Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)
Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 02 de janeiro de 2021
UM POEMA DE MARIANE BIGIO (CORDEL DE PEDRO FERNANDO MALTA, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)
A cordelista recifense Mariane Bigio, graduada em Comunicação Social e especialista em Literatura de Cordel
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A roupa que a gente veste A roupa que veste a gente
A gente andava pelado Isso foi antigamente O Índio ‘inda anda assim Se porta naturalmente A gente é que se reveste A roupa que a gente veste A roupa que veste a gente
Tanta roupa diferente Cada qual do seu jeitinho Camisa, calça, vestido Bem comprido ou bem curtinho Tem roupa de ir à praia Tem sunga, biquíni, saia Tem maiô e tem shortinho
Se fizer um friozinho A roupa faz ficar quente Tem casaco, meia e gorro Pra que o calor se sustente No tecido é que se investe A roupa que a gente veste A roupa que veste a gente
Pode ser que o clima esquente E o suor pingue da testa Tem tecido leve e fino Estampas fazem a festa As mangas cortadas fora Chapéus vêm em boa hora Fazendo sombra modesta.
Às vezes a gente empresta Pega emprestado também Às vezes a gente ganha A roupa que foi de alguém Roupa usada do brechó Roupa antiga da vovó Bem miúda pro neném.
A roupa vai muito além De uma casca exterior Não precisa ser de marca Nem ser cara, não senhor Ser confortável convém, Se ela nos faz sentir bem Já é de grande valor.
Em uma história de amor Caso haja um casamento O traje de quem se casa De acordo com o sacramento Traduz significados Nas roupas representados Neste especial momento.
Pra nos proteger do vento Um cachecol bem felpudo As luvas vestem as mãos Sendo de lã ou veludo A roupa preta é pro luto Padrão pro atleta astuto Tem mesmo roupa pra tudo.
Até merecem estudo As famosas vestimentas De alguns ícones da história Cuja a roupa salienta Sua singularidade Faraós na Antiguidade Madona aos Anos Oitenta.
A lista aqui só aumenta Elvis Presley com seu brilho As moças de antigamente As que usavam o espartilho A Gueixa com seu Quimono Pijama é pra quem tem sono E os versos seguem seu trilho.
Às vezes de pai pra filho A roupa é feio uma herança Tem a batina do padre Que batiza uma criança Tem roupa que é fantasia Se o carnaval principia Pra poder entrar na dança.
Cor verde traz esperança Para quem acreditar Que a roupa muda o astral E pode nos transformar Tem roupa que comunica Como bandeira que indica À que viemos lutar.
A roupa pode falar Simbolizar a Cultura Através da indumentária Um Povo se configura Beleza que não se poupa Uma ciranda de roupa Que no mundo se costura.
São as cores, a textura Fios a se entrelaçar Tem as máquinas e as tinturas Agulha, linha e tear Norte ou sul, leste, oeste A roupa que a gente veste Tem histórias pra contar.
Roupa sempre vai mudar A moda é sua regente O estilo é particular Da vitrine é independente Do Nordeste ao sudeste A roupa que a gente veste A roupa que veste a gente!
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 26 de dezembro de 2020
DOIS POEMAS NATALINOS (CORDEL DE PEDRO FERNANDO MALTA, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)
Que você, nesse Natal, entenda o real sentido da data em que veio ao mundo um homem bom, destemido e que o dono da festa não possa ser esquecido.
Vindo lá do Polo Norte num trenó cheio de luz Papai Noel é lembrado muito mais do que Jesus. Ô balança incoerente onde um saco de presente pesa mais que uma cruz.
Sei que dar presente é bom mas bom mesmo é ser presente ser amigo, ser parceiro ser o abraço mais quente permitir que nossos olhos não enxerguem só a gente.
Que você, nesse momento, faça uma reflexão independente de crença, de fé, de religião pratique o bem sem parar pois não adianta orar se não existe ação.
Alimente um faminto que vive no meio da rua, agasalhe um indigente coberto só pela lua, sua parte é ajudar e o mundo pode mudar cada um fazendo a sua.
Abrace um desconhecido, perdoe quem lhe feriu, se esforce pra reerguer um amigo que caiu e tente dar esperança pra alguém que desistiu.
Convença quem está triste que vale a pena sorrir, aconselhe quem parou que ainda dá pra seguir, e pr’aquele que errou dá tempo de corrigir.
Faça o bem por qualquer um sem perguntar o porquê, parece fora de moda soa meio que clichê, mas quando se ajuda alguém o ajudado é você.
Que você possa ser bom começando de janeiro e que esse sentimento seja firme e verdadeiro. Que você viva o Natal todo ano, o ano inteiro.
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Uma declamação de Euriano Sales:
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 12 de dezembro de 2020
QUATRO MESTRES DO IMPROVISO - 12.12.20 (CORDEL DE PEDRO FERNANDO MALTA, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)
Na terra paraibana foi onde eu pus os meus pés. Caminhei pintando os lírios dos majestosos painéis, que formam telas sedosas nos aromáticos vergéis.
Vi os dias infantis, cheguei na adolescência, cantei olhando pra o céu, bebendo divina essência dos frutos que Deus espreme na taça do inocência.
No tempo da mocidade fui ídolo dos cantadores; dos cantadores que foram meus fãs, admiradores, e hoje me negam bom-dia pra magoar minhas dores!
Eu sei que não estou seguro nesta profissão que estou: sou ferido sem ferir, chorando pra festa vou, sofro, mas só deixo o palco depois que termina o show.
* * *
Dimas Batista Patriota:
Velha viola de pinho, companheira De minh’alma, constante e enternecida, Foste tu a intérprete primeira Da primeira ilusão da minha vida. Eu, contigo, cantando a noite inteira, Tu, comigo, tocando divertida. Sorrias, se eu louvava a brincadeira, Choravas se eu cantava a despedida. Nas festas de São João, nas farinhadas, Casamentos, novenas, vaquejadas, Divertimos das serras aos baixios. Perlustrando contigo pelo Norte, Foste firme, fiel, feroz e forte, No rojão dos ferrenhos desafios.
* * *
Biu de Crisanto
Da visão desta janela Eu vi os sonhos perdidos A vida passou por mim Causando dor e gemidos E a esperança morreu No vale dos esquecidos.
O mundo esqueceu de mim Neste cubículo imundo Onde mergulhei nos livros Hora minuto e segundo E fiz diversas viagens Pela vastidão do mundo
* * *
Leonardo Bastião
Depois dos cinquenta anos Comecei pensar assim Estou longe do inicio E mais próximo do fim E os meus cabelos grisalhos São folhas secas dos galhos Que o tempo secou de mim.
Esses meus cabelos brancos São verdadeiros sinais Dos calendários vencidos Que o tempo jogou pra traz Dos filmes que vi outrora Passado que foi embora Pra mim não ver nunca mais.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 05 de dezembro de 2020
QUATRO MESTRES DO IMPROVISO - 05.12.20 (CORDEL DE PEDRO FERNANDO MALTA, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)
Na terra paraibana foi onde eu pus os meus pés. Caminhei pintando os lírios dos majestosos painéis, que formam telas sedosas nos aromáticos vergéis.
Vi os dias infantis, cheguei na adolescência, cantei olhando pra o céu, bebendo divina essência dos frutos que Deus espreme na taça do inocência.
No tempo da mocidade fui ídolo dos cantadores; dos cantadores que foram meus fãs, admiradores, e hoje me negam bom-dia pra magoar minhas dores!
Eu sei que não estou seguro nesta profissão que estou: sou ferido sem ferir, chorando pra festa vou, sofro, mas só deixo o palco depois que termina o show.
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Dimas Batista Patriota:
Velha viola de pinho, companheira De minh’alma, constante e enternecida, Foste tu a intérprete primeira Da primeira ilusão da minha vida. Eu, contigo, cantando a noite inteira, Tu, comigo, tocando divertida. Sorrias, se eu louvava a brincadeira, Choravas se eu cantava a despedida. Nas festas de São João, nas farinhadas, Casamentos, novenas, vaquejadas, Divertimos das serras aos baixios. Perlustrando contigo pelo Norte, Foste firme, fiel, feroz e forte, No rojão dos ferrenhos desafios.
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Biu de Crisanto
Da visão desta janela Eu vi os sonhos perdidos A vida passou por mim Causando dor e gemidos E a esperança morreu No vale dos esquecidos.
O mundo esqueceu de mim Neste cubículo imundo Onde mergulhei nos livros Hora minuto e segundo E fiz diversas viagens Pela vastidão do mundo
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Leonardo Bastião
Depois dos cinquenta anos Comecei pensar assim Estou longe do inicio E mais próximo do fim E os meus cabelos grisalhos São folhas secas dos galhos Que o tempo secou de mim.
Esses meus cabelos brancos São verdadeiros sinais Dos calendários vencidos Que o tempo jogou pra traz Dos filmes que vi outrora Passado que foi embora Pra mim não ver nunca mais.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 28 de novembro de 2020
SEI MESTRES DO IMPROVISO (CORDEL DE PEDRO FERNANDO MALTA, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)
Frondoso e bonito, o velho umbuzeiro Que brotou das fendas abertas da terra. Cresceu num aceiro do pé de uma serra Passando agruras o tempo inteiro. Foi ficando forte a cada janeiro, Mudando a paisagem que tem no lugar. Felizes daqueles que vem contemplar, Seu verde, a sombra e sua doçura O doce da fruta na forma mais pura Que o puro da brisa que sobra do mar.
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Biliu de Campina
Versejar é minha sina No mundo transcendental Passo do ponto final Fazendo o que me fascina Vou pelo mapa da mina Navegando em barco a vela Sem ter medo da procela Numa letal disparada A morte está enganada Eu vou viver depois dela.
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Miro Pereira
O meu pai não tem estudo Mamãe é analfabeta Eu pouco fui à escola Somente Deus me completa Com esse sublime dom De repentista e poeta.
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Zé Fernandes
A seca seca primeiro Os depósitos cristalinos Depois seca as esperanças De milhões de peregrinos Mas bota enchente de lágrimas Nos olhos dos nordestinos.
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Adauto Ferreira Lima
Quando o sujeito envelhece Quase tudo lhe embaraça Convida a mulher pra cama Agarra, beija e abraça Porém só faz duas coisas: Solta peido e acha graça.
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Pedro Tenório de Lima (Poeta analfabeto do sertão do Pajeú)
Me criei abraçando a agricultura Já tô véi, a cabeça tá cinzenta Pra onde vou é levando a ferramenta E uma faca de doze na cintura Minha boca lambendo rapadura E meu almoço, um punhado de farinha A merenda é um ovo de galinha Namorei abraçando as raparigas Me deitando por cima das formigas Que uma cama bonita eu não tinha.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 21 de novembro de 2020
A GENIALIDADE DE IVANILDO VILANOVA - 21.11.20 (CORDEL PESQUISA DE PEDRO FERNANDO MALTA, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)
O Poeta pernambucano de Caruaru Ivanildo Vilanova, um dos maiores nomes da cantoria nordestina na atualidade
É o céu uma abóbada aureolada, Rodeada de gases venenosos, Radiantes planetas luminosos Gravidade na cósmica camada! Galáxia também hidrogenada, Como é lindo o espaço azul-turquesa E o sol, fulgurante tocha acesa, Flamejando sem pausa e sem escala! Quem de nós pensaria em apagá-la? Só o Santo Autor da Natureza!
De tais obras, o homem e a mulher São antigos e ricos patrimônios. Geram corpos em forma de hormônios, E criam seres sem dúvida sequer. O homem, após esse mister, Perpetua a espécie, com certeza. A mulher carinhosa e indefesa Dá à luz uma vida, novo brilho, Nove meses, no ventre, aloja o filho, Pelo Santo Poder da Natureza!
O peixe é bastante diferente: Ninguém pode entender como é seu gênio! Ele reserva porções de oxigênio E mutações para o meio ambiente! Tem mais cartilagem resistente Habitando na orla ou profundeza, Devora outros peixes pra despesa Tem a época do acasalamento Revestido de escamas, esse elemento, Com a força da Santa Natureza!
O poraquê ou o peixe elétrico, é um tipo genuíno, Habitante dos rios e águas pretas, E com ele possui certas plaquetas Que o dotam de um mecanismo fino! E com tal cartilagem, esse ladino Faz contato com muita ligeireza, E quem tocá-lo padece de surpresa Descarga mortífera, absoluta, Sua alta voltagem eletrocuta, Com os fios… da Santa Natureza!
A tartaruga é gostosa, feia e mansa, Habitante dos rios e oceanos! Chegar aos quatrocentos anos Pra ela é rotina… é confiança! Guarda ovos na areia e nem se cansa De por eles zelar como defesa. Nascido os filhotes, com presteza, Nas águas revoltas já se jogam, Por instinto da raça não se afogam E também pelo Poder da Natureza!
O canário é pássaro cantor, Diferente de garça e pelicano. Papagaio, arara e tucano, Todos eles com majestosa cor! O gavião é um tipo caçador E columbiforme é a burguesa, O aquático flamingo é, da represa, A ave, a rapace agigantada, Eis o mundo das aves, a passarada Quanto é grande, poderosa e bela, a Natureza!
A gazela, o antílope e o impala A zebra e o alce, felizardo, Não habitam em comum com o leopardo, O leão e o tigre-de-bengala! O macaco faz tudo mas não fala, Por atraso da espécie,ou por franqueza, Tem o búfalo aspecto de grandeza, O boi manso e o puma tão valente, Cada um de uma espécie diferente Isso é coisa também da Natureza!
E acho também interessante O réptil de aspecto esquisito O pequeno tamanho de um mosquito, A tromba preênsil do elefante A saliva incolor do ruminante A mosca nociva e indefesa A cobra que ataca de surpresa Aplicar o veneno é seu mister: De uma vez mata trinta, se puder Mas é coisa também da Santa Natureza!
No Nordeste há quem diga que o carão Possui certos poderes encantados E, que, através de fenômenos variados, Prevê a mudança de estação. De fato, no auge do verão, Ele entoa seu cântico de tristeza E, de repente, um milagre, uma surpresa: Cai a chuva benéfica e divina! Quem lhe diz, quem lhe mostra, e quem lhe ensina? É somente o Autor da Natureza!
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 14 de novembro de 2020
Ronaldo José da Cunha Lima, Guarabira-PB, (1936-2012). Foi advogado, promotor de justiça, professor, poeta e político
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CONVERSANDO COM MEU PAI
Na quietude d’aquela noite densa, reclamei numa saudade a presença do meu Pai, que há muito já morreu!… Sorumbático e só, fiquei na sala, sem ouvir de ninguém uma só fala: todos dormiam entregues a Morfeu.
Continuei sozinho na vigília, Contemplando a placidez da mobília, num silêncio quase que perfeito; quebrando apenas com o gemer da rede, as pancadas do relógio na parede e o pulsar do coração dentro do peito.
De repente, coberta com um véu, uma nuvem nascia lá do céu, na sala onde eu estava, caí… era algo de espanto realmente dissipa-se a nuvem lentamente e vai surgindo a imagem do meu pai.
Boa noite, meu filho! E se assusta? Tenha mais um pouco de calma, porque custa novamente voltar por este trilho: Eu rompi os umbrais da eternidade para, em braços de amor e de saudade, conversar com você, filho querido!…
Tenho assistido todos os seus passos, suas lutas, vitórias e fracassos, em ânsias que não posso mais contê-las: eu lhe assisto, meu filho, todo dia, em suas vitórias choro de alegria e as lágrimas transformam-se em estrelas.
Tenho visto também seus sofrimentos suas angústias, dores e tormentos e esperanças que foram já frustradas; tenho visto, meu filho, da eternidade, o desencanto de sua mocidade e o pranto de suas madrugadas.
Compreendo, também, sua tristeza ante a ânsia que traz na alma presa de adejar cortando monte e serra; sua ânsia de voar, cantando notas, misturar seu voo ao das gaivotas, que beijam os céus sem deixar a terra.
Mas, ao lado dos atos de grandeza, você me causa, filho, também tristeza, em desgosto minh’alma já flutua: Ontem, porque não estava pronta a ceia, pra sua mãe você fez cara feia, bateu a porta e foi jantar na rua.
Você não soube, meu filho, e no entanto, Ela caiu prostrada em um pranto soluçando seu íntimo desgosto. Nunca mais, meu filho, isto faça, pois para o filho não há maior desgraça que em sua mãe deixar rugas no rosto.
Nunca mais a ofenda, nem de leve!… O seu amor a ela aos céus eleve e escute sempre, sempre o que ela diz. Peça a Deus para durar sua existência e, se assim fizer de consciência, você, na vida, tem que ser feliz.
Conduza-se na vida com altivez, fazendo da probidade, da honradez, para você o seu forte brasão; aprofunde-se, meu filho, no estudo, fazendo da justiça o seu escudo, amando o povo como ao seu irmão.
Continue no trabalho a que se entregas sem temer obstáculo nem refrega, pois com a vitória sempre você vai, e se assim fizer, querido filho, sua vida há de ser toda de brilho, e honrará o nome de seu pai.
E nisso a nuvem comoventemente, aos poucos se junta novamente, envolvendo meu pai num denso véu; e num olhar meigo e bem sereno, dirige para mim um triste aceno e vai de novo subindo para o céu!
E eu fiquei chorando de saudade, alimentando aquela ansiedade, sem poder abrandá-la. Que castigo! Por isso nunca mais dormi. Vivo na ânsia, esperando que meu Pai rompa a distância, pra vir de novo conversar comigo!
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HABEAS PINHUS
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 07 de novembro de 2020
DUAS CANTORIAS DE EMBOLADA (PESQUISA DE PEDRO FERNANDO MALTA, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)
O grande poeta paraibano Manoel Lourenço da Silva, o Manoel Xudu (1932-1985)
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Dia 13 de março terça-feira Ano mil novecentos trinta e dois Pouco tempo depois que o sol se pôs Mamãe dava gemidos na esteira Numa casa de barro e de madeira Muito humilde coberta de capim Eu nasci pra viver sofrendo assim Minha dor vem dos tempos de menino Vivo triste por causa do destino E a saudade correndo atrás de mim.
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O mar se orgulha por ser vigoroso, Forte, gigantesco que nada lhe imita Se ergue, se abaixa, se move, se agita, Parece um dragão feroz e raivoso. É verde, azulado, sereno, espumoso; Se espalha na terra, quer subir pro ar, Se sacode todo, querendo voar, Retumba, ribomba, peneira, balança, Nem sangra, nem seca, nem para, nem cansa, São esses fenômenos da beira do mar.
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Analise o caju e a castanha, São os dois pendurados num só cacho, Bem unidos, um em cima, outro embaixo, Porém tendo um do outro a forma estranha, Dela, extrai o azeite, o sumo, a banha, Dele, o suco pro vinho e o licor, Quando ambos maduros mudam a cor Ele fica amarelo e ela escura, Mas o gosto dos dois não se mistura, Quanto é grande o poder do Criador.
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Não há tempestades e nem furacões, Chuvada de pedra no bosque esquisito Quedas de coriscos e meteorito Tiros de granadas, obuses, canhões, Juntando os ribombos de muitos trovões Que tem pipocado na massa do ar Cascata rugindo, serra a desabar, Estrondo, ribombos, rumores de guerra, Nuvens mareantes, tremores de terra Que imitem a zoada na beira do mar.
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Voei célere aos campos da certeza E com os fluidos da paz banhei a mente Pra falar do Senhor Onipotente Criador da Suprema Natureza Fez do céu reino vasto, onde a beleza Edifica seu magno pedestal Infinita mansão celestial Onde Deus empunhou saber profundo Pra sabermos nas curvas deste mundo Que ele impera no trono divinal.
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Os astros louros do céu encantador Quando um nasce brilhando, outro se some E cada astro brilhante tem um nome Um tamanho, uma forma, brilho e cor Lacrimosos vertendo resplendor Como corpos de pérolas enfeitados Entre tronos de plumas bem sentados Vigiando as fortunas majestosas Que Deus guarda nas torres luminosas Que flutuam nos paramos azulados.
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Quando eu segurei a tua mão Foi achando que ela estava fria Ela tava tão quente e tão macia Igualmente um capucho de algodão Vou mandar repartir meu coração Pra fazer-te presente da metade Pra gente ficar de igualdade Tu me dá teu retrato eu dou o meu O retrato me serve de museu Pra eu guardar meu romance de saudade.
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O nome da minha amada Escrevi com emoção Na palma da minha mão, No cabo da minha enxada No batente da calçada E no fundo da bacia Na casca de melancia Mais grossa do meu roçado Pode ir lá que tá gravado O nome Ana Maria.
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Eu admiro um caixão Comprido como um navio Em cima uma cruz de prata No meio um defunto frio E um cordão de São Francisco Torcido como um pavio.
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O homem que bem pensar Não tira a vida de um grilo A mata fica calada O bosque fica intranquilo A lua fica chorosa Por não poder mais ouvi-lo.
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Sou igualmente a pião saindo de uma ponteira que quando bate no chão chega levanta a poeira com tanta velocidade que muda a cor da madeira.
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Tristeza é a do peruzinho Beliscando essa maniva Correndo atrás da galinha A sua mãe adotiva Como quem está dizendo Ah se mamãe fosse viva !
