Já contei aqui a história da doida mansa que, no começo dos anos 60, apareceu em frente da minha casa em Taquaritinga em busca das chaves do Banco do Brasil. No meio de uma tarde de agosto, a campainha tocou e vi pela janela da sala de visitas uma mulher negra, franzina e maltrapilha hasteada junto ao portão. Atravessei o jardim e dei bom dia. Ela retribuiu a saudação e quis saber se era ali que morava o prefeito. Era, confirmei. Ela perguntou o que eu era dele. Um dos filhos, esclareci. Ela então contou que era filha do presidente Getúlio Vargas e precisava falar com o chefe do Executivo municipal. Assunto para gente grande, compreendi. E fui chamar minha mãe.
Dona Biloca também ficou sabendo que estava diante de uma filha de Getúlio cuja existência o restante do Brasil ignorava. Depois de certificar-se que estava diante da primeira-dama da cidadezinha, a mulher revelou que num testamento secreto, redigido meses antes do suicídio, o pai a transformara oficialmente em herdeira do Banco do Brasil. Depois do trágico 24 de agosto de 1954, ela se tornara dona da poderosa instituição financeira, incluídos bens imóveis, mesas, equipamentos e um mundaréu de dinheiro, além de todas as agências. Estacionara na porta da minha casa porque o doutor Getúlio lhe segredara, na única conversa que tiveram, que as chaves de cada agência ficavam sob a guarda do prefeito.
“A senhora pode chamar seu marido?”, solicitou ao fim da exposição. Ao ouvir que meu pai estava na prefeitura, comunicou que iria esperá-lo no portão. Dona Biloca achou que a coisa iria longe e, para encurtar a conversa, transferiu a pendência para a alçada do primogênito, que trabalhava no Banco do Brasil de Taquaritinga. Depois de ensinar à visitante o caminho da agência, explicou-lhe o que fazer: “Chegando lá, procure um moço chamado Flávio e diga que a mãe dele mandou dar um jeito no problema da senhora”.
“Vou buscar a certidão de nascimento no cartório e volto já”, replicou a herdeira. Reapareceu quatro meses mais tarde, não na agência, e sim no portão da minha casa, sem qualquer documento e de novo querendo falar com o prefeito. De novo, foi encaminhada ao moço da agência, que de novo liquidou a questão do mesmo jeito. O ritual se repetiu quatro vezes em menos de dois anos. Até que um dia a filha de Getúlio Vargas saiu em direção ao cartório e nunca mais voltou.
Lembrei-me da figura eternizada nas minhas memórias da infância ao topar com o vídeo em que Gleisi Hoffmann convida o povo em geral e a companheirada em particular para passarem o Natal nas cercanias da cadeia que hospeda Lula em Curitiba — e, mais uma vez, avisa que vai tirar da gaiola o chefão condenado por corrupção e lavagem de dinheiro. É o que vive fazendo Gleisi desde abril, quando o ex-presidente foi alojado na carceragem da Polícia Federal na capital paranaense.
A senadora rebaixada a deputada federal convocou uma vigília e jurou que libertaria Lula. A vigília morreu de frio e o deus da seita continuou na cela. A presidente do PT lançou a candidatura de Lula à Presidência da República e jurou transferi-lo da cadeia para o palanque. A maluquice morreu de inanição e o candidato fez campanha no cárcere. Agora Gleisi promete presentear o presidiário mais famoso do país com a recuperação do direito de ir e vir.
Daqui a alguns anos, é provável que um menino de Curitiba receba a visita de uma senhora de maus modos querendo falar com o prefeito. Cabelos remotamente alourados, nariz artificialmente arrebitado, aquele brilho no olhar que denuncia as doidas varridas, Gleisi Hoffmann ainda estará berrando “Lula livre!” mesmo quando sua divindade particular já não existir fisicamente. A filha de Getúlio encerrou a busca em dois anos. A filhote de Lula é menos sensata: vai passar a vida à caça das chaves da cadeia onde um ex-presidente amargou seu lastimável ocaso.
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