nunca mais apareceu no caramanchão fatídico.
Isto fez com que o marido tornasse às boas. Uma tarde perguntou:
– Ó menina, então o poeta já ali não mora?
– Não sei, respondeu Laura com uma deliciosa indiferença. Se se mudou, melhor! Um libertino daqueles!
– Deixa-o lá, coitado! Muitas vezes são mais as vozes do que as nozes.
– Que diabo! Foi você mesmo quem falou da filha do despachante, da mulher do negociante e da viúva do coronel!...
– Disseram-me. Este Rio de Janeiro, menina, é a terra da maledicência. Deus me livre de que alguém se lembre de espalhar por aí que eu roubei o sino de São Francisco.
(Do livro Contos Fora da Mora)