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A mulher que eu casei Além de linda é brejeira Daquelas que vai à missa No domingo e terça-feira Das que faz uma sombrinha Com um pé de carrapateira.
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Estou como um penitente Que não possui um barraco, Dorme à-toa pela rua, Um guabiru fura o saco, Quando recebe uma esmola Ela cai pelo buraco.
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Judas pegou uma corda, Morreu com ela enforcado, Não estava arrependido, Estava desesperado, E o desespero da culpa Nunca redime o pecado.
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Com você canto apertado Que só cobra de cipó. Que, com três dias de fome, Tenta engolir um mocó, De tanto forçar a boca, Finda estourando o gogó.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas domingo, 25 de outubro de 2020
PINTO DE MONTEIRO, UM GÊNIO DA CANTORIA (CORDEL DE PEDRO FERNANDO MALTA, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)
O paraibano Severino Lourenço da Silva Pinto, o Pinto do Monteiro (1895-1990)
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A resposta de Pinto de Monteiro numa cantoria com João Furiba:
João Furiba:
Cruzei o velho Saara montado numa bicicleta. Matei leão de tabefe, Crivei serpente de seta. Fiz das penas d’uma hiena Um blusão pra minha neta.
Pinto do Monteiro:
João até que é bom poeta Mas sabe ler bem pouquinho. Vou fazer-lhe uma pergunta, responda meu amiguinho : – Quem diabo foi que te disse que hiena é passarinho ?
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Alguns improvisos de Pinto de Monteiro:
O meu cavalo é dum jeito Que nem o diabo aguenta, Entra no mato fechado, Toda madeira arrebenta, Dá tapa em bunda de boi Que a merda sai pela venta.
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Lá no meio da caatinga, Sem moradia vizinha Bem na beira de um riacho Um pé de palmeira tinha. Meu avô, nesse lugar, Começou a trabalhar E chamar de Carnaubinha. Parece que estou vendo Um homem cortando cana; Uma engenhoca moendo Os três dias da semana. Fazer cerca, queimar broca, Raspar milho e mandioca, Da massa, fazer farinha; Comer com mel de engenho, Ai, que saudades que eu tenho Da minha Carnaubinha.
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Ovo de pato e marreca Quebrar na beira do poço, Abrir milho, na boneca, Pra ver se tinha caroço; Ir pra beira da estrada Jogar pedra e dar pancada Em cabra, bode e suíno; Em cachorro, pontapé, Que isso tudo foi e é Brincadeira de menino.
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Mas essa estória de dente, Para mim, nada adianta; Eu não preciso de dente; Eu quero é peito e garganta: Pois sabiá não tem dente, É quem mais bonito canta!
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Eu sou Severino Pinto Da Paraíba do Norte Sou feio, porém sou bom Sou magro, mas muito forte Depois d’eu tomar destino Temo a Deus não temo à morte.
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Há vários dias que ando, Com o satanás na corcunda: Pois, hoje, almocei na casa Duma negra tão imunda, Que a prensa de espremer queijo Era as bochechas da bunda!
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Eu admiro o tatu Com desenho no espinhaço Que a natureza fez Sem ter régua nem compasso E eu com compasso e régua Tenho planejado e não faço.
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Esta palavra saudade conheço desde criança saudade de amor ausente não é saudade, é lembrança saudade só é saudade quando morre a esperança.
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Gostei muito de mulher No meu tempo de rapaz Mas depois que fiquei velho A trouxa envergou pra trás Sentou-se em cima dos ovos Que a ponta encostou no ás.
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Admiro o vagalume Enxergando de mato a dentro Com sua lanterna acesa Sem se importar com o vento Apaga de vez em quando Poupando seus elementos.
(“elemento” no linguajar nordestino é pilha)
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No tempo da mocidade Eu também já fui vaqueiro. Não tinha jurema grossa, Mororó nem marmeleiro. Fui cabra de vista boa, Negro de corpo maneiro.
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SEVERINO PINTO E LOURIVAL BATISTA
Uma cantoria improvisada de Meia-Quadra nos anos 70
Constante da coleção Música Popular do Nordeste, organizada por Marcus Pereira
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 10 de outubro de 2020
GERALDO AMÂNCIO E SEBASTIÃO DA SILVA: UMA GRANDE DUPLA DE POETAS REPENTISTAS
Geraldo Amâncio e Sebastião da Silva glosando o mote:
Se eu pudesse comprava a mocidade Nem que fosse pagando a prestação
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Geraldo Amâncio e Sebastião da Silva glosando o mote:
Quem passar no sertão corre com medo das caveiras dos bois que a seca mata.
Geraldo Amâncio:
No sertão do Nordeste do Brasil, vive a seca ao povo castigar pouca água até pra se banhar. Daqui pobre povo sempre fugiu para trás deixou tudo quando partiu. Quando parte nosso cabeça-chata busca a vida ganhar sem bravata. Sofrimento deste povo foi enredo. Quem passa no sertão corre com medo das caveiras dos bois que a seca mata.
Sebastião da Silva:
Sertanejo, foi sempre muito bravo, mas correndo da seca que atormenta, larga a terra que pouco lhe alimenta. Deixa sua terra para ser escravo, mundo afora não ganha um centavo. Mas voltar à sua terra a fé lhe ata, mesmo que nunca tenha uma data, até quem partiu daqui muito cedo. Quem passar no sertão corre com medo das caveiras dos bois que a seca mata.
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ALGUNS IMPROVISOS DE GERALDO AMÂNCIO E SEBASTIÃO DA SILVA
Geraldo Amâncio:
Eu bem novo pensei em me casar Com uma moça do meu conhecimento Disse ela: eu aceito o casamento Se você deixar a arte de cantar Ela estava esperando no altar E eu voltei da calçada da matriz Quebrei todas as juras que lhe fiz E comecei a cantar dali por diante Sou feliz porque sou representante Da cultura mais bela do país.
Sebastião da Silva:
O Nordeste tem sido a grande escola Dos maiores poetas cantadores Sustentáculos e eternos defensores Da origem maior que nos consola Inspirados no ritmo da viola Nos acordes de arame na madeira Cantam de improviso a vida inteira E o que cantam somente Deus ensina Venham ver a viola nordestina Defendendo a cultura brasileira.
Geraldo Amâncio:
Tire da bíblia sagrada Sua perfeita lição, Seja humilde, ajude ao próximo Ao faminto estenda a mão; Console quem está aflito Se quiser seu nome escrito No livro da salvação!
Sebastião da Silva:
A casa que morei nela, que fui feliz com meus pais, só restam teias de aranha, cupim roendo os frechais, é um poema de angústias, de saudades, nada mais.
Geraldo Amâncio:
Quem nasce onde eu nasci E se cria sem escola, Andando com pés descalços Ou corrulepe de sola, Ou cresce pra ser vaqueiro Ou cantador de viola.
Sebastião da Silva:
Gosto de ouvir a seresta Da patativa-de-gola E também do canarinho Nas traves de uma gaiola: Só não canta como a gente Porque não possui viola.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 03 de outubro de 2020
OTACÍLIO BATISTA, UM GÊNIO DA CANTORIA NORDESTINA (CORDEL DE PEDRO FERNANDO MALTA, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)
Nas brancas sereias formosas da praia Um homem com trinta e seis anos de idade Chorava com pena dessa humanidade Que tomba, desmaia, delira e fracassa Usava um túnica da cor de cambraia Seus olhos brilhavam sem pestanejar Nenhuma sereia podia imitar Sua voz de veludo a Deus dirigida Eu sou o caminho, a verdade e a vida Palavras de Cristo na beira do mar.
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Um caboclo na cabana Deitado em sua palhoça Olhando o verde da roça Diz sorrindo pra serrana: Bote um traguinho de cana. Bebe, tempera a garganta Almoça, pensa na janta Faz um cigarro de fumo Abre a porta e sai no rumo Da sombra de qualquer planta.
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Essa terra prendeu meu coração Sua brisa daqui é mais suave, O seu som para mim, pois é mais grave O oceano possui mais perfeição, Esse povo tem mais educação E essa gente daqui é muito boa, Quando olho a paisagem da lagoa Para mim, pois imita um jardim, É por isso que eu digo sempre assim Deus me livre sair de João Pessoa.
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Ao romper da madrugada, um vento manso desliza, mais tarde ao sopro da brisa, sai voando a passarada. Uma tocha avermelhada aparece lentamente, na janela do nascente, saudando o romper da aurora, no sertão que a gente mora mora o coração da gente.
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O cantador violeiro longe da terra querida, sente um vazio na vida, tornando prisioneiro, olha o pinho companheiro, aí começa a tocar, tem vontade de cantar, mas lhe falta inspiração. Que a saudade do sertão faz o poeta chorar.
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Seis Poetas geniais honram da poesia o manto, seis estrelas divinais, que o mundo admira tanto: Dante, Camões e Virgílio, Louro, Dimas e Otacílio, Não morrem, mudam de canto.
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Há beijo que vale o beijo Porém meu avô dizia: Atrás dos lábios que beijam Vive oculta a covardia, Com os dentes que dilaceram E a língua que calunia.
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Fiz da santa poesia a mensageira Da pobreza mais pobre do país, É pequeno o poeta que não diz Quanto sofre a criança brasileira Ninguém pode viver dessa maneira Sem um teto, sem lar, sem pão, sem nome Quem é filho de rico bebe e come, Quem é filho de pobre não escapa, As crianças sem papa pedem ao PAPA Santo Papa dê papa a quem tem fome.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 26 de setembro de 2020
DOIS MOTES BEM GLOSADOS - 26.09.20 (CORDEL DE PEDRO FERNANDO MALTA, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)
Fez de mim objeto descartável Que usou, abusou e jogou fora
Todo mundo sonha com um grande amor Com alguém que o ame de verdade Hoje lembro sem um pingo de saudade E até com um tanto de torpor Como fui inocente e credor Enganando-me com o teu olhar outrora Pois a alma apaixonada ignora E ignorei o quanto eras miserável Fez de mim objeto descartável Que usou, abusou e jogou fora
Eu pensei reconhecer em um olhar O haver verdade em alguém E em ti acreditei ver tanto bem Que desejei mais ainda te amar Hoje sei, depois de todo o penar Que ao semblante o fingimento se incorpora E fingida é o que fostes cada hora Me tornando um idiota memorável Fez de mim objeto descartável Que usou, abusou e jogou fora
Ainda assim, depois do que me aprontou Sei que agora faz carinha de inocente E com esse jeito engana a muita gente Assim como igualmente me enganou Se faz vítima daquele a quem vitimou Mas quem te apoia ainda terá a sua hora Pois uma cobra sempre morde sem demora E tu és cobra, venenosa, incurável Fez de mim objeto descartável Que usou, abusou e jogou fora
Quando mais precisastes de alguém Lá estive para poder te apoiar Te dizendo o que sonhavas escutar E jamais te foi dito por ninguém Eu te fiz muito mais que muito bem E me pagaste como declaro agora Com ingratidão e mentira por penhora Numa atitude totalmente inexplicável Fez de mim objeto descartável Que usou, abusou e jogou fora
Eu me culpo, me arrependo, me castigo Por ter sido o que para ti me fiz ser O homem que toda mulher deseja ter Carinhoso, indulgente, grande amigo Pois em troca, tu fostes para comigo Traiçoeira e maldosa, indo embora Tão logo tua dor teve melhora E meu amor então tornou-se dispensável Fez de mim objeto descartável Que usou, abusou e jogou fora
Mas bem sei que a Justiça não falhará E do mal que me fizestes terás troco Teu coração também será feito de louco Por alguém que, sorrindo, te enganará E, nesse dia, você se lembrará Que este é o saldo de tua troca de outrora Mal por mal, também levarás um fora E chorarás, dizendo em pranto lastimável: Fez de mim objeto descartável Que usou, abusou e jogou fora.
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Carlos Severiano Cavalcanti glosando o mote:
Revelei o meu filme preto-e-branco, O retrato exibiu sertanidade.
No Nordeste, saí a cavalgar, percorri o sobejo das restingas, contornei as arestas das caatingas sob o sol, procurei fotografar a paisagem sem vida do lugar, na intenção de mostrar a fealdade do sertão quando traz a soledade e borrifa de suor o meu potranco. Revelei o meu filme preto-e-branco, o retrato exibiu sertanidade.
Xiquexique sem flor junto a facheiros, galhos secos torcidos nos arbustos, vegetais tortuosos e combustos espetando as encostas dos outeiros. Carrascais entorroam tabuleiros das coroas furentas, as de-frade que vicejam naquela imensidade quando o sol cobre a rocha em cada flanco. Revelei o meu filme preto-e-branco, o retrato exibiu sertanidade.
Legiões de famintos retirantes fugitivos do fogo da coivara, passageiros de muitos paus-de-arara, buscam vidas em terras mais distantes. Os que ficam são trôpegos errantes, filhos órfãos da mãe calamidade, empurrados à marginalidade na vivência cruel desse atravanco. Revelei o meu filme preto-e-branco, o retrato exibiu sertanidade.
Já cansado de ver triste paisagem, desisti de esporar o meu cavalo, preferi buscar água pra lavá-lo, procurando abrandar nossa viagem. Entretanto, faltou-nos a coragem, o cansaço tirou-me a agilidade, o potranco a mostrar debilidade, percebi que o cavalo estava manco. Revelei o meu filme preto-e-branco, o retrato exibiu sertanidade.
Meu cavalo cansou. Faltou ração. Acabaram-se os filmes que comprei, todos eles eu mesmo revelei, registrei a crueza do sertão. No meu álbum deixei a coleção tradutora da dor e da orfandade, com perfis exibindo obesidade, nessa vida de rude solavanco. Revelei o meu filme preto-e-branco, o retrato exibiu sertanidade.
E naquele ambiente de mormaço, encerrei na metade o meu roteiro, procurei descansar num juazeiro, coloquei a cabeça sobre o braço, relaxei e dormi, pois o cansaço reduziu-me o vigor pela metade. Despertei temeroso da cidade e sentei-me a pensar, sobre um barranco. Revelei o meu filme preto-e-branco, o retrato exibiu sertanidade.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 19 de setembro de 2020
O grande poeta cantador João Pereira da Luz, o João Paraibano (1952-2014)
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João Paraibano glosando o mote
Obrigado meu Deus por ter me feito Nordestino, poeta e cantador.
Já nasci inspirado no ponteio Dos bordões da viola nordestina Vendo as serras banhadas de neblina Com uma lua imprensada pelo meio Mãe fazendo oração de mão no seio E uma rede ferindo um armador Minha boca pagã cheirando a flor Deslizando no bico do seu peito Obrigado meu Deus por ter me feito Nordestino, poeta e cantador.
Me criei com cuscuz e leite quente Jerimum de fazenda e melancia Com seis anos de idade eu já sabia Quantas rimas se usava num repente Fui nascido nas mãos da assistente Na ausência dos olhos do doutor Mamãe nunca fez sexo sem amor Papai nunca abriu mão do seu direito Obrigado meu Deus por ter me feito Nordestino, poeta e cantador.
Fiz farofa de pão de mucunã Me inspirei com o velhinho do roçado O sertão é o palco esverdeado Que eu ensaio as canções do amanhã Minha artista da seca é acauã No inverno o carão é meu cantor Um imbu espremido é meu licor Um juá eu não dou por um confeito Obrigado meu Deus por ter me feito Nordestino, poeta e cantador.
Minha vida do campo foi liberto Merendando café com milho assado Vendo a lua nas brechas do telhado E o vento empurrando a porta aberta Um jumento me dando a hora certa Já o galo era meu despertador Meu mingau foi pirão de corredor Eu cresci forte e gordo desse jeito Obrigado meu Deus por ter me feito Nordestino, poeta e cantador.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 12 de setembro de 2020
Sepultura é a única residência Que não cobra aluguel do morador.
Pra quem vai prestar contas a Jesus Tem pra sempre gratuita uma morada E como símbolo na porta de entrada Tem o nome do dono numa cruz Não tem conta de água nem de luz Não precisa avalista ou corretor E Deus perdoa seu saldo devedor Quando o banco da vida abre falência Sepultura é a única residência Que não cobra aluguel do morador.
Não existe desvio no caminho Quando o cerco da morte está armado Pelos súditos o rei vive cercado Mas no dia que morre vai sozinho Dos dois lados do túmulo tem vizinho Mas não há um diálogo a se propor E a caveira jamais vai recompor A beleza que tinha a aparência Sepultura é a única residência Que não cobra aluguel do morador.
O local é salgado pelo pranto Dos que perdem seus entes mais queridos Os irmãos, as esposas, os maridos E os amigos que vão praquele canto Condomínio fechado, campo santo É pra lá que vai todo pecador E ao entrar a balança do Senhor Tira um peso da nossa consciência Sepultura é a única residência Que não cobra aluguel do morador.
Empresário, princesa, vagabundo Evangélico e ateu, homem ou mulher Apesar de ser grátis ninguém quer Nesta casa morar nenhum segundo O portal que nos leva a outro mundo Não exige função superior E nem precisa RG que o emissor Quando chama já sabe a referência Sepultura é a única residência Que não cobra aluguel do morador.
Com chibanca ou enxada o homem faz Esta casa sem planta e sem dinâmica Onde o piso é sem pedra de cerâmica E o seu teto sem lustres de cristais Sem textura as paredes laterais Sem contato com o mundo exterior E uma hora qualquer seu construtor Vai pra lá encerrar sua existência Sepultura é a única residência Que não cobra aluguel do morador.
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Dedé Monteiro glosando o mote:
São os sons que ninguém pode esquecer Se já foi residente no sertão.
O latido amistoso de um “jupi”, Vira-lata raçudo sem ter raça, Uma banda de pífanos na praça, O penoso cartar da juriti, Um boaito saindo do jequi E um vaqueiro a pegá-lo pela mão, O estrondo redondo do trovão Avisando que em breve vai chover, São os sons que ninguém pode esquecer Se já foi residente no sertão.
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Zé Silva glosando o mote
Mocidade é um vento passageiro Beija a face da gente e vai embora.
Como é bom ser menino, ser criança, Ter um mundo de sonhos, de ilusões, Caminhar num caminho de emoções, Aquecido no sol da esperança. No entanto, esse tempo de bonança, Como tudo que é bom, pouco demora. Como a marcha dos anos me apavora E a tudo transforma tão ligeiro! Mocidade é um vento passageiro Beija a face da gente e vai embora.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 05 de setembro de 2020
Dois ícones da cantoria nordestina de improviso: Lourival Batista, o Louro do Pajeú (1915-1992)
e Severino Pinto, o Pinto de Monteiro (1895-1990)
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Uma cantoria de Pinto do Monteiro e Lourival Batista
Pinto do Monteiro
É certo, meu camarada O que você tá dizendo Eu costumo andar assim Sujo e cheio de remendo Mas ninguém diz onde eu passo: “Pinto ficou me devendo.”
Lourival Batista
De ninguém ando correndo Pois não faço maus papéis Não devo, o que compro pago Desde o perfume aos anéis Seja chapéu pra cabeça Ou sapato para os pés.
Pinto do Monteiro
E os duzentos e dez Que tu tomaste a Armando? Por uns quatro ou cinco dias O tempo foi se passando Já faz quatro ou cinco meses Ó ele ali esperando!
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Uma cantoria de Sebastião da Silva e Moacir Laurentino:
Moacir Laurentino
No inverno estou feliz, trabalhando o meu dia, olhando o saguim na mata, que saltita, canta e pia, e o passa-sebo furando a casca da melancia.
Sebastião da Silva
No calor do meio dia, escutar uma peitica, deitado em colchão de folha debaixo da oiticica, quanto mais o sol esquenta mais bonito o sertão fica.
Moacir Laurentino
A água desce na bica quando chove em fevereiro, no terreiro o peru roda, fuça um porco no aceiro, e a água desce do corgo com basculho pra o barreiro.
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Uma cantoria de Silveira e Diniz Vitorino
Silveira
Tu não faz a metade do que faço Quando eu pego um cantor se acaba o nome Nesse dia os cães não passam fome E urubus festejam no espaço Deixo o corpo do pobre num bagaço Exposto ao monturo seu despojo Cantor fraco eu só mato de arrojo E a folia se arrancha na ossada Sai a alma gritando abandonada E o diabo não quer porque tem nojo.
Diniz Vitorino
No momento que eu me aperreio Com o peso esquisito do meu braço Não existe prisão feita de aço Que com o murro eu não parta pelo meio No momento que acabo com o esteio Que alguém pra fazer gasta um ano Tiro telha, quebro ripa, envergo cano De metal ou de aço bem maciço Você morre e não faz este serviço Só faz eu porque sou paraibano.
Silveira
Dei um murro na venta de um poeta Que a cabeça rodou fez piruetas E passando por todos os planetas Foi parar no reinado de um profeta Nisto um santo que viu ficou pateta A cabeça do vate estava um facho Uma alma gritou ô velho macho E são pedro gritou o que é isso? Disso um anjo que estava junto a cristo É silveira zangado lá embaixo.
Diniz Vitorino
Eu ja fui no inferno urgentemente E entrei numa poeta lá por trás E peguei um irmão de satanás E um primo, um irmão e um parente. Pra mostrar que eu sou cabra valente Dei um tapa no diabo carrancudo E peguei outro diabo cabeludo Dei-lhe tanto que o cabra ficou calvo Se você morrer hoje já ta salvo Que o que tinha de diabo eu matei tudo.
