Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Arthur Azevedo domingo, 15 de janeiro de 2017

A DONA BRANCA

A DONA BRANCA

Arthur Azevedo 

 

                        No dia 6 de outubro de 1891, quando o senhor Vieira, ás sete horas da manhã, pôs o chapéu para sair, dona Catarina, sua esposa, disse, consertando-lhe o laço da gravata:

                        — Sabes de uma coisa? Mana Adelaide mandou convidar-me para ir hoje com ela ao Teatro Lírico.

                        — Que ideia!

                        — Aí vens tu! Vai-se embora a companhia e eu não assisto a um único espetáculo, podendo ouvir a Dona Branca de graça!

                        — Mas, filha, não te lembras que dia é hoje?

                        — É terça-feira.

                        — E então?

                        — E então?

                        — Pois não sabe que às terças-feiras não dispenso o meu voltaretezinho em casa do compadre?

                        — Quem te diz que não vás ao teu voltaretezinho? Mana Adelaide conhece os teus hábitos e as tuas impertinências; foi a mim e não a ti que convidou.

                        — Mas...

                        — Olha, eu vou jantar com ela nas Laranjeiras e de lá vamos juntas para o teatro; acabado o espetáculo, ela traz-me no seu carro, e deixa-me ficar em casa. Não gastas um vintém, nem te incomodas.

                        — Bem sei, mas não é bonito uma senhora casada ir ao teatro sem seu marido.

                        — Mas com sua irmã... e com o marido de sua irmã...

                        — Bom, bom, vai; não quero que me chamem desmancha-prazeres. Jantarei sozinho.

                        O senhor Vieira saiu, foi tratar da vida, e quando, às quatro horas, voltou à casa, já dona Catarina tinha ido ter com a irmã.

                        O pobre homem ficou muito aborrecido naquela solidão. Toda sua família era essa bela senhora com quem se casara em 1885 e contava dez anos menos que ele.

                        Tinha quarenta e quatro invernos o senhor Vieira, e inteligência bastante para perceber que dona Catarina o não amava; entretanto, contentava-se da respeitosa amizade com que ela se impunha serenamente à sua estima, e preferia mesmo esse discreto sentimento ao amor desordenado e doentio, que produz ciúmes e dispepsias, maus humores e lesões cardíacas. Depositava uma confiança cega em sua mulher e estimava-a deveras. Sentia-se feliz.

                        Mais feliz seria, entretanto, se houvesse uma criança naquela casa. Dona Catarina sofria por vezes longos acessos de melancolia; algumas noites deixava o esposo sozinho na larga cama de casados, e ia revolver-se num sofá, suspirando, irrequieta, nervosa, sem poder dormir. Mas esses fenômenos eram passageiros, e o marido, atribuía-os à ausência da prole.

                        — Decididamente, falta uma criança nesta casa!

                        Depois daquele jantar de solteirão, o senhor Vieira dormiu a sesta, e às sete horas foi para casa do compadre, em São Cristóvão. O senhor Vieira morava no Catete.

                        — Bravos! cá está o nosso homem! Exclamou o compadre e exclamaram mais dois amigos da vizinhança, que se achavam à espera do parceiro. Vamos ao vício!

                        Os quatro companheiros sentaram-se às oito horas e jogaram até perto da meia-noite. O senhor Vieira ganhou dezenove mil e quinhentos. Nunca estivera com tanta sorte.

 

******

 

                        À meia noite, depois do chá com torradas, o nosso homem saiu, e foi esperar a condução na esquina. Passados uns vinte minutos, apareceu um bonde, mas em sentido contrário, e parou para fazer saltar o Lamenha, que era vizinho paredes-meias do compadre.

                        — Olá! A estas horas, seu Lamenha? Perguntou o senhor Vieira. Já sei que vem do Lírico; foi ouvir a Dona Branca.

                        — Ora deixe-me com a Dona Branca! Se soubesse...

                        — Então a ópera não presta?