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CANTORIAS E FOLGUEDOS NORDESTINOS
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 29 de agosto de 2020
POETA PEDRO BANDEIRA, UM GÊNIO DA CANTORIA
POETA PEDRO BANDEIRA, UM GÊNIO DA CANTORIA
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Encantou-se na última segunda-feira (24), o poeta paraibano Pedro Bandeira de Caldas, aos 82 anos, vítima de uma parada cardíaca.
Pedro Badeira era natural de São José de Piranhas e faleceu em Juazeiro do Norte, onde morava.
Na Nação Nordestina, Pedro Bandeira ostentava o título de “Príncipe dos Poetas Populares”
Pedro Bandeira de Caldas (1938-2020)
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Pedro Bandeira
O sopapo do meu braço Todo cantador respeita Do lado esquerdo espatifo Lasco da banda direita Aonde eu baixo a munheca A bagaceira está feita.
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Pedro Bandeira – Jesus – Meu galope na beira do mar
Jesus – esperança da voz do perdão Divino cordeiro, poeta e pastor Juiz infalível do código do amor Estrela cadente da constelação Nascente perene do ventre do chão Painel que reflete na luz do luar O mundo é pequeno pra te comparar Perpétuo socorro dos desiludidos Farol que ilumina os barcos perdidos Cantando galope na beira do mar.
Jesus – padroeiro do homem de fé Cometa visível do largo horizonte Pedaços de pétalas que descem da fonte Deixando perfume no igarapé Estátua sagrada que tem como sé Um adro, uma igreja, um santo, um altar Piso envergonhado no teu patamar Gemendo, vergado no peso das culpas Orando, chorando, pedindo desculpas Cantando galope na beira do mar.
Jesus – o refúgio de nós pecadores Autor da orquestra do som dos arcanjos Poema evangélico do coro dos anjos Maestro do palco dos bons cantadores Canário que trina no leque das flores Artista das almas, que vive a cantar Lanterna profética do topo do altar Libélula que pousa no dorso da malva O homem é quem peca, Você é quem salva Cantando galope na beira do mar.
Jesus – oceano completo de encantos Angico frondoso coberto de ninhos Preserva a vivenda de seus passarinhos Com sopros de vida por todos recantos Lençol perfumado, consolo dos prantos Da alma penada que vive a chorar Nos teus lindos olhos quem bem reparar Vê duas lanternas nas noites de inverno Criança sorrindo no colo materno Cantando galope na beira do mar.
Jesus – tabernáculo de portas abertas Teus gestos são mansos, teus dias são calmos Profeta que prega o livro dos salmos Nas areias brancas das praias desertas Palavras de mãe no pão das ofertas Que a mãe carinhosa não sabe humilhar Ministro de Deus que vive a rezar Vaqueiro prudente das ovelhas mansas Patrão dos adultos, pastor das crianças Cantando galope na beira do mar.
Jesus – matemático que tira o atraso Escola sublime de todos os mestres Orvalho aromático das rosas silvestres Retrato de nimbus nas cores do ocaso Fiel seresteiro que em todo parnaso As musas pairaram pra lhe escutar Nasceu pra sofrer, morreu pra salvar Varou o deserto, quebrou a algema É chefe do fórum na corte suprema Cantando galope na beira do mar.
Jesus – primogênito, meu Deus e meu tudo Tenor das colinas, garganta sinfônica Toalha de sangue nas mãos de Verônica Guerreiro sem flecha, sem míssil ou escudo Rosário de pérolas, versículo de estudo profundo que o homem não pode igualar Minha ignorância queira perdoar Angústia das dores do monte calvário Segredo do sangue do Santo Sudário Cantando galope na beira do mar.
Jesus – solução dos grandes fracassos Amigo que chega na dor dos suplícios Nas horas difíceis de mil sacrifícios Feliz da pessoa que segue seus passos Levando-o no peito, na alma e nos braços Rasgando a floresta pra o corpo passar Quem anda contigo é certo chegar No pouso celeste dos aventurados Banhar-se na fonte, tirar os pecados Cantando galope na beira do mar.
Jesus – que perdoa os fracos de ações Estrela da paz, remédio da guerra A única pessoa do céu e da terra Que entende a linguagem de todas Nações Morreu coroado entre dois ladrões Cuspido e zombado da voz popular Tirou na história primeiro lugar Pendeu a cabeça pro lado direito Pra todos os séculos merece respeito Cantando galope na beira do mar.
Jesus Nazareno – filho de Maria Lições infindáveis dos povos essênios Espelho fantástico de todos os gênios Soluços da noite, sorrisos do dia Montanha escalável da teologia Caminho pra alma se regenerar Palavra gostosa de pronunciar Troféu dos humildes, perdão das ofensas Estrada infinita de todas as crenças Cantando galope na beira do mar.
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Pedro Bandeira – Eu não sei nem quem eu sou
No dia qui eu tou cá peste Eu não sei nem quem sou eu, Sou um fio do Nordeste Que por descuido nasceu. Cabôco do pé da serra Fio legítimo da terra De Inácio da Catingueira, Juvená do Picuí, De Zé Duda do Zumbí E Mané Gardino Bandeira.
Sou um dos fí de Jesus Qui nasceu por um arranjo, Na terra de Zé da Luz E de Argusto dos Anjo. Sou do mesmo tabuleiro Onde Pinto do Monteiro É o primeiro da lista, Cantador de desafôro Tirando lapa de couro Do rabo de repentista.
Sou dos cabra do Teixeira Do sertão véi sem imprêgo Da terra de Zé Limeira, E dotô Zé Lins do Rêgo. De Zé Américo de Armêida Orador da voz de seda Político da linha boa. Sou cantadô das coivara Do sertão das Ispinhara A capitá João Pessoa.
Sou um doido da viola Repentista vagabundo Como um jumento sem bola Sorto no ôco do mundo. Bibí água do riacho Onde todo cabra macho Se acorda de madrugada Sou um matuto pai-dégua Nasci na Baixa da égua Perto da tába lascada.
Sou um cabra resorvido Bicho sem assombração Poeta véio nascido No miolo do sertão. Sou neto de João Mandióca. Cumpadre de Cobra Choca. Mês de maio é o mês meu. Me batisei em oitubro Vou ver se ainda descubro Onde a garrota morreu.
Sou do cabo da enxada, Neto que dá língua a vó. Cabra da rede rasgada E um buraco no lençó. Sou da terra de Ugolino, Famia de Ontôe Sirvino, Parente de Lampião. Colega de Zé Catôta, Romeiro véio da gôta Do Padre Cícero Romão.”
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 22 de agosto de 2020
DOIS MOTES BEM GLOSADOS E UMA CANTORIA (CORDEL DE PEDRO FERNANDO MALTA, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)
João Pereira da Luz, o grande Poeta João Paraibano, Princesa Isabel-PB (1952-2014)
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Severino Feitosa e João Paraibano glosando o mote:
Escutar cantoria sem beber é dormir uma noite e não sonhar.
João Paraibano
O poeta nasceu com tanto brilho, que um verso que faz, de nada ensaia, no momento que está levando vaia, pensa ser nenhum tipo de elogio, eu na noite que estou cantando frio, quando um copo tiver para esquentar, que é mais fácil o poeta se inspirar no momento do álcool lhe aquecer. Escutar cantoria sem beber é dormir uma noite e não sonhar.
Severino Feitosa
Sem tomar uma dose de cinzano, licor, dreher, whisky, rum, cachaça, é ser músico, cantar em qualquer praça e não ter um teclado e nem piano, é fazer uma troca com cigano, e um canudo do curso não levar, dar um voto a um parlamentar que não tem liderança no poder. Escutar cantoria sem beber é dormir uma noite e não sonhar.
João Paraibano
Eu não bebo só água de cabaça, que do álcool também sou dependente, se faltar uma dose de aguardente, eu começo a tremer no meio da praça se faltar uma dose de cachaça, peço duas de whisky lá no bar, quem está frio, só pensa em se esquentar e a borracha não vai se encolher Escutar cantoria sem beber é dormir uma noite e não sonhar.
Severino Feitosa
O repente na noite divertida, pra o poeta que pega no instrumento para mim só terá contentamento, com direito a um copo de bebida, mas não tendo eu comparo a sua vida com um minuto tristonho de azar, a mulher toda noite se zangar não querer no seu corpo se aquecer. Escutar cantoria sem beber é dormir uma noite e não sonhar.
João Paraibano
Para um repentista de talento, fazer verso sem ter uma bicada é partir pra voltar no meio da estrada é ver cobra esquecendo de São Bento ou sair pra fazer o casamento, levar chifre na porta do altar, pegar sua semente pra plantar ver o mesma no chão apodrecer. Escutar cantoria sem beber é dormir uma noite e não sonhar.
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João Paraibano e Severino Feitosa glosando o mote:
O poeta é um ser iluminado que faz verso com arte e sentimento.
João Paraibano
Cada verso que o repentista faz, para mim tá presente em toda hora, no tinido do ferro da espora, na passada que vem dos animais, na cor verde que tem nos vegetais nas estrelas que têm no firmamento, tá na cruz do espinhaço do jumento, e no vaqueiro correndo atrás do gado. O poeta é um ser iluminado que faz verso com arte e sentimento.
Severino Feitosa
O poeta é um gênio que crepita no espaço azul esmeraldino, percorrendo as estradas do destino, sem saber o planeta aonde habita, sua mente pra o canto é infinita, cada verso que faz é seu sustento, é quem sabe cantar o parlamento, sem ter voto pra ser um deputado. O poeta é um ser iluminado que faz verso com arte e sentimento.
João Paraibano
Uma vida vivida no sertão, uma fruta madura já caindo, um relâmpago na nuvem se abrindo, um gemido do tiro do trovão, meia dúzia de amigos no salão, nem precisa de um piso de cimento, minha voz, as três cordas do instrumento, o meu quadro de louco está pintado. O poeta é um ser iluminado que faz verso com arte e sentimento.
Severino Feitosa
O poeta é um simples mensageiro, que acaba uma guerra e um conflito, ele sabe cantar o infinito, todas pedras que têm no tabuleiro, a passagem do fim do nevoeiro, que ultrapassa o azul do firmamento, que conhece o impulso desse vento, todas as rosas que enfeitam o nosso prado. O poeta é um ser iluminado que faz verso com arte e sentimento.
João Paraibano
Foi mamãe que me deu a luz da vida e me ensinou a viver da humildade, eu nasci para ter felicidade, porque toco na lira adquirida, poesia me serve de bebida, um concerto me serve de alimento, uma pedra me serve de assento e todo rancho de palha é meu reinado. O poeta é um ser iluminado que faz verso com arte e sentimento.
Severino Feitosa
O poeta é uma criatura que procura mostrar, no seu caminho, toda uva do fabrico de vinho, e toda planta que faz nossa fartura, é quem sabe cantar a amargura da pessoa, que está num sofrimento, é quem sabe cantar o regimento do quartel, que Jesus é delegado. O poeta é um ser iluminado que faz verso com arte e sentimento.
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UMA CANTORIA
Moacir Laurentino cantando O VELHINHO DO ROÇADO, de autoria do poeta Expedito Sobrinho
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 15 de agosto de 2020
A grande dupla de cantadores Sebastião Silva e Moacir Laurentino glosando o mote:
Sem a minha viola eu não sou nada, mas sou tudo com ela no meu peito.
Sebastião da Silva:
Essa minha viola é companheira, que dá tudo o que quero em minha vida, é a deusa total e tão sentida, que me serve de amiga a vida inteira, essa minha viola é padroeira, é a deusa que dorme no meu leito, é a força que causa grande efeito, é a deusa divina idolatrada. Sem a minha viola eu não sou nada, mas sou tudo com ela no meu peito.
Moacir Laurentino:
Eu sem esse pedaço de madeira, já não tinha alegria em minha vida, minha face seria entristecida, porque falta a legítima companheira, ela toca comigo a noite inteira, eu com ela decanto satisfeito, da maneira dum caboco do eito, arrastando no cabo da enxada. Sem a minha viola eu não sou nada, mas sou tudo com ela no meu peito.
Sebastião da Silva:
Com a minha viola em minha mão, penso, toco, divirto, bebo e canto, vou com ela feliz pra todo canto, pra exercer muito bem a profissão, é com ela que eu tenho inspiração, o meu verso no ato sai direito, no repente que faço eu aproveito caminhando feliz na minha estrada. Sem a minha viola eu não sou nada, mas sou tudo com ela no meu peito.
Moacir Laurentino:
Essa minha viola é ganha pão, misturada com minha cantoria, sacrifício, talento e melodia, e um pouquinho da minha inspiração, a palheta pegada em minha mão, e o baião tão saudoso sai perfeito, que eu com ela pelejo e me ajeito, e num instante fazer bela toada. Sem a minha viola eu não sou nada, mas sou tudo com ela no meu peito.
Sebastião da Silva:
É a viola que espanta as minhas dores, é quem mata as mágoas que eu sinto, com a minha viola em meu recinto canto modas em músicas e tenores, gosto muito de ouvir dois cantadores, para o povo ficar mais satisfeito, um poeta canhoto, outro direito, e a cantiga bastante fermentada. Sem a minha viola eu não sou nada, mas sou tudo com ela no meu peito.
Moacir Laurentino:
Sem a minha viola eu vou sofrer, mas com ela inda gozo em meu destino, que ela segue o poeta Laurentino, e acompanha o que eu posso dizer, que me dá de comer e de beber, e com ela eu não tenho preconceito, ao contrário aumentou o meu conceito, ela é minha eterna namorada. Sem a minha viola eu não sou nada, mas sou tudo com ela no meu peito.
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A DUPLA IMPROVISANDO NUM QUADRÃO PERGUNTADO
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 08 de agosto de 2020
SEIS MESTRES DO IMPROVISO - 08.08.20 (CORDEL DE PEDRO FERNANDO MALTA, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)
Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré, Assaré-CE (1909-2002)
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Patativa do Assaré:
Sou poeta afamado das bandas do Assaré respeito home casado, moça, menina e muié, pra acabar com essa peleja pode ser que sua mãe seja pueta tirando o é.
Antonio Marinho do Nascimento:
Eu sou de uma terra de heróis e vilões Valentes, covardes, fortes e fracos De pretos, de brancos, brilhantes e opacos De homens- farrapos, de homens-brasões Todos personagens de destruições Que ousam, que teimam a história manchar O índio morrendo e o negro a clamar Que seu cativeiro chegasse ao final Sentindo o chicote frio de Portugal Fazer jorrar sangue na beira do mar .
Otacílio Batista Patriota:
Ao romper da madrugada, um vento manso desliza, mais tarde ao sopro da brisa, sai voando a passarada. Uma tocha avermelhada aparece lentamente, na janela do nascente, saudando o romper da aurora, no sertão que a gente mora, mora o coração da gente.
O cantador violeiro longe da terra querida, sente um vazio na vida, tornando prisioneiro, olha o pinho companheiro, aí começa a tocar, tem vontade de cantar, mas lhe falta inspiração. Que a saudade do sertão faz o poeta chorar.
João Viana dos Santos:
Há entre o homem e o tempo Contradições bem fatais, O homem não faz, mas diz, O tempo não diz , mas faz, O homem não traz nem leva, Mas o tempo leva e trás.
Lira Flores:
Quando as tripas da terra mal se agitam E os metais derretidos se confundem E os escuros diamantes que se fundem Das crateras ao ar se precipitam, As vulcânicas ondas que vomitam Grossas bagas de ferro incendiado Em redor deixam tudo sepultado! Só com o som da viola que me ajuda, Treme o sol, treme a terra, o tempo muda, Eu cantando martelo agalopado!
Glauco Mattoso:
Ninguém usa o martelo que nem eu, Martelando o dedão largo, na ponta Do pé chato do mano que me monta: Sangue bom, da linhagem do plebeu, Que Bocage e Rabelo jamais leu, Mas que tira casquinha dum coitado Com requinte capaz de ser cantado! Quem foi rei nunca perde a majestade, E eu que sou, também, súdito de Sade, Virei rei do martelo agalopado!
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 25 de julho de 2020
CEGO ADERALDO, UM GÊNIO DA POESIA POPULAR NORDESTINA
Aderaldo Ferreira de Araújo, o “Cego Aderaldo”, Crato-CE (1878-1967)
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A prisão deve ter sido Invenção de Lúcifer Eu só aceito a prisão Nos braços duma mulher Aguentando o que ela faz E fazendo o que ela quer.
Jesus a mim quis fazê Neste caso que se deu: Eu perdê a minha vista Meus olhos escureceu Mas estou cantando as virtudes Que a natureza me deu
Deus a mim deu a bola Para levar a cantoria Tirou a luz dos meus olhos Eu não vejo a luz do dia Porém eu levo a palavra Transcrita em poesia
Oh! Santo de Canindé! Que Deus te deu cinco chagas, Fazei com que este povo Para mim faça as pagas; Uma sucedendo as outras Como o mar soltando vagas!
Só nos falta ver agora Dar carrapato em farinha, Cobra com bicho-de-pé, Foice metida em bainha, Caçote criar bigode, Tarrafa feita sem linha.
Muito breve há de se ver Pisar-se vento em pilão, Botar freio em caranguejo, Fazer de gelo carvão, Carregar água em balaio, Burro subir em balão.
Ah! Se o passado voltasse, Todo cheio de ternura. Eu ainda tinha vista, Saía da vida escura… Como o passado não volta Aumenta minha tristeza: Só conheço o abandono Necessidade e pobreza.
A lagarta tem forma de serpente Quando vai viajando numa estrada, Mas, depois de metamorfoseada, Ela toma uma vida diferente: Cria asas de cor bem transparente, Verdadeiro vislumbre de beleza. Nem ciência, nem arte, nem riqueza Poderia pintar beleza igual. Isto é lei do Juiz Universal E é impulso da mão da natureza.
Quis casar-me, que loucura ! Quando pensei em casar, Deixei e fui meditar, Fui pensar na vida escura, Nesse cálice de amargura, Que recordo dia a dia, Mas ouvindo a melodia Fui sentindo a flor do goivo, De repente fiquei noivo Me casei com a poesia.
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Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 18 de julho de 2020
UMA DUPLA EM CANTORIA E UM FOLHETO SOBRE PABLO PICASSO
UMA DUPLA EM CANTORIA E UM FOLHETO SOBRE PABLO PICASSO
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A talentosa dupla de cantadores Rogério Menezes e Chico Alves em duas cantorias:
O açude Tá cheio, o chão molhado
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Desafio em Galope a Beira-Mar
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ABC DE PABLO PICASSO – Sá de João Pessoa
Artista como Picasso O mundo ainda não viu Feito têmpera de aço Do qual se faz o buril Genialidade tamanha Inata no Sul da Espanha Terra gitana e viril.
Bem cedo já começou A mexer com a pintura Ao Goya igual pintou Perfeitíssima figura Foi para a academia Aprender com maestria A retratar a natura.
“Ciência e Caridade” Foi sua obra acadêmica Longe da modernidade Como se fosse helênica O mundo não imagina Que o gênio vem em surdina E toma a forma edênica.
Depois ele vai a Madri A Barcelona e Paris Da pintura faz sua vida Assinando “Pablo Ruiz” Conhece Jacob e Soler Ama Fernanda Olivier Passa uma fase feliz.
Em novecentos e sete Picasso abraça o cubismo Com o seu amigo Braque Atira a arte ao abismo Eis que surge o embrião Filho da revolução Chamado surrealismo!
Foi na Galeria Vollard A primeira individual Agora corre em Paris A fama internacional A vida agitada o leva Ao corpo amado de Eva Uma paixão temporal.
Galga o sucesso e a fama Na própria cidade-luz Cria cenário pra balé E novo amor o seduz Conhece a divina Olga Cujo dançar o empolga Logo ao amor o conduz.
Homem de muitos amigos Cultor de todas as artes Cocteau e Apollinaire Encontra em toda parte E quando algum deles morre Somente a paixão o socorre Pra superar o descarte.
Intimista ou notório Picasso assim se desvela Os estilos se renovam Quando a arte se rebela É a vez do surrealismo Sepultar leve o cubismo Com féretro, coroa e vela!
Jaime Sabartés seu amigo Desde os tempos de rapaz Se torna seu secretário O artista produz em paz Além da litografia Picasso faz poesia E cenários teatrais.
Longe se houve o lamento Dos mutilados feridos É assim a guerra civil: Faz dos homens uns bandidos Irmão matando o irmão Fome, frio e desolação Multidão de desvalidos.
Max Jacob mais que amigo Morre num campo nazista Picasso está revoltado Vai ao Partido Comunista Busca a livre consciência Expõe na “Arte e Resistência” Chora a Espanha franquista.
Nada demonstra o horror De uma Nação oprimida Um quadro que não tem cor Mostra a expressão mais sofrida Trágica expressão nos fica Ver espantado o “Guernica” Morte real e dolorida.
O pintor pinta a tragédia Que a tragédia se anuncia O “Massacre da Coréia” Que Picasso em transe cria Inspira a “Pomba da Paz” E o prêmio Lênin da Paz A URSS então lhe daria.
Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno Maria De los Remédios Ciprian De La Santísima Trindad Ruiz y Picasso – dá Ideias do livre amanhã.
Quando vai Paul Éluard Também Françoise Gilot Jacqueline vira musa Que no outono encontrou A morte de Henri Matisse O faz meditar na velhice – O ano 90 chegou!
Rembrandt está presente Na arte de Pablo Picasso Ora aparece em gravuras Ocupando algum espaço Ora é um lindo camafeu Efígie de algum judeu Sátiro, nu, um devasso!
Sem Picasso nossa arte Seria um rio sem fim Foi atacando os gregos Os conceitos do latim Mas a arte como Arte Nasce viva em toda parte Sem começo, meio e fim.
“Tenho a morte como amante Diz ele em forma de queixa Penso nela o tempo todo É fiel como uma gueixa Num mundo em agitação As mulheres vêm e vão Mas só ela não me deixa”.
“Um quadro não deve ser Apenas mera ilusão A pintura nunca é prosa Antes – é poesia, canção, Quantas vezes num instante Vi que o amigo é o amante A cor azul – um furacão!”
“Vaidade das vaidades Eu não procuro – as encontro No fundo sou curioso Acerca de cada sonho Não gosto de concluir O quadro que há de vir De um pesadelo medonho”.
XX Séculos se passaram Para surgir um pintor Que transmitiu para a tela O sonho de um sofredor Braque, Dali ou Matisse As mulheres – que doidice Vivem em forma de cor.
Zombeteira a morte chega No ano de setenta e três A impiedosa nos levou Três Pablos de uma só vez Casals, Neruda e Picasso Já fazem artes no espaço Junto a Jaime Sabartés.
Til não é letra nem nada Mas Ele aparece aqui Para dar o nobre Adeus Ao gênio que conheci Através das mil gravuras Desenhos – óleos – pinturas Que na exposição eu vi.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 11 de julho de 2020
O PADRE QUE MATOU O BISPO: UM DOCUMENTÁRIO E UM FOLHETO
O PADRE QUE MATOU O BISPO: UM DOCUMENTÁRIO E UM FOLHETO
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Um folheto de José Soares – A MORTE DO BISPO DE GARANHUNS
Garanhuns está de luto: numa bisonha manhã foi morto dom Expedito, um bispo de alma sã, pelo revólver dum padre partidário de Satã.
Um padre matar um bispo quase não tem fundamento; maculou com sua fúria dos dez, este mandamento: ‘Não Matarás’, disse Deus no sagrado sacramento.
Quantas vezes esse padre lá no púlpito a pregar repetiu nos seus sermões que Deus não manda matar, quando ele próprio faz su’alma se condenar.
É lamentável leitores mas tudo se comprovou e desse drama de ontem que a todo o mundo abalou vou contar em poucas linhas como tudo se passou.
O padre Hozana Siqueira, vigário de Quipapá não cumpria pela regra a lei de Deus Geová, ligando pouco os deveres de ministro de Alá.
Porque ele, sendo padre estava no seu critério defender e pugnar pelo santo presbitério, combater e condenar qualquer ato deletério.
Mas o padre assim não fez e fugindo da rotina seguindo outro endereço fora da casa divina desrespeitando sem medo a lei da santa doutrina.
Seus atos precipitados lhe tiram toda razão prova que ele abraçara os atos do Deus pagão repudiando sem asco a cristã religião.
Se ele não tinha fibra pra ser ministro de Cristo, renunciasse à igreja; hoje estava fora disso: talvez não fosse assassino, odiado e mal visto.
Pois bem, esse dito padre coração de caifaz achou que tudo fazia e depois saísse em paz, dando uma vela a Deus e outra pra Satanaz.
Foi quando dom Expedito, o bispo de Garanhuns, sabendo daqueles fatos por rumores e zunzuns resolveu tirar o padre dos seus atos incumuns.
Fez ciente ao padre Hozana que este fazia jus à condenação de Deus por ser um padre sem luz ficando o mesmo suspenso da igreja de Jesus.
O bispo fez o ofício confiado em Geová e mandou ao padre Hozana, vigário de Quipapá, pra esse ficar suspenso de fazer sermões por lá.
O padre Hozana ficou bastante contrariado; consigo mesmo dizia ‘o bispo está enganado; eu sou padre na igreja mas fora sou um danado’.
De rato este padre Hozana tinha vida dezabrida; de púlpito da matriz, a sua doce guarida, ele espancava a pessoa que falasse de sua vida.
Descompunha os infelizes que iam lá na matriz; espancava até menores com sua fúria infeliz; dentro lá de Quipapá sempre fez o que bem quis.
Então esse dito padre, ao par da intimação, disse que dom Expedito iria pedir perdão a ele, por ordenar logo sua suspensão.
Com o revólver na cinta e no coração o mal, o padre Hozana seguiu pra difusora local tentando manchar o bispo, nessa hora seu rival.
Chegando na difusora lá não foi bem recebido; pra usar o microfone ele não foi atendido; então saiu furioso já bastante decidido.
Chegando na diocese, quando a porta se abriu, o bispo Expedito Lopes na sua frente surgiu; o padre como um demônio contra a vítima investiu.
Sacando de seu revólver nessa triste ocasião, três estampidos soaram foi tremenda a explosão, e logo dom Expedito ferido tombou no chão.
O primeiro que ouviu dos estampidos a zuada, soldado José Cordeiro, que, não sabendo de nada, foi entrando no palácio: ali cismou da parada.
Pois, o padre vinha louco correndo desembalado, entrando logo num jeep ali estacionado, saindo em velocidade com destino ignorado.
O soldado então entrou no palácio episcopal; seus olhos se depararam com um quadro sepulcral: dom Expedito jazia em sangue ali no local.
Dom Expedito gemia se contorcendo de dores; ele, sendo tão pacato, nunca pensou em horrores; estava em leito de espinhos quem tanto cuidou de flores.
Foi levado ao hospital dali a dado momento pois a notícia espalhou-se do triste acontecimento, e no Hospital Dom Moura parou o seu sofrimento.
Pois, não suportando as dores sua vida foi passada às duas horas e quinze de uma triste madrugada, deixando o povo tão triste e a cidade enlutada.
O mundo é um vale de lágrimas a morte temos por certo; nossa vida é por enquanto, nosso túmulo vive aberto; contente o bispo vivia porque ainda não sabia que a morte estava tão perto.
Terminarei, caros leitores, nada mais tenho a dizer; o triste acontecimento estou disposto a vender; de um jornal escrevi porque lá não assisti: melhor não pude fazer.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 04 de julho de 2020
UMA DECLAMAÇÃO E UM FOLHETO RARO E PRECIOSO DE PATATIVA DO ASSARÉ
UMA DECLAMAÇÃO E UM FOLHETO RARO E PRECIOSO
O poeta baiano Chapéu de Couro declamando um poema de sua autoria.
O tema é bem atual:
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UMA PRECIOSIDADE
Cordel escrito pelo saudoso Patativa do Assaré. Foi em 1946, quando então ela tinha 37 anos de idade.
Patativa usou o pseudônimo de Alberto Cipaúba.
O CRIME DE CARIÚS
Eu sou um poeta nato, Versejar é o meu ofício, Gosto da sinceridade, Versejo sem sacrifício, Sou filho de Pernambuco, Desta terra de Maurício.
Mas como nunca estudei E moro na Soledade Sem nunca dar os meus versos À luz da publicidade Ninguém conhece o meu nome Dentro da sociedade.
Porém a história de um crime Vou narrar, publicamente, Passou-se em 42 Da nossa era presente Na vila de Cariús Ao Ceará pretendente.
Portanto peço licença Aos leitores mais sensatos Que quero contar a todos Em meus versinhos exatos Como se deu a morte De Carlos Gomes de Matos.
Esse ilustre farmacêutico Que hoje na glória está Teve como berço o Crato, Nasceu e criou-se lá, Descendendo das melhores Famílias do Ceará.
De Pedro Gomes de Matos E a senhora Josefina Nasceu esse bom senhor, O qual teve a triste sina De morrer barbaramente Por uma fera assassina.
No rol da sociedade Vivia alegre e ditoso Branco, preto, rico e pobre, O chamavam de bondoso, Pois, além de competente Era muito caridoso.
Dentro de sua farmácia Trabalhava o dia inteiro, O seu negócio gozava De um conceito verdadeiro Na praça do Ceará, Recife e Rio de Janeiro.
Era casado; e a esposa, Dona Emília Mussalem O amava com o fervor Que uma santa esposa tem Porém o diabo não folga Quando um casal vive bem.
Diz-nos um velho rifão: Quem é bom não vive em paz, Quando a fortuna nos chega A miséria vem atrás, E não há quem esteja livre Dos laços de Satanás.
O Doutor Nelson Carreira Paraibano infiel, Estabeleceu-se no Crato Com seu destino cruel E praticou contra Carlos O mais horrível papel.
Esse orgulhoso Doutor, Tipo da perversidade, saiu lá da Paraíba Por causa de inimizade E veio então para o Crato Desacatar a cidade.
Com dois anos que o tal médico Se achava no Cariri Já era antipatizado Por muita gente dali Segundo as informações Que em vários jornais eu li.
Sempre onde ele conversava Seu assunto era questão, Pelo que logo notamos Seu perverso coração, Talvez até tenha sido Do bando de Lampião.
Gabava-se de valente, Apesar de muito fraco. Parece que a natureza Ocultou naquele saco O orgulho do peru E a trapaça do macaco.
Em Crato ele começou Mostrando grosseiros tratos, Falando contra a farmácia De Carlos Gomes de Matos E surgiu deste motivo O maior dos desacatos.
Certa vez Nelson Carreira Receitando um sertanejo Valeu-se da falsidade E aproveitou o ensejo Para assim satisfazer Seu satânico desejo.
E depois do exame feito E a receita escriturada Entregou-a a um cliente Porém com ordem passada Pra na farmácia de Carlos A mesma ser aviada.
Disse mais ao sertanejo Que, quando se despachasse, Novamente ao gabinete Com o remédio voltasse, Pois, sem o examinar Não convinha que tomasse.
Foi o matuto à farmácia Com a receita na mão E Carlos Gomes de Matos, Que não pensava em traição, Despachou a tal receita Com a devida atenção.
Com o remédio legal O bom camponês voltou Chegando ao gabinete Ao Doutor o entregou E este pegando o remédio Falsamente o revistou.
Logo depois de ter feito A falsa examinação, Disse ali, publicamente, Com ares de sabichão Que Carlos havia errado Sua manipulação.
E para melhor completar O papel do traiçoeiro Ordenou que o cliente Fosse à farmácia, ligeiro, Devolvesse o tal remédio E procurasse o dinheiro.
O matuto admirou-se Daquele mandado tal, Porque Carlos sempre foi Farmacêutico especial, De nome bem conhecido Do sertão à capital.
Mas contudo foi depressa O remédio devolver, Porém o bom farmacêutico Se escusou de receber E saiu com o sertanejo Para a questão resolver.
Chegando ao consultório Depois de uma saudação Disse: Doutor, por favor, Faça-me uma declaração: – Em que consiste o meu erro Nesta manipulação?
Carlos fez a pergunta Com o sertanejo ao seu lado O Doutor Nelson ficou Um tanto sobressaltado E negou, cinicamente, O que antes havia afirmado.
Porém o matuto ouvindo Atalhou, com certo tédio: Doutor, o senhor me disse Aqui mesmo neste prédio Que o Doutor Carlos errara No despachar do remédio.
Disse Carlos: doutor Nelson, Isso não lhe fica bem Rebaixar minha farmácia Que tanto critério tem E da qual até o presente Nunca se queixou ninguém.
Disse o doutor: de hoje em diante Em fiscal vou me tornar Para a sua farmácia Eu mesmo fiscalizar, Farmacêutico de hoje em diante Comigo vai se apertar.
Carlos com muita razão Replicou ao atrevido: Sendo assim eu também tenho O meu direito devido De fiscalizar os erros Que o senhor tem cometido.
O primeiro destes erros Causou a pior impressão O senhor, em minha prima, Aplicou uma injeção Contra a receita e a ordem Do senhor doutor Leão.
Maria Gomes de Matos A minha prima, a doente, Morreu depois da injeção Quase repentinamente E o doutor querendo eu dou Do fato a prova evidente.
Sabendo o doutor que Carlos Justa verdade dizia Se enfureceu de tal modo Que o corpo todo tremia Como cão raivoso sofrendo O choque da hidrofobia.
Enrubesceu-se de raiva, Mudou logo de feição, Pois nunca soube o que fosse O valor da educação E vibrou, afoitamente Em Carlos um bofetão.
Pois aquele astuto médico Do coração de chacal Estudou porém não Obedecer à moral Nele só reina o instinto Da natureza brutal.
O farmacêutico tombou Com a grande bofetada E saiu do consultório Sem ao doutor dizer nada Suportando a dor secreta Da sua honra ultrajada.
Ocultou consigo a mágoa Nunca se queixou a ninguém! Mas nele se lia um quê De quem não se sente bem, Demonstrando as qualidades Que o criterioso tem.
Do que fez o doutor Nelson Logo se espalhou a notícia E este, orgulhoso, crescendo Cada vez mais a malícia Trazia a casa guardada Por soldados da Polícia.
E além daqueles soldados Vigiando o seu abrigo Arranjou quatro capangas Que andavam sempre consigo Como se estivesse exposto Ao mais tremendo perigo.
Aquilo mais aumentou Sua grande antipatia Rodeado por capangas O pessoal sempre o via, De cada lado um revólver O bandoleiro trazia.
E Carlos Gomes de Matos Nem sequer tinha a lembrança De procurar o patife E tomar uma vingança Pois sempre foi u’a pessoa Modesta, sensata e mansa.
Mas um dia, por acaso, Aquele honrado senhor Numa das ruas do Crato Encontrando o tal doutor Sentiu magoar-se a ferida Dentro do seu pundonor.
De tomar uma vingança Chegou-lhe um certo desejo E sacando do revólver Fez com o mesmo um manejo Indo uma bala alojar-se No corpo de malfazejo.
Carlos sustou a arma Pois matá-lo não queria, Notando em seu inimigo O cúmulo da covardia, Pois nem sequer pegou num Dos revólveres que trazia.
Vendo o doutor que os capangas Não vieram lhe valer Valeu-se das grossas pernas Pensando que ia morrer Como quem diz: um Carreira Pode muito bem correr!
E assim que chegou em casa, O famoso valentão, Mandou um carro a Barbalha Buscar o doutor Leão, Pois os doutores do Crato Nenhum lhe dava atenção.
O doutor Leão Sampaio, Que em medicina é o tal, Chegando o fez o exame E terminou, afinal, Garantindo ao doutor Nelson Não ser o tiro mortal.
Este sabendo que o tiro Não lhe causaria a morte E conhecendo que em Crato A coisa não dava sorte, Voltou para sua terra A Paraíba do Norte.
Voltou; mas deixou em Crato Lembrança p’ra vida inteira: Além dos mais desacatos Deu um bolo de primeira De umas dezenas de contos No cofre da padroeira.
Deixemos o doutor Nelson Em sua terra natal, Urdindo tramas e tramas Atrás de fazer o mal, E vamos falar de Carlos Sobre o seu crime animal.
Após aquele ocorrido Carlos sendo interrogado Disse que no doutor Nelson Havia mesmo atirado E conforme manda a lei Foi o mesmo processado.
Não obstante ele ter A sua clara razão Pois baleou o doutor Em paga do bofetão Foi condenado a um ano E dois meses de prisão.
O doutor Nelson Carreira De tudo teve certeza Porém sempre o perseguia Com desmedida fereza Como o lobo sanguinário Que anda à procura da presa.
Certa vez Carlos se achava No Estado de Goiás E, quando pensou que ali Estava vivendo em paz, Notou que um cabra o seguia, Bem de longe, por detrás.
Aonde fosse o farmacêutico O cabra sempre o seguia E Carlos Gomes de Matos Por sua vez já sabia Que aquilo era um assassino Que o doutor lhe remetia.
Saiu então de Goiás, Mudando assim o seu plano, Porém sempre perseguido Do doutor paraibano Era qual sombra maldita Na pista do corpo humano.
Mas Carlos que só temia O grande poder de Deus Foi com a sua farmácia Com os bons produtos seus, Pra vila de Cariús, Município S. Mateus.
E então, no Ceará, Seu lindo berço querido, Na vila de Cariús Se achava estabelecido No mesmo lugar onde outrora Carlos já tinha vivido.
E enquanto ele ia exercendo Sua honrada profissão, O Nelson continuava Na mesma convicção, Agredindo-o no Iguatu De arma exposta na mão.
Falava a um e a outro Oferecendo dinheiro Pra matar o farmacêutico, Homem justo e verdadeiro, Que sempre deu boas provas De um honrado brasileiro.
Pois o tal doutor Carreira Da covardia é escravo Mas para mandar matar, É astuto, fino, bravo, Capaz de tirar do cofre O derradeiro centavo.
Certo dia lembrou-se De um velho camarada Celso Holanda Montenegro, Alma perversa e malvada, Que para maior defeito Tem uma perna amputada.
Celso Holanda Montenegro, Posso ao leitor afirmar, É um cearense injusto De falsidade sem par, Tem as mesmas qualidades De Domingos Calabar.
Então o doutor Carreira Encontrando o seu amigo Disse: Um grande negócio Eu quero fazer consigo, Boa soma dar-lhe-ei Pra matar meu inimigo.
E quando você o matar, Tomando a minha vingança, Procure se despistar Com a maior segurança De modo que do ocorrido Não haja desconfiança.
Celso aceitou de bom grado A proposta do doutor, Pois é pior do que Judas, Infiel e traidor E a fim de arranjar dinheiro Nega a alma ao Criador.
Este monstro sem critério, Mentiroso e imprudente, Tem as manhas do dragão, A peçonha da serpente; Se existe o tal cão-coxo É aquele certamente.
Morando na mesma vila Que o farmacêutico morava Com ele todos os dias Sempre se comunicava E Carlos, tão inocente, Té injeções lhe aplicava.
Celso procurava um meio De executar a traição E, pra melhor despistar, Travou esta relação, Com um sorriso nos lábios E o diabo no coração.
Mas aquele infame hipócrita Não dispondo de coragem Foi um dia a Paraíba, Oculto numa viagem À procura de um sujeito Que oferecesse vantagem.
Foi ver se encontrava uma cabra Que tomasse o seu lugar, E o papel de assassino Pudesse desempenhar, Pois destes na Paraíba É fácil de se encontrar.
Chegando a Campina Grande Teve uma sorte o bandido De encontrar Antonio Freire A quem julgou destemido, Proprietário de carros E muito seu conhecido.
Disse Celso: Antonio Freire Tu és disposto, é exato Portanto eu hoje desejo Fazer contigo um contrato Trata-se da execução De um oculto assassinato.
Respondeu Antonio Freire Que a tanto não se atrevia Porém podia arranjar Um cabra que lhe servia, Celso aceitou a oferta E voltou no outro dia.
Domingos Aquino, o cabra Que com Nelson contratou, No carro de Antonio Freire Logo depois viajou, E chegando a Cariús Montenegro o ocultou.
Sob a direção de Celso Ficou a fera escondida, Atrás de roubar de Carlos Sua preciosa vida, Mas não podendo alvejá-lo Deu a viagem perdida.
Mas contudo Montenegro Não mudou o plano seu Procurou Antonio Freire E enorme vaia lhe deu Dizendo: ‘‘É fraco o rapaz Que você me forneceu’’.
Mas você há de dar provas De um amigo verdadeiro, Arranjando outro rapaz Corajoso e escopeteiro, Porém quero que o segundo Não faça como o primeiro.
Prometi ao doutor Nelson, Meu benfeitor e amigo, De matar o farmacêutico, O seu maior inimigo, E venho compartilhar Este negócio contigo.
Respondeu-lhe Antonio Freire Que seria pontual, Arranjando outro sujeito Para a tarefa fatal, Traindo desta maneira A quem nunca lhe fez mal.
Com fim de satisfazer Do Montenegro a vontade Foi ao tenente Queiroga, Com quem mantinha amizade, E a este pediu um cabra Para aquela falsidade.
Em vez de o tenente ter A ele repreendido, Foi muito franco e correto Em atender-lhe o pedido, Prometendo para o crime Um caboclo destemido.
Ursulino, o tal caboclo, Forte, disposto e valente; Residia em ‘‘Bamburral’’ (A fazenda do Tenente) E vivia trabalhando Pobre, miseravelmente.
O tenente o retirou Da fazenda ‘‘Bamburral’’ E meteu em suas mãos Um revolver especial, cometendo desta forma Um crime descomunal.
Este tenente é um membro Da Força Paraibana Porém provou desta vez Com eloquência soberana Ser um dos entes mais falsos Que já deu a espécie humana.
Porque, sendo autoridade, Em vez de ser justiceiro Reparando alguma falta, Aconselhando a um terceiro, Desonrou a sua farda Na morte de um brasileiro.
O traidor Antonio Freire Ficou muito satisfeito Quando o tenente Queiroga Apresentou-lhe o sujeito E disse consigo: Este Faz o serviço direito.
Botou-o dentro do carro E viajou pressuroso Pra vila de Cariús, Conduzindo o criminoso Pelo qual o Montenegro Já esperava, ansioso.
Celso Holanda Montenegro Fitando o cabra Ursulino Disse consigo: este cabra Tem jeito de assassino Talvez não faça o que fez O tal Domingos Aquino.