                        — Não sei; o espetáculo não passou do começo!

                        — Ora essa! Por quê?

                        — No fim do primeiro ato o público das torrinhas chamou à cena o empresário para ferrar-lhe uma pateada, não sei por que motivo. O empresário não quis ouvir. O público zangou-se. A polícia interveio, e agora é que são elas! Ah, seu Vieira, que rolo!...

                        — Deveras? Perguntou o outro empalidecendo.

                        — Os soldados da polícia acutilavam a torto e a direito, os bancos voavam, os globos dos candeeiros partiam-se, as famílias separavam-se numa confusão medonha, as senhoras tinham chiliques e soltavam gritos...

                        — As senhoras?... Meu Deus!... E a minha!...

                        — Há muita gente ferida, e não será para admirar que houvesse mortes! Eu escapei por milagre!

                        — E minha mulher que foi a este espetáculo!... 

                        — Sua senhora? Não a vi. Só vi sua cunhada, a Dona Adelaide, sozinha, correndo e gritando que parecia uma louca!

                        — Pois estavam juntas!... Felizmente aí vem o bonde... Quem sabe se não vou encontrá-la morta? Eu bem que queria que não fosse à tal Dona Branca! Ora esta!...

                        E o senhor Vieira tomou o bonde, sem mesmo se despedir de Lamenha.

 

******

 

                        Imaginem o desassossego com que o pobre diabo fez a viagem de São Cristóvão ao largo de São Francisco. Aí tomou um tílburi. O cocheiro confirmou a informação do Lamenha, acrescentando que tinham morrido duas senhoras, sendo uma de susto.

                        Ao passar pela Guarda Velha, o senhor Vieira notou que o Lírico estava imerso nas trevas e no silêncio. Chegou à casa, e expectorou um grande suspiro de alívio ao entrar na alcova: dona Catarina dormia tranquilamente, envolvida no seu lençol.

                        O marido despiu-se em silêncio e deitou-se ao lado da senhora.

                        Ela despertou:

                        — Ah! És tu?

                        Ele, completamente serenado, resolveu gracejar e perguntou-lhe sorrindo:

                        — Então, minha senhora, que me diz de Dona Branca?

                        — É uma ópera muito bonita.

                        — Hein?

                        — O último ato principalmente, acrescentou dona Catarina com muita convicção.

                        O senhor Vieira sentiu o sangue lhe subir à cabeça, mas conseguiu dissimular, e perguntou se a ópera tinha sido bem cantada.

                        — Perfeitamente cantada, respondeu ela, mentindo como só as mulheres sabem mentir.

                        — E não houve novidade durante o espetáculo?

                        — Nenhuma. O Gabrielesco esteve sublime!

                        — O Gabrielesco? No último ato?

                        — Em todos os atos. É um tenorão!

                        — Está bem.

                        O senhor Vieira apagou a vela e fingiu que se aninhava para dormir.

                        — Aí está você amuado! Eu por seu gosto não saía de casa, não me divertia, vivia metida entre quatro paredes! Que homem!...

                        Ele resmungou uns sons inarticulados; não respondeu.

                        — Será possível que o Lamenha me enganasse? – Pensava o marido. – Não; e o cocheiro do tílburi?...

                        O senhor Vieira passou, talvez pela primeira em sua vida, uma noite completamente em claro. Ergueu-se logo ao amanhecer, saiu, convenceu-se de uma verdade terrível, e nesse mesmo dia separou-se para sempre de dona Catarina.

 

******

 

                        Na terça feira seguinte, o senhor Vieira não faltou ao voltaretezinho do compadre.

                        Quando este lhe perguntou: — Então?... Que foi isso?... A comadre? — Ele respondeu melancolicamente:

                        — A comadre ouvia-me dizer que em nossa casa faltava uma criança e quis arranjá-la fora... Deixa lá! — Vamos ao vício!

                        Nessa noite perdeu quinze mil e oitocentos.

(Do livro Contos Fora da Moda)

 

 

 


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