E então, particularmente, Com ele fez o contrato, Dizendo-lhe: Se você Fizer o assassinato Dou-lhe quatro mil cruzeiros E fico achando barato.
Se quer fazer o negócio Seja esperto e vigilante, Tome quinhentos cruzeiros, Pois não quero ser maçante, Depois que fizer o crime Entregarei o restante.
Ursulino respondeu-lhe Que tal negócio aceitava, Porque já fazia meses Que quase nada ganhava E sua pobre família Com fome em casa chorava.
Depois que Celso narrou-lhe tudo, tim-tim por tim-tim, Foi mostrar-lhe o farmacêutico, Com um disfarce sem fim, O qual achava encostado Em um ficus benjamin.
Disse Celso: O farmacêutico É aquele cidadão Olhe bem pro jeito dele Faça a identificação E no momento do crime Segure a arma na mão.
Depois que o cabra Ursulino De tudo teve a certeza, Ficou vigiando a vítima Com a maior sutileza, Aguardando a hora própria Pra aniquilar sua presa.
No ano quarenta e dois Da nossa presente era, Numa noite de dezembro, Aquela assassina fera Por trás de um poste se achava Acautelada, de espera.
A tal noite estava escura, Sem alegria e sem graça, Como que pressagiando A hora de uma desgraça, Bem profunda era a tristeza Reinante naquela praça.
Lá pelo azul do infinito Nem uma estrela luzia, Em tudo a gente notava Um tom de melancolia, Parece que revoltada A natureza gemia.
E Ursulino, no seu posto, Calmo, frio, sanguinário Esperava, cauteloso, O momento necessário De executar brutalmente Seu papel de mercenário.
O farmacêutico passando Justo onde estava a serpente Encontrou ali um homem Que vinha apressadamente À procura de um remédio Para seu filho doente.
A conversa com o mesmo Um pouco se demorou, Então, por trás do poste, Ursulino aproveitou Essa demora de Carlos E um tiro lhe desfechou.
Mais dois tiros, em seguida, Ursulino disparou, Ferido, sobre a calçada, O farmacêutico tombou, E o cara no mesmo instante Correndo se retirou.
Carlos, apesar de achar-se Horrivelmente ferido, Inda pegou seu revólver Com esforço desmedido E atirou na direção Que o cabra tinha saído.
Porém naquele momento Seus tiros já foram em vão, Porque, além de ele achar-se Em triste situação, Ursulino ia amparado Pela imensa escuridão.
Logo em socorro de Carlos O povo todo correu Dizendo, porém, a um tempo, Ser mortal o estado seu, Tanto assim que no outro dia O farmacêutico morreu.
Faleceu em Iguatu Operado no hospital, Aquele moço distinto Tão amigo e social Causou a maior impressão Essa notícia fatal.
Sobre a pessoa de Carlos Vamos fazer ponto aqui. Pra falar sobre o bandido, O qual correndo dali Saiu no dia seguinte Na fazenda ‘‘Potengi’’.
João Cardoso em ‘‘Potengí’’, Que era o sub-delegado, Da morte do farmacêutico Já tinha sido avisado E assim que viu Ursulino Com o mesmo tomou cuidado.
Por ser muito experiente O cidadão João Cardoso, Conheceu que aquele cabra Era o dito criminoso, Por ver que o mesmo trazia, Um revólver precioso.
Com o auxílio de uns paisanos Que se achavam ali perto Desarmou o bandoleiro E de tudo ficou certo, Pois pelo próprio assassino Foi o crime descoberto.
Ursulino a São Mateus Levaram-no com brevidade, E este contou a história, Novamente, na cidade, A mais de duzentas pessoas, Sem se afastar da verdade.
Citou nome por nome Dos malfeitores cruéis E como representaram Aqueles negros papéis E também que fez o crime Por quatro contos de réis.
Disse mais que o Montenegro Daquela justa quantia Deu-lhe quinhentos mil réis Porém sob a garantia Que depois do assassinato O resto lhe entregaria.
O senhor Mário Leal, De nome contraditório, Isso assistiu e louvou, Mas logo, tipo do mal, Negou que tudo sabia, Desonrando-se afinal.
Ficou o público ciente De como forjaram os planos Aqueles cinco traidores De corações desumanos, Um filho do Ceará E quatro, paraibanos.
Mas os quatro coautores, Por serem bem abastados, Procuraram logo meios Que dessem bons resultados Abarrotando as carteiras De espertos advogados.
E com trapaça e chicana, Mentiras de toda sorte, Afirmavam que o mandante Daquela bárbara morte Não era o doutor Carreira Da Paraíba do Norte.
O Juiz de São Mateus Conhecendo que os malvados Estavam todos ali Por protetores cercados Pediu que em outra comarca Os mesmos fossem julgados.
Ao júri de Fortaleza Foram eles remetidos E os quatro coautores Da Polícia protegidos Por um falso julgamento Saíram absolvidos.
Foi um julgamento contra As leis humanas e divina Ficando assim libertada Aquela corja assassina Pois onde não há consciência O interesse é que domina.
Ursulino, o mercenário Foi indigno de atenção Deram-lhe como sentença Trinta anos de prisão, Porque quem não tem dinheiro Também não tem proteção.
O desgraçado Ursulino Por ser um pobre, o prenderam. Os outros, por serem ricos, Penitência não sofreram, Porque os juízes de fato Do Ceará se renderam.
O promotor Lourival Não fez a apelação, Porque pra ele dinheiro É a chave da prisão. Mesmo vinte mil cruzeiros Já é um gordo pirão.
Este doutor por dinheiro Tem tão grande cobiça Que faz tornar o seu jugo Maneira como cortiça Os próprios réus defendeu No plenário de Justiça.
Pisou por cima da lei, Por ser mui ganancioso, Mas, depois de praticar Este ato escandaloso Ficou também incluído No tal grupo criminoso.
A história deste crime, Cheia de horror e traição, Onde a autoridade falta Com a sua obrigação, É tinta negra que mancha O nome de uma nação.
Se, contra o que escrevi Alguém pensar o contrário, De falar com Ursulino Faça tudo necessário Que o mesmo lhe contará O infeliz mercenário.
Agora, caro leitor, Espero ser desculpado Em simples e toscos versos Relatei todo o passado Daquele crime horroroso Em Cariús praticado.
Cariús! Lugar sinistro Que apavora a humanidade Onde reina o luto e a dor A tristeza e a saudade A mulher na viuvez E a criança na orfandade.
Ali sempre foi um ponto De assassinos e danos, Teatro sanguinolento Dos matadores humanos Onde vai o assassino Realizar os seus planos.
De Cariús o passado Nos causa medonho espanto, E descrever ninguém pode Sem ter os olhos em pranto A série de desatinos Havidos naquele recanto.
Lugar de agouros malditos, Fonte funesta do mal Onde um monstro foi oculto Cheio de instinto brutal, Saciar no sangue humano A sua sede infernal.
Ali, meia noite em ponto, Quem pela rua se lança Vê um grupo de assassinos Que pelas trevas avança E a alma do farmacêutico Clamando, a pedir vingança.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 27 de junho de 2020
O saudoso cantador Valdir Teles (1956-2020) um dos maiores nomes da poesia nordestina
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Valdir Teles glosando o mote:
Quando chega o inverno Deus coloca Mais fartura na mesa do roceiro.
A matuta faz fogo de graveto Ferve o leite que tem no caldeirão Bota sal na panela do feijão E assa um taco de bode num espeto Onde a música do sapo é um soneto Mais bonito da beira de um barreiro Não precisa zabumba nem pandeiro Que o compasso da música é Deus que toca. Quando chega o inverno Deus coloca Mais fartura na mesa do roceiro.
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Antônio de Catarina glosando o mote:
O carão que cantava em meu baixio, teve medo da seca e foi embora.
O carão, esta ave tão profeta, habitante das matas do sertão, sentiu falta da chuva no rincão, ficou triste a sofrer como um poeta, sem cantar sua vida é incompleta, o fantasma da seca lhe apavora, pesaroso partiu fora de hora, antevendo um futuro tão sombrio; O carão que cantava em meu baixio, teve medo da seca e foi embora.
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Mariana Teles glosando o mote:
Um café com pão quente às cinco e meia Deixa a casa cheirando a poesia.
Quando o sol se despede da campina E a textura da nuvem muda a cor O alpendre recebe o morador Regressando da luta campesina Entre os ecos da casa sem cortina Corre um grito chamando por Maria… E da cozinha pra sala a boca esfria O mormaço da xícara quase cheia Um café com pão quente às cinco e meia Deixa a casa cheirando a poesia.
Meia hora antecede a hora santa Às seis horas da virgem concebida E o cálice que serve de bebida Desce quente nas veias da garganta Já o trigo depois que sai da planta Faz o pão quando a massa fica fria E o tempero da cor do fim do dia Tem mistura de terço, fé e ceia Um café com pão quente às cinco e meia Deixa a casa cheirando a poesia.
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Zezo Patriota glosando o mote:
Paguei mais do que devia, devo mais do que paguei.
Meu espírito não sossega, com dívidas eu me espanto, pago conta em todo canto e devo em toda bodega, quem deve conta e não nega topa com que me topei, tudo que tinha gastei, com bodega e padaria. Paguei mais do que devia, devo mais do que paguei.
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Júnior Adelino glosando o mote:
Sobre os trabalhos da obra Tudo eu sei ninguém me ensina.
No ramo da construção Faço ponte, creche e praça Com tijolo, cal e massa Eu ergo qualquer mansão Levanto em cima do chão Parede bem grossa ou fina Torre que não se inclina Que não se quebra nem dobra Sobre os trabalhos da obra Tudo eu sei ninguém me ensina.
Com o prumo e a colher Lápis, régua, espátula e rolo Cimento, areia e tijolo Faço o que o dono quiser Sobrado, muro ou chalé Do tamanho de uma colina Ser pedreiro é minha sina Tenho talento de sobra Sobre os trabalhos da obra Tudo eu sei ninguém me ensina.
Nasci com a vocação E aprendi de longa data Que o alicerce e a sapata São partes da fundação Numa grande construção As ferragens predomina Que a faculdade divina Me dá aula e nada cobra Sobre os trabalhos da obra Tudo eu sei ninguém me ensina.
Eu sei dizer que o concreto É quem garante o sustento Com pedra, areia e cimento Começo qualquer projeto Nunca fui um arquiteto Nada disso me domina Construo com disciplina Qualquer coisa com manobra Sobre os trabalhos da obra Tudo eu sei ninguém me ensina.
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Pedro Ernesto Filho glosando o mote:
Cada um tem seu valor, Precisa é ser descoberto.
O pequeno sanfoneiro Com arte desafinada Que de calçada em calçada Vive a ganhar seu dinheiro, Não é Alcimar Monteiro Nem Gonzagão, nem Roberto, Porém deixou boquiaberto O povo do interior. Cada um tem seu valor, Precisa é ser descoberto.
O sertanejo frustrado Vítima da sociedade, Somente vai à cidade Quando se vê obrigado, Falando pouco e errado Porque vive no deserto, Mas se houvesse escola perto Talvez que fosse um doutor. Cada um tem seu valor, Precisa é ser descoberto.
A prostituta de bar Tem na consciência um farne, Negocia a própria carne A fim de se alimentar, O bom conceito de um lar Foi pela sorte encoberto, Talvez que até desse certo Se tivesse havido amor. Cada um tem seu valor, Precisa é ser descoberto.
O bom vaqueiro voraz No mato faz reboliço, Desenvolvendo um serviço Que acadêmico não faz; Coveiro é útil demais Quando um túmulo está aberto Rico não se torna esperto Para fazer o favor. Cada um tem seu valor, Precisa é ser descoberto.
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Louro Branco e Zé Cardoso glosando o mote
Não existe mais respeito Nos namoros de hoje em dia.
Louro Branco
Rapaz que tem companheira Não leva Salve Rainha Mas leva uma camisinha Escondida na carteira Tira a roupa da parceira Mama chega o peito esfria Chupa na língua macia Como quem chupa confeito Não existe mais respeito Nos namoros de hoje em dia.
Zé Cardoso
Vi um casal na calçada Ela com ele abraçado Ele na boca colado Ela na língua enganchada Uma velha admirada Dizia: “Vixe Maria!” E com tristeza dizia: “Eu nunca fiz desse jeito” Não existe mais respeito Nos namoros de hoje em dia.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 20 de junho de 2020
O grande cantador pernambucano Oliveira de Panelas, um dos maiores nomes da poesia popular nordestina da atualidade
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Oliveira de Panelas
No silente teclado universal Deus pôs som nas sutis constelações, e na batida dos nossos corações colocou a pancada musical, quando a harpa da brisa matinal vai fazendo concerto pra aurora, nessas lindas paisagens que Deus mora em tecidos de nuvens está escrito: é a música o poema mais bonito que se fez do princípio até agora.
Quando as pétalas viçosas das roseiras dançam juntas com o sol se levantando, vem a brisa suave carregando pólen vivo das grávidas cerejeiras, verdejantes, frondosas laranjeiras, soltam hálito cheiroso à atmosfera, toda mãe natureza se aglomera: de perfume, verdume, que beleza!… É o canto da própria natureza, festejando o nascer da primavera!
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Dimas Batista
Alguém já me perguntou: o que são mesmo os poetas? Eu respondi: são crianças dessas rebeldes, inquietas, que juntam as dores do mundo às suas dores secretas.
Nossa vida é como um rio no declive da descida, as águas são a saudade duma esperança perdida, e a vaidade é a espuma que fica à margem da vida.
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Diniz Vitorino Ferreira
Qualquer dia do ano se eu puder para o céu eu farei uma jornada como a lua já está desvirginada até posso tomá-la por mulher; e se acaso São Jorge não quiser eu tomo-lhe o cavalo que ele tem e se a lua quiser me amar também dou-lhe um beijo nas tranças do cabelo deixo o santo com dor de cotovelo sem cavalo, sem lua e sem ninguém.
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Canhotinho
Acho tarde demais para voltar estou cansado demais para seguir, os meus lábios se ocultam de sorrir, sinto lágrimas, não posso mais chorar; eu não posso partir e nem ficar e assim nem pra frente nem pra trás, pra ficar sacrifico a própria paz, pra seguir a viagem é perigosa, a vereda da vida é tão penosa que me assombro com as curvas que ela faz.
Te prepara, ladrão da consciência, Que tuas dívidas de monstro já estão prontas, Quando o Justo cobrar as tuas contas, Quantas vezes pagarás à inocência? Teu período banal de existência Se compõe de miséria, dor e pragas; Em teu corpo, se abrem vivas chagas, Que tu’alma de monstro não suporta… Se o remorso bater à tua porta, Como pagas? Com que? E quanto pagas?
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Antonio Marinho
Quem quiser plantar saudade Escalde bem a semente Plante num lugar bem seco Quando o sol tiver bem quente Pois se plantar no molhado Ela cresce a mata a gente.
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Toinho da Mulatinha
Em Sodoma tão falada Passei uma hora só Lá vi a mulher de Ló Numa pedra transformada Dei uma talagada Com caldo de mocotó E saí batendo o pó Adiante vi Simeão Tomando café com pão Na barraca de Jacó.
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Pinto do Monteiro
Admiro um formigão Que é danado de feio Andando ao redor da praça Como quem dá um passeio Grosso atrás, grosso na frente E quase torado no meio.
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Odilon Nunes de Sá
Admiro a mocidade Não querer envelhecer Velho ninguém quer ficar Moço ninguém quer morrer Quem morre moço não vive Bom é ser velho e viver.
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Léo Medeiros
Ensinei Ronaldinho a jogar bola Fui o mestre de Zico e Maradona Seu Luiz aprendeu tocar sanfona Bem depois que saiu da minha escola Caboré no pescoço eu botei mola Também fiz beija-flor voar pra trás Conquistei cinco copas mundiais Defendendo a nossa seleção Inventei em Paris o avião O que é que me falta fazer mais?
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 13 de junho de 2020
O TEMA É O JUMENTO
O TEMA É JUMENTO
LUIZ GONZAGA – APOLOGIA AO JUMENTO
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POETA JOSÉ BATISTA – O JUMENTO ENVERGONHADO
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DISCUSSÃO DE UM JUMENTO COM UMA MOTO – Edson Francisco
Nas quebradas do sertão Já vi tudo acontecer Vi homem virar mulher Gente morta envivecer Já vi alma frente a frente Vi matuto presidente Cabra valente morrer
Quero contar pra você Um raro acontecimento: Eu vi uma motocicleta Discutir com um jumento Você pode duvidar Mas queira me escutar Pra ver se tem cabimento
Vinha naquele momento A caminho da cidade Em cima de minha moto A toda velocidade Quando, me sentindo mal, Parei em um matagal Pra fazer necessidade
Realizada a vontade Eu ouvi um burburinho Eram vozes na estrada Bem no meio do caminho Pensando que era ladrão Me deitei ali no chão E fui ouvindo tudinho:
“Você é um coitadinho” Ouvi a moto falar. “Já está ultrapassado Coloque-se em seu lugar É bicho sem importância Símbolo da ignorância Não serve mais pra montar”.
“Não queira me humilhar” – Lhe respondeu o jumento – “Se você é novidade A atração do momento Eu também já fiz sucesso Já carreguei o progresso E qual foi meu pagamento?
Jogado no esquecimento Na maior ingratidão Abandonado de tudo Nas estradas do sertão Só me restam as lembranças De um tempo de bonança Sem tristeza e humilhação”
“Já cheguei à conclusão Que seu tempo é o passado Fase sem tecnologia Período muito atrasado Meu sucesso hoje é tanto Que estou em todo canto É moto pra todo lado
Eu tenho facilitado A vida no interior Sou rápida e econômica Tenho força no motor Sou liberdade e beleza Todo mundo me deseja Sou bem melhor que o senhor”.
“Sei que você tem valor” – o jumento respondeu – “mas não venha me dizer Que é melhor do que eu Também tenho agilidade Força e capacidade Mas disso o povo esqueceu”.
Disse a moto: “Agora deu! Eu não tenho culpa disso Você é ultrapassado Deixe desse rebuliço Você perdeu para mim Agora chegou seu fim E ninguém vai mudar isso”
“Mas eu tenho compromisso Com a história do país Com muita raça e trabalho Fiz estrada, chafariz Transportei pedra, carvão Pelo povo do sertão Ninguém faz o que eu fiz
Esse progresso infeliz Fez meu povo se esquecer Que a força do meu lombo Deu a muitos de comer Levei matuto pra feira Corri atrás de parteira Pra sertanejo nascer
Se você quiser saber Transportei açúcar e sal Fui carro-pipa na seca Dei a hora no quintal E lhe digo sem assombro Como a força do meu ombro Não existe outra igual”.
“Você é pobre animal” – disse a moto arrogante- “não queira me superar Sou muito mais elegante É melhor ficar calado Você pra mim é passado E nunca foi importante”.
“Espere aí, um instante Sou mesmo muito antigo 6 mil anos de história Guarde isso aí contigo: Na fuga para o Egito Eu servi a Jesus Cristo São José me deu abrigo”.
“Esqueça disso, amigo Peça aposentadoria Você está obsoleto Perdeu a sua valia Não tem mais utilidade Pegue, então, sua saudade Vá pra outra freguesia
Quem tem moto hoje em dia Enfrenta qualquer parada Vive muitas aventuras É mais veloz na estrada E atrai mulher bonita Pois a moto facilita Conquistar a namorada”.
“Jumento não gasta nada Nem mesmo com gasolina Já viu falar de um jegue Que derrapou na neblina? Viu jegue sendo empurrado? Já viu jumento quebrado Parado numa oficina?
Se subir aqui em cima Eu já sei a direção Não precisa trocar óleo Não deixo o dono na mão E não precisa pagar Multa nem IPVA E pneu não fura, não
Sem essa de prestação Não precisa emplacamento Parcelas que não terminam Pagar estacionamento? Nem guarda para na rua Dizendo: ‘Fique na sua E passe seus documentos’
E saiba que de jumento Se anda na contramão Ninguém morre atropelado Não existe colisão Quem cai de cima de tu Pode chamar o Samu Ou preparar o caixão”.
“Não venha com agressão Também tem os seus defeitos Às vezes fica emburrado Não faz as coisas direito Tem um coice violento E uma queda de jumento Não tem doutor que dê jeito
“Ninguém aqui é perfeito Mas fui muito maltratado Levei espora na barriga Cacete pra todo lado Fizeram carne de mim Me abandonaram no fim Eu me sinto injustiçado
Mas também fui respeitado Houve quem me deu valor O homem simples do campo O humilde agricultor E o velho rei do baião ‘O jumento é nosso irmão’ ‘Cumi seu mi sim, senhor’
Na voz daquele cantor Eu fui imortalizado Bem soube me dá valor E me fez ser respeitado Por isso que Gonzagão Aqui por este sertão Continua admirado
Eu não sou nenhum coitado Jegue me orgulho de ser Sou jumento não sou burro Besta é quem vem dizer Que não tenho serventia Que perdi a garantia E só me resta morrer”.
Sem saber o que dizer A moto ficou calada Parecendo reconhecer Que tinha dado mancada Ela, então, silenciou O jumento disparou E seguiu pela estrada
E u ali não falei nada D aquilo que escutei S egui a minha viagem O lhando para a paisagem N a mente, tudo guardei
F oi num cordel que anotei R esolvi fazer assim A ntes que falem de mim N egando o que passei… C onfirmo que não invento I sto aqui é o testamento S e você não acreditar C orra e vá entrevistar O meu amigo jumento.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 06 de junho de 2020
Aderaldo Ferreira de Araújo, mais conhecido como “Cego Aderaldo” um dos maiores cantadores da poesia popular nordestina (1878-1967)
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Cego Aderaldo
(atendendo a um pedido do Padre Cícero)
À ordem do meu padrinho Vou colher algumas flores… Fazer minhas poesias Cheias de grandes louvores Saudando, primeiramente, A Santa Virgem das Dores.
O nome do santo Padre Anda pelo mundo inteiro, A cidade está crescendo Com este povo romeiro, Devido às grandes virtudes Do santo de Juazeiro.
Nossa Senhora das Dores É que nos dá proteção, Ordena ao nosso bom Padre, E ele cumpre a Missão, Ensinando a todo mundo O ponto da salvação.
Deixo aqui no Juazeiro Todos os sentidos meus Juntamente ao meu Padrinho Que me limpou com os seus, Vou correr por este mundo Levando a bênção de Deus.
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Otacílio Batista Patriota
Ao romper da madrugada, um vento manso desliza, mais tarde ao sopro da brisa, sai voando a passarada. Uma tocha avermelhada aparece lentamente, na janela do nascente, saudando o romper da aurora, no sertão que a gente mora, mora o coração da gente.
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O cantador violeiro longe da terra querida, sente um vazio na vida, tornando prisioneiro, olha o pinho companheiro, aí começa a tocar, tem vontade de cantar, mas lhe falta inspiração. Que a saudade do sertão faz o poeta chorar.
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João Paraibano
Vê-se a serra cachimbando… Na teia, a aranha borda; O xexéu canta um poema; Depois que o dia se acorda, Deus coloca um batom roxo Na flor do feijão de corda.
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Do nevoeiro pra o chão a nuvem faz passarela; o sapo pinota n’água, entra na lama e se mela; faz uma cama de espuma pra cantar em cima dela.
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Sempre vejo a mão divina no botão de flor se abrindo, no berço em que uma criança sonha com Jesus sorrindo; a mão caçando a chupeta que a boca perdeu dormindo.
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Roberto Queiroz
Admiro o Zé Ferreira Um cantador estupendo Se a roupa se suja, lava Se rasga, bota remendo Gasta menos do que ganha Que é pra não ficar devendo.
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Luciano Carneiro
Eu não tive vocação Pra diácono nem vigário Tornei-me então um poeta Não muito extraordinário Mas sou com muita alegria No campo da poesia Um verdadeiro operário.
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Leonardo Bastião
Ontem vi uma coruja, Sentada numa cancela, Demorei trinta segundos, Olhando a feiura dela, Quando me vi no espelho, Tava mais feio do que ela.
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Admiro o juazeiro, Nascido na terra enxuta, A fruta é pequena e ruim, A madeira é torta e bruta, Mas a bondade da sombra, Cobra a ruindade da fruta.
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Eu não vou plantar saudade, Que não estou mais precisando, A caçamba da saudade, Toda vez que vai passando, Ao invés de levar a minha, Derrama a que vai levando.
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Josué Romano
Eu já suspendi um raio E já fiz o tempo parar. Já fiz estrela correr, Já fiz sol quente esfriar. Já segurei uma onça Para um moleque mamar!
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 30 de maio de 2020
UMA POESIA DEBAIXO DE VARA E UMA DUPLA EM CANTORIA
Sou a febre da Esplanada, Sou o istopô calango, Sou a titela do frango Por dentro da quiabada, Sou noite malassombrada, Sou doido metendo o pau, Sou aluno do Mobral, Ninguém zomba da minha cara, Só vou debaixo de vara Pra depor no tribunal.
Sou Adélio com uma faca, Fingindo que sou maluco; Quando faço o vuco-vuco, Ouço o troar da matraca; Eu sou o peito da vaca Que o Centrão quer mamar, A melhor coisa é capar Pra ver se acaba a tara, Só vou debaixo de vara Se o tribunal me chamar.
Sou Bolsonaro nervoso, Sou a voz de Sérgio Moro, Sou pobre contendo o choro Com tudo dificultoso: Sou o auxílio faltoso, Sou a análise fatal, Sou a espera infernal Dos 600, coisa rara, Só vou debaixo de vara Pra depor no tribunal.
Sou um cavalo-do-cão Penicando no teu couro, Eu sou o troféu de ouro Que deram pra Seleção, Sou a classe de Tostão Do escrete nacional, Fiz goleiro passar mal Quando estava cara a cara, Só vou debaixo de vara Pra depor no tribunal.
Encontrei Celso de Melo No beco da Guariroba, Coisa boa é a maniçoba Que eles servem no castelo, Uma vara de marmelo Não espanta general, Só depois do carnaval É que a gente dá as caras, Só vou debaixo de vara Pra depor no tribunal.
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A grande dupla de poetas repentistas Geraldo Amâncio e Ivanildo Vilanova
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O SERTÃO EM CARNE E ALMA
Ivanildo Vilanova
Uma tarde de inverno no sertão É um grande espetáculo pra quem passa Serra envolta nos tufos de fumaça Água forte rolando pelo chão O estrondo da máquina do trovão Entre as nuvens do céu arroxeado O raio caindo assombra o gado Atolado por entre as lamas pretas Rosna o vento fazendo pirueta Nas espigas de milho do roçado.
Geraldo Amâncio
No sertão quando o chão está molhado Corre água nas veias de um regato Pula a onça da furna corre o gato Um cavalo galopa estropiado Um garrote atravessa o rio de nado Uma cobra se acua com um cancão A cantiga saudosa do carão Faz lembrar o lugar que fui nascido Entre as telas do filme colorido Que Deus fez pra o cinema do sertão.
Ivanildo Vilanova
Quando é festa animada de São João Nunca falta canjica nem sequilho Pamonha, mingau, bolo de milho Buscapé, estrelinha e foguetão Cantoria, namoro, discussão Quebra pote, corrida de argolinha Padrinho de fogueira e a madrinha Casamento matuto, samba e jogo E a cabocla com o rosto cor de fogo Tocaiando as panelas da cozinha.
Geraldo Amâncio
No sertão quando é bem de manhãzinha Sertanejo se acorda na palhoça Chama o filho mais velho sai pra roça A mulher toma conta da cozinha Faz o fogo de lenha e encaminha Um guisado, angu quente ou fava pura E depois de fazer essa mistura Sai faceira igualmente uma condessa Com um quibumbo de barro na cabeça E vai levar aos heróis da agricultura.
Ivanildo Vilanova
No sertão a tarefa é muito dura Mas se tem a colheita, a criação Ferramenta da roça, produção Uma rede, um Grajau de rapadura Uma dez polegadas na cintura A viola, o baú, uma cabaça A tarrafa e o litro de cachaça Mescla azul, botinão, chapéu baeta Fumo grosso, espingarda de espoleta E um cachorro mestiço bom de caça.
Geraldo Amâncio
A riqueza do pobre nunca passa De um pote que mata sua sede Uma enxada num canto de parede Dois chapéus, um de palha, outro de massa Um cambito tingido de fumaça Uns dez filhos que tem sua aparência Uma esposa que é mãe da paciência Se chorar ou sofrer não se maldiz E ele às vezes é muito mais feliz Do que um rico ladrão de consciência.
Ivanildo Vilanova
É preciso ter muita paciência Guardar milho num quarto empaiolado Sustentar criação com alastrado Numa terra que tem pouca assistência Trabalhar no serviço de emergência Esperando o inverno que não vem Insistir, crer em Deus e tratar bem Manter sempre a família tão unida Do chão seco arrancar o pão da vida Sertanejo faz isso e mais ninguém.
Geraldo Amâncio
No sertão quando o inverno não vem Só se encontra desolação e mágoa No riacho não vê-se um pingo d’água Sopra um vento assombroso do além Seca o tronco robusto do muquém Cai a folha mais grossa, murcha a fina Toda árvore murchece, se inclina No calor do sol quente verga as costas Parecendo um fantasma de mãos postas No altar de uma seca nordestina.
Ivanildo Vilanova
No verão quando o sol se descortina Se escuta o zumbido das abelhas O balir melancólico das ovelhas O dueto dos pássaros da matina O bonito alazão sacode a crina O vaqueiro aboiando chama a rês Os cancões gritam todos de uma vez Acusando a presença da serpente No concerto de música diferente Da orquestra sinfônica que Deus fez.
Geraldo Amâncio
E o traje do homem camponês Quando sai para a festa ou para feira É a calça de mescla, uma peixeira Um paletó listrado de xadrez Umas botas do couro de uma rês Para dançar forró enquanto é moço Um chapéu aba larga grande e grosso Com a pena qualquer de um passarinho E a medalha fiel do meu padrinho Com um rosário enfiado no pescoço.
Ivanildo Vilanova
Falar mal do sertão hoje eu não ouço Não se entrega ao cansaço ou enxaqueca Um herói pelejando contra a seca Contra a cheia combate sem sobrosso Respeita a moral de velho ou moço Também quer vê a sua respeitada Sem Brasil a América é derrotada Com Brasil a América vale mil Sem Nordeste o Brasil não é Brasil E sem Sertão o Nordeste não é nada.
Geraldo Amâncio
No sertão quando rompe a alvorada No oitão do terreiro um frango pia Uma cobra valente engole jia Na floresta desperta a passarada Canta uma canção tão afinada Que parece uma orquestra universal Um peru dá três voltas no quintal Um cabrito na cabra puxa os seios E o vaqueiro esvazio os peitos cheios De uma vaca leiteira no curral.
Ivanildo Vilanova
Numa sombra que dá no mangueiral O cachorro brigando com o teiú A caçada de peba e de tatu A novena, uma noite de natal A carne de sol com pouco sal Cantoria louvada com bandeja No pilão duas moças na peleja Uma arranca de inhame e de maniva Isso aí é a cópia pura e viva Da mais bela paisagem sertaneja.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 23 de maio de 2020
GRANDES MOTES, GRANDES GLOSAS E UM FOLHETO DE MENTIRAS
GRANDES MOTES, GRANDE GLOSAS E UM FOLHETO DE MENTIRAS
O cearense Geraldo Amâncio e o paraibano Severino Feitosa, dois dos maiores nomes da cantoria nordestina na atualidade
Geraldo Amâncio e Severino Feitosa glosando o mote:
Se eu fosse Jesus, o Nazareno, não matava o poeta cantador.
Geraldo Amâncio
Vem Geraldo que eu tenho muita fé, me pediu que eu fizesse esses arranjos, conterrâneo de Augusto dos Anjos, que é nascido na terra de Sapé, vem dizer o poeta como é, é pra ele um eterno sonhador, um artista de invejável valor, comunica seu dom nesse terreno. Se eu fosse Jesus, o Nazareno, não matava o poeta cantador.
Severino Feitosa
Se eu tivesse o poder do soberano, não tirava da terra um Oliveira, um Geraldo, um Valdir e um Bandeira, Moacir, nem Raimundo Caetano, Sebastião nem João Paraibano, e muitos outros que têm tanto valor, não tirava a garganta de tenor de quem tem esse seu direito pleno. Se eu fosse Jesus, o Nazareno, não matava o poeta cantador.
Geraldo Amâncio
Sei que um carro virou numa ladeira, já passei para o mundo essa mensagem, pois eu ia também nessa viagem que a morte levou nosso Ferreira, eu me vi na viagem derradeira, eu gritei por sentir a grande dor, foi a morte que fez esse terror, de levar nosso astro, esse moreno. Se eu fosse Jesus, o Nazareno, não matava o poeta cantador.
Severino Feitosa
Se Xudu decantou o santo hino, da maneira que foi Zezé Lulu, não esqueço Louro do Pajeú, Rio Grande, recorda Severino, Pernambuco, também, José Faustino, que foi um repentista de valor, Paraíba não esquece Serrador e Santa Cruz não esquece de Heleno. Se eu fosse Jesus, o Nazareno, não matava o poeta cantador.
Geraldo Amâncio
Quem já foi Juvenal Evangelista, um encanto pra o nosso Ceará, mas morreu encostado ao Amapá e se encontra com os irmãos Batista, desse povo que tem na minha lista, Pinto velho pra mim foi um terror, eu não posso esquecer um Beija-Flor, e Pajeú inda lembra Zé Pequeno. Se eu fosse Jesus, o Nazareno, não matava o poeta cantador.
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Roberto Macena e Zé Vicente glosando o mote:
Velhice, um prêmio divino Que Deus oferece à gente
Roberto Macena
Eu perdi minha beleza, Mas não vou fugir da ética. Que eu mudei a minha estética Por conta da natureza. Mesmo assim, não há tristeza, Que eu não fico decadente: Tô mais é experiente Que com isso, não amofino. Velhice, um prêmio divino Que Deus oferece à gente.
Zé Vicente
Vovô muito me encanta, É meu verdadeiro mestre. Morando em área silvestre, Mas sempre me acalanta. Se eu sofrer da garganta, Ainda canto repente. Meu avô estando presente, Ele é meu otorrino. Velhice, um prêmio divino Que Deus oferece à gente.
Roberto Macena
Não adianta fazer prece Nem usar agilidade, Que, quando passa a idade, Tudo de ruim acontece O que é de nervo amolece, Fica tudo diferente: Dói a perna, dói o dente E o cabra fica mofino. Velhice é um prêmio divino Que Deus oferece à gente.
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Sebastião Dias e Zé Viola glosando o mote:
Existe um dicionário Na mente do cantador
Sebastião Dias
Existe um Deus que controla A mente de um repentista Que nasceu pra ser artista Do oitão da fazendola É o homem da viola Nascido no interior Nem precisa professor Pra ser extraordinário Existe um dicionário Na mente do cantador
Zé Viola
Acumulo cada ano Cantando mares e terra Paz, conflito, briga e guerra Peixe, céu e oceano A viola é o piano O povo é meu instrutor O palco me traz calor E o cachê é meu salário Existe um dicionário Na mente do cantador
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UM CONTADOR DE MENTIRAS – EDMILSON GARCIA
Foi lá nos anos oitenta Que conheci um senhor Nas terras da Paraíba Araruna, interior….. Ele era conhecido Como seu “Zé Nicanor”
Homem de vários ofícios Foi vaqueiro, agricultor, Político e viajante, Palestrante e pescador Arrancador de botija E grande “conversador”
Nasceu, cresceu por ali E ali se fez conhecido Pra todos contava histórias E todos lhe davam ouvido Difícil era acreditar Ou aguentar seu “muído”
Pois tinha um “defeitinho” Que pretendo descrever Tudo ele aumentava Talvez pra se aparecer Decorava tudo em mente Pois não sabia escrever
Dizia ser viajado Conhecia o Brasil inteiro De Porto Alegre à Natal Do Acre ao Rio de Janeiro Morou em Serra Pelada Mas não quis ser garimpeiro
Deitava na preguiçosa Todo dia à tardesinha Pra conversar com os amigos E contar uma “mentirinha” Loroteiro igual à ele Em Araruna não tinha
Era gente muito boa Dizendo à bem da verdade Mas mentia por costume Era uma barbaridade Cada uma que contava Estremecia a cidade
Me falou de uma brigada Que uma vez ele deu Na serra de dona Inês Com um tal de Zebedeu Bateu tanto no sujeito Que o cabra quase morreu
Falou que em Guarabira Num sábado dia de feira Três cabras lhe ameaçaram Cada um com uma peixeira Tomou as facas dos cabras Só na base da rasteira 1 Quando se empolgava mesmo, Só falava em valentia Não tinha medo de nada Fazia e acontecia Se tivesse quem escutasse Aí é que ele mentia
Falava de Lampião Que por sinal era “amigo” Muitas vezes ao cangaceiro Chegou a lhe dar abrigo Contava e ainda dizia Pode crer no que lhe digo
Viajou o Brasil todo Representando o nordeste Rasgava de norte a sul Depois de leste à oeste Dizia que era o autor De “Tieta do Agreste”
Falava de pescaria De caçada e de forró Inventando e aumentando Chega engrossava o gogó Sequer ficava vermelho E “sério” como ele só
Só pescava peixe grande Com anzol feito de pau Pegava boi sem cavalo No meio do matagal Ganhou primeiro lugar Numa vaquejada em Natal
Na política de Araruna Nunca perdeu eleição Foi prefeito sete vezes E louvado em cada gestão Depois dele, é que vieram Os Targino e Maranhão
Disse que na mocidade Chegou à ser senador Ganhou com um bilhão de votos Foi aclamado em louvor Dizia que era primo De Dom Pedro “o imperador”
Ainda naquela época Já usava um computador Fabricado em Mata Velha Por um tal de Agenor O mesmo que fez a máquina Pra fabricar isopor
Uma vez pegou um peixe Que tinha fugido de um rio Achou-o em cima da serra Todo tremendo de frio Falou que o peixe era “fêmea” E que estava no cio
Contou que numa caçada Atirou num gavião Mas o chumbo se espalhou E correu rasteiro no chão Com o tiro matou um peba, Um macaco e um carão
Ele, como pescador Disse ser profissional Uma vez fez pescaria No açude do coqueiral Pois lá, tem muita traíra Tilápia e também pial
Jogou a tarrafa n’água Escutou um barulhão Quando ele puxou pra fora Arrastou um tubarão Pra levar o peixe pra casa Precisou d’um caminhão
Mandou tirar um retrato Bem de perto, “tela cheia” Pra mostrar pra todo mundo Que a história não era feia Disse que somente a foto Pesou uma arroba e meia
Teve a coragem de dizer Uma vez sentado na praça Que trocou cinco galinhas Por um cachorro de caça Depois deu o “vira lata” Por dez garrotes de raça.
Me confessou que uma vez Deu de cara com um leão Ao lado da sua casa Bem na beira do oitão Quando o bicho lhe avistou Já partiu pra agressão
Quando o felino avançou Ele gritou: é agora!!!!!! O bicho já quis fugir Mas não deu pra ir embora Deu-lhe um “tabefe” tão grande Matou a fera na hora
Quando ia caçar onça Nunca errava a “butada” Quando pegava no tiro Já trazia esquartejada E quando pegava à laço Trazia viva, amarrada
Amansava burro brabo Montava e nunca caía Pegava touro na mata Ou qualquer rês que fugia Capava jumento “à unha” Tudo isso ele fazia
Acabou com os lobisomens Que tinha na região Só d’uma vez foram sete Tudo sangrado à facão Tirava o couro e vendia Na feira de Riachão
E da vez que ele disse Que saiu pra uma “farrada” Namorou quatorze vezes Isso, n’uma madrugada Ali, eu me segurei Pra não ter que dar rizada
Era amigo de Pelé Desde a década de cinquenta Jogaram juntos no México Ganharam o tri em setenta, Foi presidente da FIFA La nos idos de quarenta
Uma vez fez um relato Que fez esquentar o clima Dizendo ter sido amigo De um tal de Zé Fukushima O fabricante da bomba Que arrasou Hyroshima
Quando bebia uma caninha Ficava meio arrojado Falava que era rico Tinha muita terra e gado Comprava até capim seco Só na base do fiado
Disse ter uma bicicleta Que era movida à gás Com farol, luz alta e baixa E que corria demais Uma noite, deu cem por hora Que o clarão ficou pra traz
Andava muito de noite Sem medo de assombração Só procurando botija Pra ajudar no ganha-pão Uma vez arrancou uma Que rendeu mais de um milhão
Uma vez numa conversa Nessa eu estava presente Na casa de Zé do Leite Na frente de muita gente Teve a coragem de dizer Que o Papa era seu parente
Disse que a pedra da boca Foi ele que descobriu E a boca que tem na pedra Ele mesmo esculpiu Filmou e botou na “net” E mostrou parao Brasil
Ainda dizia que nele, Três coisas que dava ira Era um bisaco furado, Uma espingarda sem mira, E um cabra velho barbado Viver contando mentira
Mesmo sabendo que ali Ninguém lhe acreditava Todo dia e toda hora Mentia porque gostava Já eu, garanto e sustento Que isso é só um por cento Das coisas que ele contava.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 16 de maio de 2020
A dupla Valdir Teles e João Paraibano improvisando com o mote:
Deus pintou o sertão de poesia Meu orgulho é ser filho do sertão
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Fabio Gomes
Quem diz que esse corona É praga do fim do mundo Não sabe o que está dizendo Nem seu pensar é profundo Desconhece o próprio nome Não sabe o que é passar fome Ou não ter o que comer Lhe aconselho, esse menino Pergunte a um nordestino E ele vai lhe dizer.
A fome é doença braba Não quero nem no meu mote É difícil amanhecer Tendo só água no pote É algo triste na vida Ver filho pedir comida E você sem ter pra dar Diga sim ou não, senhor Existe acaso, uma dor Maior pra se suportar?
Quando esse vírus surgiu Mesmo sem ser tão letal Fizeram em poucos dias Um enorme hospital Se do dinheiro investido Fosse um por cento investido Em alimento ou comida Eu sou um dos tais que diz Seria um mundo feliz Com muito mais luz e vida.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 02 de maio de 2020
POR QUE DEIXEI DE CANTAR (POEMA DO PARAIBANO PINTO DO MONTEIRO)
Severino Lourenço da Silva Pinto, Monteiro-PB (1895-1990). Um gênio da cantoria improvisada nordestina. Saiba mais sobre ele no Wikipédia
Eu comparo esta vida à curva da letra S: tem uma ponta que sobe tem outra ponta que desce e a volta que dá no meio nem todo mundo conhece
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POR QUE DEIXEI DE CANTAR
Recebi mais de um poema Fazendo interrogação Por que eu da profissão Mudei de rumo e sistema Resolverei um problema De não poder tolerar Muita gente a perguntar Ansiosa pra saber Em verso vou responder Por que deixei de cantar.
Deixei porque a idade já está muito avançada A lembrança está cansada O som mesmo da metade Perdi a falicidade Que em moço possuía Acabou-se a energia Da máquina de fazer verso Hoje eu vivo submerso Num mar de melancolia.
Minha amiga e companheira Eu embrulhei de molambo Pego nela por um bambo Para tirar-lhe a poeira Hoje não tem mais quem queira Ir num canto me escutar Fazer verso e gaguejar Topar no meio e no fim Canto feio, pouco e ruim Será melhor não cantar.
Não foi por uma pensão Que o governo me deu Por que o eu do meu eu Não me dá mais produção Cantor sem inspiração Tem vontade e nada faz Eu hoje sou um dos tais Que ninguém quer assistir Nem o povo quer ouvir Nem eu também posso mais.
Ando gemendo e chorando E vendo a hora cair O povo de mim fugir E a canalha mangando E eu tremendo e tombando Sem maleta e sem sacola Hoje estou nesta bitola Por não ter outro recurso Carrego a bengala a pulso Não posso andar com a viola.
Com a matéria abatida Eu de muito longe venho Com este espinhoso lenho Tombando na minha vida Tenho a lembrança esquecida Uma rouquice ruim A vida quase no fim A cabeça meio torta Quem for moço tome conta Cantar não é mais pra mim.
Já pelo peso de oitenta E uma das primaveras Dezesseis lustros, oito eras, E a carga me atormenta O corpo não se sustenta Quando anda cambaleia Cantador de cara feia Se eu for lhe assistir Por isso deixei de ir Para cantoria alheia.
Estes oitenta e um graus Que acabei de subir Foi só para distinguir Quais são os bons e os maus Por cima de pedra e paus Tive atos de bravura Hoje só tenho amargura Tormento dor e cansaço Passando de passo a passo Por cima da sepultura.
Existe uma corriola De sujeito vagabundo Que anda solta no mundo Pelintra e muito gabola Compra logo uma viola Da frente toda enfeitada Só canta coisa emprestada Mentir, fazer propaganda Dizendo por onde anda Que topa toda parada.
E ver em certos meios Gente cantando iê-iê-iê Arranjar dois LP Tudo com versos alheios Estou de saco cheio De não poder tolerar A muita gente escutar Dizer viva e bater palma Isso me doeu na alma Faz eu deixar de cantar.
Fiz viagem de avião A pé, a burro, a cavalo De navio, outras que falo De automóvel e caminhão Cantando em rico no salão Muito moço, gordo e forte Passei rampa, curva e corte Para findar num retiro E dar o último suspiro Na emboscada da morte.
Corrente, fivela, argola, Picinez, óculos, anel, Livro, revista, papel, Arame, bordão, viola, Mala, maleta, sacola, Perfume, lenço, troféu, Roupa, sapato, chapéu, Eu não posso conduzir Quando for para eu subir Na santa escada do céu.
Nunca pensei num tesouro Que estava pra mim guardado Quando fui condecorado Com uma viola de ouro O riso tornou-se um choro O armazém em bodega A cara cheia de prega Ando tombando e tremendo E as matutas dizendo: Menino o velho te pega.
Não posso atender pedido Que a mim fez muita gente Porque estou velho e doente Fraco, cansado, abatido, De mais a mais esquecido Sem som, sem mentalidade, Ficou somente a vontade Mordendo como formiga Nunca mais vou em cantiga Pra não morrer de saudade.
Vaquejada, apartação, futebol e carnaval, Véspera de ano e Natal De são Pedro e São João Dança, novela e leilão É farra em botequim Passear em um jardim De braço com a querida Neste restinho de vida Não chega mais para mim.
Por não poder mais beber Com meus colegas de arte Das festas não fazer parte Perdi da vida o prazer Estou vivendo sem viver Na maior fragilidade Pelo peso da idade Prazer pra mim não existe Vou viver num canto triste Até a finalidade.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 25 de abril de 2020
Orlando Tejo (1935- 2018), e o seu livro, que já vai na 11ª edição, e foi tema de vários documentários, teses, artigos e estudos
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Frei Henrique de Coimbra Sacerdote sem preguiça Rezou a Primeira Missa Na beira duma cacimba Um índio passou-lhe a bimba Ele não quis aceitá E agora veve a berrá Detrás dum pau de jureme O bom pescador não teme As profundezas do mar.
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No tempo do Padre Eterno Getúlio já governava Prantava feijão e fava Quando tinha bom inverno Naquele tempo moderno São João viajou pra cá Dom Pedro correu pra lá Escanchado num tratô Canta, canta, cantadô Que teu destino é cantá.
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Eu cantei lá no Recife Dentro do pronto socorro Ganhei 500 mil réis Comprei 500 cachorros Morri no ano passado Mas neste ano, não morro.
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Frei Henrique descansou Nas encosta da Bahia Depois fez a travessia Pra chegá onde chegou Pegou a índia, champrou Ela não pôde falá Assou carne de jabá Misturou com querosene O bom pescador não teme As profundezas do mar.
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Um General de Brigada Com quarenta grau de febre Matou um casal de lebre Prá comê uma buchada… Quando fez a panelada Morreu e não logrou dela Porco que come em gamela Prova que não tem fastio Peixe só presta de rio Piau de tromba amarela.
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Na corrida de mourão Quem corre mais é quem ganha São Thomé vendia banha Na fogueira de São João Foi na guerra do Japão Que se deu essa ingrizia Camonge quage morria Da granguena berra-berra Quem se morre é quem se enterra Adeus, até outro dia.
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Às tantas da madrugada O vaqueiro do Prefeito Corre alegre e satisfeito Atrás da vaca deitada Deitada e bem apojada Com a rabada pelo chão A desgraça de Sansão Foi trair Pedro Primeiro O aboio do vaqueiro Nas quebradas do Sertão.
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Jesus foi home de fama Dentro de Cafarnaum Feliz da mesa que tem Costela de guaiamum No sertão do cariri Vi um casal de siri Sem compromisso nenhum.
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Jesus ia rezar missa Na capela de Belém Chegou Judas Carioca Que viajava de trem Trazia trinta macaco Botou tudo num buraco Não tinham nenhum vintém.
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Jesus saiu de Belém Viajando pra o Egito No seu jumento bonito Com uma carga de xerém Mais tarde pegou um trem Nossa Senhora castiça De noite Ele rezou Missa Na casa dum fogueteiro Gritava um pai-de-chiqueiro: Viva o Chefe de Puliça!
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São Pedro, na sacristia Batizou Agamenon Jesus entrou em Belém Proibindo o califom Montado na sua idéia Nas ruas da Galiléia Tocou viola e pistom.
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Um professor de francês Honestamente dizia: Tempo bom era o moderno Judas só foi pro inferno Promode a virgem Maria.
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Minha muié chama Bela Quando eu vou chegando em casa O galo canta na brasa, Cai o texto da panela Eu fico olhando pra ela Cheio de contentamento O satanás num jumento Pra mordê a Mãe de Deus Não mordeu ela nem eus Diz o novo testamento.
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Eu vi numa gavetinha Da casa de João Moisés Mais de cem contos de réis Só de ovo de galinha Ela comeu uma tinha Da carcaça de um jumento Que bicho mais peçonhento É lacrau e piôi de cobra Não pode mais fazer obra, Diz o novo testamento.
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Eu me chamo Zé Limeira Cantadô qui num é tolo Sei tirá couro de bode Sei impaiolá tijolo Sô o cantado milhó Qui a Paraiba criou-lo.
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POETA MERLÂNIO MELO FALA SOBRE ZÉ LIMEIRA
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 18 de abril de 2020
Minha mãe me criou dentro do mar Com o leite do peito de baleia Me casei no oceano com a sereia Que me fez repentista popular Canto as noites famosas de luar E linguagem das brisas tropicais Entre abraços e beijos sensuais Nos embalos das ondas seculares Conquistei a rainha mãe dos mares E o que é que me falta fazer mais?
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Luís Campos
Esse negócio de chifre É coisa muito comum Já levei chifre de noite De manhã e em jejum O remédio é paciência Pitu e cinquenta e um.
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Sebastião da Silva
No outono, verão e no inverno Eu vivi trabalhando no roçado Aboiando feliz atrás do gado E vendo mato mudar seu próprio terno Mas, com ordem do Santo Pai Eterno Eu comprei a viola, o meu piano, Nela ganho meu pão cotidiano, É amiga, divina e predileta, Obrigado meu Deus por ser poeta Nos dez pés de martelo alagoano.
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Dimas Batista
Ali na cabana de alguns pescadores Fitando a beleza do mar, do arrebol, Bonitas morenas queimadas de sol, Alegres ouviram cantar meus amores. O vento soprava com leves rumores, O pinho a gemer, depois a chorar. Aquelas morenas à luz do luar Me davam impressão que fossem sereias, Alegres, risonhas, sentadas nas areias, Ouvindo meus versos na beira do mar.
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João Paraibano
Cai a chuva no telhado, a dona pega e coloca uma lata na goteira, onde a água faz barroca: cada pingo é um baião que o fundo da lata toca.
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Poeta Anízio
A saudade é sentimento Que amarga e dá prazer Mas faz parte do viver Do amor é o fermento Se é parte do tormento Ver as lágrimas derramando Mesmo triste vou cantando Não posso ficar fingindo Saudade é chorar sorrindo Com o coração chorando.
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Onésimo Maia
Eu sou tão analfabeto, Que nem sei dizer o tanto; Vendo um lápis, tenho medo; Vendo um caderno, me espanto, Mas, quando um jumento rincha, Eu penso um poema e canto.
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Belarmino Fernandes de França
Na mocidade sadia O poeta é um herói Mas lhe chegando a velhice Definha e tudo lhe dói O que a mocidade cria Sempre a velhice destrói…
A velhice nos corrói Saúde, força e lembrança O moço a tudo resiste O velho com tudo se cansa E é isto que está se dando Com Belarmino de França.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sexta, 10 de abril de 2020
Tradução livre e adaptação de um poema de M. Lockbridge
É sexta-feira Jesus está orando Pedro está dormindo Judas está traindo Mas o domingo está chegando! É sexta-feira Pilatos julgando O conselho está conspirando A multidão está difamando Mas eles não sabem Que o domingo está chegando! É sexta-feira, Os discípulos estão fugindo Como ovelhas sem pastor Maria está chorando Pedro está negando Mas eles não sabem Que o domingo está chegando! É sexta-feira Os romanos batem em meu Jesus Eles o vestem de escarlate Eles o coroam com espinhos Mas eles não sabem Que o domingo está chegando! É sexta-feira Veja Jesus caminhando para o Calvário Seu sangue pingando Seus pés tropeçando Sobrecarregado está em seu espírito Mas você vê, é só sexta-feira Mas o domingo está chegando! É sexta-feira O mundo está vencendo As pessoas estão pecando E o mal está sorrindo É sexta-feira Os soldados pregam as mãos do meu Salvador Na cruz Pregam os pés do meu Salvador na cruz E então eles o crucificam Ao lado de criminosos É sexta-feira Mas deixe-me dizer-lhe uma coisa O domingo está chegando! É sexta-feira, Os discípulos estão questionando O que aconteceu com o seu Rei E os fariseus estão celebrando Que seu plano astuto Foi alcançado com sucesso Mas eles não sabem É apenas sexta-feira, Mas o domingo está chegando! É sexta-feira Ele está pendurado na cruz Sentindo-se abandonado por seu Pai Deixado sozinho e morrendo… Pode alguém salvá-lo? Ooooh É sexta-feira Mas o domingo está chegando! É sexta-feira A terra treme O céu escurece Meu rei entrega seu espírito É sexta-feira A esperança está perdida A Morte ganhou O pecado conquistou E Satanás apenas ri. É sexta-feira Jesus é enterrado Soldados montam guarda E uma pedra é rolada no sepulcro Mas é sexta-feira Só é sexta-feira Mas o domingo está chegando.
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GALOPE A BEIRA MAR – NOVO TESTAMENTO – Fernando Paixão
Eu lembro que o povo lá da Galileia No tempo passado esperava o Messias Até que cessou a contagem dos dias Surgindo do meio da classe plebeia Um jovem pregando pra sua plateia Dizendo que as coisas precisam mudar E chama discípulos pra lhe ajudar Convidando gente do campo e da praça Chamou pescadores que viu na barcaça Cantando galope na beira do mar.
Tudo começou quando na Palestina O povo amargava uma forte opressão Sofrendo sonhava por libertação E de Nazaré uma jovem menina Tão doce, inocente, pura e pequenina Um anjo aparece pra lhe avisar Que seu ventre puro iria gerar Um filho que ia ser grande poeta Salvador e santo, pastor e profeta Cantando galope na beira do mar.
A jovem assustada prostrou-se no chão Dizendo que aquilo não era possível Mas a pulsação do seu peito sensível Qual jovem criança quase sem razão Dizendo pro anjo: não tenho varão Por isso não posso esse filho gerar Mas, faça-se em mim o que Deus desejar Pra Deus quero ser uma serva fiel Cantando louvores ao Deus de Israel Nos dez de galope na beira do mar.
O tempo passou e o povo escutava A voz que clamava no alto deserto Pra cima, pra baixo, pra longe e pra perto Soava essa voz que o profeta pregava Nas águas do rio também batizava Pedindo ao povo pra se preparar: Que nosso Messias não tarda a chegar – Batizo com água começando o jogo Mas ele batiza com Espírito e com fogo Cantando galope na beira do mar.
Jesus aparece para João Batista Mergulha nas águas do Rio Jordão Quando se batiza tem uma visão Narrada no livro do Evangelista O céu se abrindo diante da vista Palavra serena ele ouve no ar O Espírito Santo vem sobrevoar Jesus nessa hora se faz consciente Que ele é o Filho do Onipotente Cantando galope na beira do mar.
E para o deserto ele foi conduzido A soma dos dias contava quarenta Jesus persevera, se esforça e enfrenta Todo pesadelo por ele sofrido Escuta uma voz lhe falando no ouvido Eu tenho poderes pra lhe ofertar Porém Jesus Cristo se fez superar Não foi seduzido por seu inimigo Com a força de Deus se livrou do perigo Cantando galope na beira do mar.
E assim começou para o pobre e pequeno Feliz despontar de uma nova bonança Porque nessa hora a finada esperança Já ressuscitava em Jesus Nazareno Aquele rapaz com aspecto sereno Com plenos poderes se pôs a pregar Chamando os pequenos para celebrar Seu Reino de paz, de justiça e igualdade Um Reino onde impera somente a verdade Nos dez de galope na beira do mar.
A sua mensagem não foi escutada Por gente importante da sua nação Porém encantando toda multidão A boa semente da paz foi plantada Mas foi o Sinédrio que armou a cilada Dizendo: esse homem nós vamos calar Prenderam, julgaram para o condenar A morte cruel duma cruz amargou No terceiro dia ele ressuscitou Cantando galope na beira do mar.
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O VÍRUS E O VELHO – Mané Beradeiro
Meu doutor eu sou do mato. Lá não tem televisão, Meu rádio tá quebrado, Telefone tem também não! Eu senti o mundo parado O povo todo trancado Numa grande aflição! Quando procurei a feira, Na cidade do meu chão, Nem bancas estavam lá. Surgiu minha indagação: – O que é que se assucede? – Será guerra mundial? Mas não ouço um estrondo, nenhum um tiro de canhão. Doutor me arresponda: – Que está acontecendo? E o doutor foi explicando Coisa que eu não sabia. Um tal de coronavírus vindo lá do estrangeiro, Tá matando muita gente, muito mais que Lampião, Que os peidos de Jandira, que o bafo de Tonhão, Que inhaca de Raimundo, Que a fome no meu sertão. Eu fiquei agoniado e disse para o doutor: – Será possível que não tenha Um homem que mate esse sujeito? Que fure os olhos dele, quebre as pernas por inteiro, Destrua as suas armas, lasque logo este estrangeiro? Doutor, só mais uma pergunta. Pode ser? – Esse tal de coronavírus come mesmo o quê? Menino! Quando o doutor falou fiquei todo arrepiado. Minha alma deu um pulo, meu corpo ficou gelado. Vou voltar pra minha casa e ficar todo trancado. O tal do coronavírus come velho pra todo lado!
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 04 de abril de 2020
SEIS MESTRES DO IMPROVISO E UMA AULA DE ORTOGRAFIA
Isso aqui é Salamandra, São Francisco do Oeste, Já faz uns 40 anos Que eu conheço esta peste, Tirando o nome do santo, Não tem mais ninguém que preste!
Chico Monteiro
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Na sala de chão batido nos rincões do meu sertão, violas se lamentando no repicar do baião em popular cantoria que faz voltar o mourão.
Dois tamboretes de pau, dois repentistas sentados, uma bandeja de flandre, violas em seus trinados, cantoria verdadeira, martelos agalopados.
Manoel Dantas
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Nesse troco bunda e banda o leitor não se confunda tanto a bunda como a banda tem uma atração profunda Chico Buarque de Holanda ficou rico com a banda Carla Perez com a bunda.
Flavia Maroja
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Pra sair ou chegar não marco a hora No meu canto me deito saio e entro A tristeza queimando peito a dentro A saudade matando mundo afora Não faltou-me saúde até agora Mas saúde sem paz não é vantagem Pra os sem rumo sou só um personagem Pra BR sou só um inquilino Sou mais um retirante sem destino Que só leva saudade na bagagem.
Saudosista,carente,andarilho Me levanto pensando a lágrima cai Sinto tanto a ausência do meu pai Mas não sei se ele sente a do seu filho Cabisbaixo,abatido,maltrapilho Visto ao longe pareço uma visagem Precisando usar nova roupagem Pra voltar a sonhar como menino Sou mais um retirante sem destino Que só leva saudade na bagagem.
Raimundo Nonato
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Nosso sertão tem sossego Que eu quero sol e luz Tem carne assada na brasa Pra gente comer com cuscuz Quem vai ao sertão e volta Vê a cara de Jesus
Francisco Nunes
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Eu puxei antigamente Jumento pelo estovo Vendo pai fazendo cerca E minha mãe juntando ovo Daria tudo que tenho Pra ser criança de novo
A paisagem nordestina Primeiro a chuva caindo Segundo a terra molhada Terceiro a flor se abrindo Quarto um açude sangrando Quinto a pastagem surgindo
Eu comparo a mocidade Com a aurora prateada Velhice cadeia triste Com sua porta fechada Que o delegado dos anos Vê tudo mas não faz nada
A enchente empurra as varas Pra desmanchar o caniço As abelhas fazem mel Se enganchar no cortiço Quem se criou no sertão Sabe o que é tudo isso
Aldo Neves
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O ACORDO ORTOGRÁFICO E AS MUDANÇAS NO PORTUGUÊS DO BRASIL
De autoria do colunista fubânico Marcos Mairton. Publicado no seu blog Mundo Cordel em fevereiro de 2009
Com licença, meus amigos, Quero falar com vocês Sobre o que estão fazendo Com o nosso português. Eu não sei se é bom ou mau Mas, Brasil e Portugal Assinaram um tratado Pra que em nossa ortografia, Que é diferente hoje em dia, Seja tudo unificado.
Moçambique, Cabo Verde, Angola e Guiné-Bissau Assinaram o acordo Com Brasil e Portugal. O Timor Leste também Embarcou no mesmo trem E andaram me dizendo Que entrou até São Tomé, Mas este, sendo quem é, Eu só acredito vendo.
Eu sei é que para nós, Do português-brasileiro, O acordo entrou em vigor A primeiro de janeiro. E agora não tem jeito, Reclamando ou satisfeito, O que é preciso fazer É estudar a reforma Para conhecer a forma Que nós temos que escrever.
Eu já soube, por exemplo, Que acabaram com o trema E, aliás, quanto a isso, Não vejo o menor problema. Pois pronunciar “frequência”, “tranquilidade”, “sequência” e até “ambiguidade”, A gente foi aprendendo Ouvindo e depois dizendo Através da oralidade.
O “k”, o “y” e “w” Entraram no alfabeto. E quanto a isso eu achei Que o acordo foi correto Pois já tinha muita gente Com nome bem diferente No sertão do Ceará: O Yuri e o Sidney, Franklyn, Kelly e Helvesley, Já usam essas letras lá.
Mais complicado é o hífen Que ora tem, ora não. Parece que há uma regra Pra cada situação. Em muitas ele caiu Mas em algumas surgiu. E, como a coisa complica, Já falam em reunir Mais gente pra discutir Quando sai e quando fica.
Mas, parece que os problemas Que vão incomodar mais Vêm com a queda dos acentos Ditos diferenciais. Pólo, pêra, pêlo e pára Ficam com a mesma cara Pra sentidos diferentes. Mas, de acordo com reforma, “pôde”, “pôr”, “dêmos” e “forma” São exceções existentes.
Tem muitas outras mudanças Que ainda temos que estudar. Permitam-me um conselho Que agora quero lhes dar: É bom ficar bem atentos Para essa queda de acentos Na escrita brasileira. E quando for se sentar Cuide pra ninguém tirar O assento da cadeira.
Já chega de falar tanto Sobre a língua portuguesa. Vou pegar um avião E voar pra Fortaleza. Mas, antes desse percurso Devo dizer que esse curso Valeu mais que ouro em pó. Tomara que o tratado Seja também adotado No país de Mossoró.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 28 de março de 2020
Valdir Teles, poeta maior do repente, morre aos 64 anos
Ele fazia parte de um pequeno grupo que rreunia a elite da cantoria nordestina
O repentista Valdir Teles, um dos maiores nomes da poesia oral brasileira, teve sua morte anunciadanesse domingo, dia 22, pela filha, a advogada Mariana Teles, em seu perfil no Facebook. A provável causa da morte foi um infarto. O poeta estava com 64 anos, e faleceu no Sítio Serrinha, onde morava, na Zona Rural de São José do Egito (PE), no Sertão pernambucano, sua cidade natal.
Mote de Mariana Teles, filha de Valdir, glosado por Santanna:
Na solidão da latada Lembrando meu cantador.
Precisei me recluir Pois as postagens que via Eram sempre poesia Em homenagem a Valdir Eu não pude prosseguir Pois no meu peito uma dor Mitigava com furor A poesia celebrada Na solidão da latada Lembrando meu Cantador.
Santanna O Cantador
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No painel onde Deus escreve a lista dos poetas maiores deste mundo tem Homero, Virgílio, e mais no fundo, a brilhar, vem o nome do Salmista! No letreiro de Deus um repentista… É mais um, nesta lista de imortais! Entre todos os vates geniais, Valdir Teles figura no caderno deste livro sagrado e sempre eterno da mais pura poesia que Deus faz!
Nonato Freitas
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Partiu uma grande garganta Para o céu onde Deus mora E por lá fará agora Uma cantoria santa. Quando um artista se encanta O céu ganha nova luz Um anjo a introduz Nas miríades do universo Waldir hoje fez seu verso Na presença de Jesus.
Jesus de Ritinha de Miúdo, colunista do JBF
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Todo mundo parava pra lhe ouvir De repente um infarto lhe parou O Nordeste tremeu quando escutou A notícia da morte de Valdir Adorava cantar pra divertir Foi um homem de luz, um ser de paz Transferiu-se pra o lar dos imortais E só deixou pra os mortais exemplos plenos Na calçada da fama um ídolo a menos No exército de Deus um anjo a mais
Nonato Neto
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Não se pode escrever em poesia Como foi importante repentista, Valdir Teles esteve em nossa lista Dos melhores nos shows da cantoria. Só brilhou nas pelejas que fazia Por veloz ser a sua inteligência. Bom na métrica, na rima e na cadência Não deixava ninguém na sua frente Valdir deixa a chorar nosso repente E a viola a cantar a sua ausência.
Ismael Gaião
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Valdir Teles, semana passada, improvisando sobre a crise do coronavírus
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 14 de março de 2020
Capa da 5ª edição de Zé Limeira, O Poeta do Absurdo, da autoria de Orlando Tejo
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No sereno sertão da Palestina Eu cantava num Dia de Finado Uma vaca pastava no cercado Um macaco comia uma menina Um sargento chegava numa usina Um moleque zarôi vendia pente Um cavalo chinês trincava o dente Uma zebra corria atrás dum frade Quer saber quanto custa uma saudade Tenha amor, queira bem e viva ausente.
Minha muié chama Bela Quando eu vou chegando em casa O galo canta na brasa, Cai o texto da panela Eu fico olhando para ela Cheio de contentamento O satanaz num jumento Pra mordê a Mãe de Deus Não mordeu ela nem eus Diz o novo testamento
Eu vi uma gavetinha Da casa de João Moisés Mais de cem contos de réis Só de ovo de galinha Ela comeu uma tinha Da carcassa de um jumento Que bicho má, peçonhento Lacrau e piôi de cobra Não pode mais fazer obra, Diz o novo testamento
Jesus nasceu em Belém, Conseguiu sair dalí Passou por Tamataí Por Guarabira também Nessa viagem de trem Foi pará no Entroncamento Não encontrando aposento Dormiu na casa do cabo Jantou cuscus com quiabo Diz o novo testamento.
Já namorei uma Rosa Que era nega cangaceira, Gostava de fazê feira, Tinha uma boca mimosa Mas, por modo dessa prosa, Escrevi pra Santa Rita… Ronca o pombo na guarita, Passa um poico no chiqueiro, Diz o bode do terreiro: Viva a moça mais bonita
Ainda não tinha visto Beleza que nem a sua, De cipó se faz balaio A beleza continua Sete-Estrelo, três Maria Mãe do mato pai da lua
A beleza continua De cipó se faz balaio Padre-Nosso, Ave-Maria, Me pegue senão eu caio Tá desgraçado o vivente Que não reza o mês de maio
No samba que nego dança Tem cheiro de muçambê Quem nunca viu venha vê Limeira fazendo trança Foi lá perto de Esperança Que eu ví a truba passá Cai aqui cai acolá Sargento, cabo e dotô Canta , canta, cantador Que teu destino é cantar.
Eu não sei fazer o doce Mas sei quando ele tá bom, Moça que bota batom Pra mim ela já danou-se Lampião se atrapalhou-se Ficou pra lá e pra cá, Foi quando no Ceará A guerra se arrebentou Canta, canta, cantador Que teu destino é cantar.
No tempo do Padre Eterno Getúlio já governava , Prantava feijão e fava Quando tinha bom inverno… Naquele tempo moderno São João viajou pra cá Dom Pedro correu pra lá Escanchado num trator Canta, canta, cantador Que teu destino é cantar.
A minha póica maluca Brigou com setenta burro Deu cento e noventa murro Na cara de Zé de Duca Dei-lhe um bofete na nuca Que derrubei seu chapéu Vai chegando São Miguel Montando numa cadela Escrevi o nome dela Com o leve do azul do céu.
Eu me chamo Zé Limeira Cantador do meu sertão O sino de Salomão Tocando na laranjeira Crepusco de fim-de-feira Museu de São Rafael O juiz prendeu o réu Depois fechou a cancela Escrevi o nome dela Com o leve do azul do céu.
Quando Abel matou Caim No Rio Grande do Sul Deu-lhe um quilo de beiju Com as beradas de capim Nisso chegou São Joaquim Que já vinha do quartel Cumode prender Abel Dois pedaços de costela Escrevi o nome dela Com o leve do azul do céu.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 07 de março de 2020
Capa da 5ª edição de Zé Limeira, O Poeta do Absurdo, da autoria de Orlando Tejo
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Quando Dom Pedro Segundo Governava a Palestina E Dona Leopoldina Devia a Deus e o mundo O poeta Zé Raimundo Começou castrar jumento Teve um dia um pensamento: “Tudo aquilo era boato” Oito noves fora quatro Diz o Novo Testamento!
Um dia Nossa Senhora Se encontrou com Rui Barbosa Tiraram um dedo de prosa Viraram e foram se embora Judas se enforcou na hora Com uma corda de cimento Botaram os filhos pra dentro Foi pra arca de Noé, Viva a princesa Isabé, Diz o Novo Testamento.
Pedro Álvares Cabral Inventou o telefone Começou tocar trombone Na porta de Zé Leal Mas como tocava mal Arranjou dois instrumento Daí chegou um sargento Querendo enrabar os três Quem tem razão é o freguês Diz o Novo Testamento.
Um sujeito chegou no cais do porto E pediu emprego de alfaiate Misturou cinturão com abacate E depois descobriu que estava morto Ligou seu rádio no focinho de um porco E afogou-se num chá de erva cidreira Requereu um diploma de parteira E tocou numa ópera de sinos… Eram mãos de dezoito mil meninos E não sei quantos pés de bananeira.
Eu já cantei no Recife Na porta do Pronto Socorro Ganhei duzentos mil réis Comprei duzentos cachorro Morri no ano passado Mas este ano eu não morro…
Sou casado e bem casado Com quem não digo com quem A mulher ainda é viva Mas morreu mora no além Se voltar um dia à Terra Vai morar no pé-da-serra Não casa com mais ninguém.
Lá na serra do Teixeira Zé Limeira é o meu nome, Eurico Dutra é um grande Mas vive passando fome Ainda antonte eu peguei Na perna dum lubisome.
Minha mãe era católica E meu pai era católico Ele romano apostólico Ela romana apostólica Tivero um dia uma cólica Que chamam dor de barriga Vomitaro uma lumbriga Do tamanho dum farol Tomaro Capivarol Diz a tradição antiga.
Minha avó, mãe de meu pai Veia feme sertaneja Cantou no coro da Igreja O Major Dutra não cai Na beira do Paraguai Vovó pegou uma briga Trouve mamãe na barriga Eu vim dentro da laringe Quage me dava uma impinge Diz a tradição antiga.
Zé Limeira quando canta Estremece o Cariri As estrêla trinca os dente Leão chupa abacaxi Com trinta dias depois Estoura a guerra civí
Aonde Limeira canta O povo não aborrece Marrã de onça donzela Suspira que bucho cresce Velha de setenta ano Cochila que a baba desce!
Quem vem lá é Zé Limeira Cantor de força vulcânica Prodologicadamente Cantor sem nenhuma pânica Só não pode apreciá-lo Pessoa senvergônhanica.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 29 de fevereiro de 2020
O poeta cantador cearense Geraldo Amâncio, nascido no Sítio Malhada de Areia, município do Cedro, Ceará, em Cedro 29/Abr/1946, é verbete no Dicionário Cravo Albim da MPB. Lá consta o seguinte:
Cantor. Violeiro. Poeta. Escritor. Nascido em um sítio, em Cedro, no Ceará, até os 17 anos de idade trabalhou na roça. Cursou faculdade de História em Fortaleza (CE).
Começou com acompanhamento de viola em 1966. Participou de centenas de festivais em todo o país, e classificou-se mais de 150 vezes em primeiro lugar. Organizou festivais internacionais de repentistas e trovadores, além do festival Patativa do Assaré. É autor de três antologias sobre cantoria em parceria com o poeta Vanderley Pareira. Gravou 15 CDs ao longo da carreira, além de ter publicado cordéis em livros. Apresentou o programa dominical “Ao som da viola”, na TV Diário, em Fortaleza (CE).
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Poetas repentistas Geraldo Amâncio e Valdir Teles
Poetas repentistas Geraldo Amâncio e Antônio Jocélio
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 22 de fevereiro de 2020
ORLANDO TEJO HOMENAGEIA PINTO DO MONTEIRO E LOURO DO PAJEÚ
Dois ícones da cantoria nordestina de improviso: Lourival Batista, o Louro do Pajeú (1915-1992) e Severino Pinto, o Pinto de Monteiro (1895-1990)
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PINTO E LOURO – Orlando Tejo
Grande saudade hoje sinto Das cantorias-tesouro Do gigante que foi Pinto, Do uirapuru que foi Louro.
Era uma graça, um estouro Ouvir em qualquer recinto Os trocadilhos de Louro Os desconcertos de Pinto.
Tal qual no Bar do Faminto, Do Pátio do Matadouro, Quando Louro aceitou Pinto E Pinto abençoou Louro.
Mas no Bar Rosa de Ouro Houve um encontro distinto Pinto elogiando Louro, Louro chaleirando Pinto.
Jamais ficará extinto O meu prazer de ouvir Louro Querendo derrubar Pinto, Pinto brigando com Louro.
No Bar Casaca-de-Couro Vi o maior labirinto: Pinto depenando Louro E Louro esganando Pinto.
No Mercado, em Rio Tinto, Um momento imorredouro com as emboscadas de Pinto E as escapadas de Louro.
No Beco do Bebedouro Um desafio ao instinto: Pinto superava Louro, Louro desmontava Pinto.
No bar de Moisés Aminto (À Curva do Varadouro) Louro acompanhava Pinto, Pinto fugia de Louro.
Assisti, no Bar Jacinto, Luta de cristão e mouro Quando Louro açoitou Pinto, E Pinto escanteou Louro.
O sol no nascedouro E haja mel e haja absinto Nas divagações de Louro, Nos ultimatos de Pinto.
Num diálogo sucinto Reverberavam em coro Iluminuras de Pinto, Clarividências de Louro.
Essa dupla, sem desdouro, Reinou do primeiro ao quinto: Pinto maior do que Louro, Louro maior do que Pinto.
Duas fivelas num cinto, Batéis sem ancoradouro, Assim foram Louro e Pinto, Assim serão Pinto e Louro.
Penso, reflito, pressinto Que em todo o tempo vindouro Ninguém vai superar Pinto, Nenhum fará sombra a Louro.
Pois não há praga ou agouro Que manche a paz do recinto Das glórias que envolvem Louro, Dos louros que adornam Pinto.
Aqui faço paradouro (Ir além me não consinto), Rendido ao gênio que é Louro, Curvado ao estro de Pinto.
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Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas domingo, 16 de fevereiro de 2020
MOTES BEM GLOSADOS
MOTES BEM GLOSADOS
Publicado em
Dedé Monteiro, o Papa da Poesia, nascido em setembro de 1949, no sitio Barro Branco, município de Tabira, Pernambuco
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Dedé Monteiro glosando o mote
Saltei mas de mil cancelas Na estrada dos desenganos.
Na estrada dos desenganos Contei mais de mil palhoças, Pequenas, pobres, singelas, Passei por mais de mil roças, Saltei mais de mil cancelas, Dormi em mais de mil redes, Saciei mais de mil sedes, Desmanchei mais de mil planos, Fiz mais de mil amizades, Deixei mais de mil saudades, Na estrada dos desenganos.
Passei por mais de mil cruzes, Acendi mais de mil velas, Divisei mais de mil luzes, Saltei mais de mil cancelas, Mais de mil vezes chorei, E o pranto que derramei Valeu por mais de mil anos… Desfiz mil sonhos queridos, Soltei mais de mil gemidos Na estrada dos desenganos.
Ganhei mil cabelos brancos, Fiz mais de mil sentinelas, Venci mais de mil barrancos, Saltei mais de mil cancelas, Escutei mil passarinhos, Pisei mais de mil espinhos, Padeci por mil ciganos, Ganhei mais não do que sim, Deixei mil partes de mim Na estrada dos desenganos.
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Zé Mariano glosando o mote:
Vejo um quadro pintado de saudade. Na parede da minha solidão.
Relembrando meus tempos de criança, Os momentos alegres que passei Na casinha de barro onde morei, Muito simples, mas farta de esperança, O orgulho que tinha a vizinhança Já me vendo um futuro cidadão, Quando lembro a ponteira do pião Enrolando na minha mocidade, Vejo um quadro pintado de saudade Na parede da minha solidão.
Se fingir que dos anos me esqueci, Se por ser vaidoso ou por desgosto, Sem ter traumas, as rugas do meu rosto Vão mostrar que de fato envelheci. Na escola da vida eu consegui Receber o diploma de ancião, E na hora da minha conclusão, No canudo manchado da idade Vi um quadro pintado de saudade Na parede da minha solidão.
Ela foi me dizendo que voltava Eu fiquei aguardando seu regresso Foi-se um ano, dois anos, sem sucesso Nem recado, nem carta ela mandava Quando alguém por capricho perguntava A esquecesse poeta, sim ou não? Respondia com a voz do coração Implorando por sua liberdade Tenho um quadro pintado de saudade Na parede da minha solidão.
Pra poder esquecer quem certo dia Fez morada na sombra do meu peito Resolvi por em prática meu direito De viver como um pássaro em harmonia Dei um laço abraçando a poesia E depois de tomada a decisão Coloquei toda a minha inspiração No lugar de quem era outra metade E nunca mais vi um quadro de saudade Na parede da minha solidão.
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A TAMPA DO TABAQUEIRO – Dedé Monteiro
Vovô morreu muito pobre Sem nada deixar de herança Mas me deixou por lembrança Um tabaqueiro de cobre. Nunca vi coisa tão nobre, Era um troféu verdadeiro! Na tampa tinha um letreiro Que o velho escreveu pra mim Pedindo pra não dar fim A tampa do tabaqueiro.
Por isso eu nunca emprestava O tabaqueiro a ninguém, Mas quando chegava alguém Pedindo tabaco, eu dava O bicho nunca secava, Pois quando estava maneiro Eu machucava o tempero, Torrava o fumo e fazia. Tinha vez que nem cabia A tampa do tabaqueiro…
Eu estava mais do que liso Num dia que faltou fumo… Fiquei vagando sem rumo, Quase que perco o juízo… Meu irmão, com ar de riso, Me vendo sem paradeiro, Falou: “Vá no bodegueiro, Peça e diga: “eu depois venho” Ou então deixe de empenho A tampa do tabaqueiro…”
Eu disse assim pro meu mano: “Já me deu dor e cabeça, Mas inda que eu endoideça Não faço ato tão tirano. Embora que eu passe um ano Aperreando o fumeiro Não deixo de ser herdeiro Desta coisinha estimada. Morro e não deixo empenhada A tampa do tabaqueiro.
Não sei como não virei A bola naquele dia: Nunca vi tanta agonia Como aquela que passei… Somente de noite achei Quem me emprestasse o dinheiro: Corri pra venda ligeiro, Mas na carreira caí E, nessa queda, perdi A tampa do tabaqueiro.
Fiquei muito aperreado, Procurei por todo canto, Mas o escuro era tanto Que nada deu resultado. Já bastante encabulado, Fui atrás d’um candeeiro. Mas caía um chuvisqueiro, O desgraçado apagou-se E eu nem sei como encantou-se A tampa do tabaqueiro.
Voltei pra casa tremendo Que só badalo de campa… E a condenada da tampa Eu parecia estar vendo. Continuava chovendo, Eu escutava o chuveiro. Subia do bolso um cheiro Que me deixava doente, Sem poder tirar da mente A tampa do tabaqueiro…
Nessa noite aperreada Não dei de sono um cochilo. Escutei canto de grilo Até três da madrugada… Depois, sem café, sem nada, Andei quase o dia inteiro. Ninguém me dava roteiro E eu me danava com isto. Nem satanás tinha visto A tampa do tabaqueiro.
Notei que jeito não tinha, Deixei de mão d’uma vez Passou-se um mês, outro mês, Sem notícia da tampinha. Um dia, de tardezinha. Eu tive um plano certeiro: Pedi ao Pai Justiceiro, Filho da Virgem Maria, Que me mostrasse algum dia A tampa do tabaqueiro.
E eu não estava enganado. Deus escutou minha voz. A noite, dormindo a sós, Eu tive um sonho engraçado: Era um menino encantado, Envolto num fumaceiro, Dizendo: “Dedé Monteiro, Vá lá no monturo, vá, Que lá você achará A tampa do tabaqueiro.”
Acordei, corri pro muro, Estava quase sem tino, Pois o sonho do menino Era verdadeiro e puro! Inda estava um pouco escuro, Fiz café, tomei primeiro, Depois chamei um lixeiro, Fomos os dois para o lixo, Procuramos com capricho A tampa do tabaqueiro.
Procuramos sem repouso, Até que o sol declinou. Foi quando o lixeiro achou A tampa muito orgulhoso! E eu, muito mais jubiloso, Paguei ao bom companheiro. Depois mandei o ferreiro Derreter um par de brinco, Botar dobradiça e trinco Na tampa do tabaqueiro!
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas domingo, 09 de fevereiro de 2020
Acordei para ver a madrugada Abraçar com carinho o novo dia.
Fui dormir com meu coração contente Por um dia cheio de felicidade; Sem rancor, sem angústia e sem maldade, Consegui ter um sono diferente, Esquecendo as tristezas que na gente Faz morada pra tirar nossa alegria. Tive um sonho parecendo fantasia. Pra fugir dessa noite agitada, Acordei para ver a madrugada Receber com carinho o novo dia.
No jardim, vi os belos beija-flores Misturados com ousados bem-te-vis; Bons exemplos de uma vida mais feliz. Passarinhos misturando suas cores; Para eles não existem dissabores. Seus cantares nos transmitem alegria Em perfeitas e sonoras melodias. Num sussurro sutil da minha amada, Acordei para ver a madrugada Receber com carinho o novo dia.
A cidade trabalhava normalmente, Pra buscar o progresso desejado. Na floresta, o barulho do machado, Maltratava nossa mata inocente. Quem espera um futuro mais decente, Com certeza não terá tanta alegria. Maltratar inocente é covardia Dessa gente de moral atrofiada. Acordei para ver a madrugada Receber com carinho o novo dia.
As estrelas enfeitavam o infinito E a lua se escondia no horizonte; A manhã com seu jeito elegante Alegrava cada coração aflito. Tudo isso vem de Deus e é bonito Mais parece uma orquestra em harmonia, Deleitando com sonora melodia Os ouvidos da plateia apaixonada. Acordei para ver a madrugada Receber com carinho o novo dia.
Anoitece e um sonoro violão Acompanha o cantar do seresteiro, A donzela abandona o travesseiro Pra fugir da terrível solidão. Da janela sob a luz do lampião Ela sente o sabor da melodia; E naquele sentimento de alegria Não esconde que está apaixonada. Acordei para ver a madrugada Receber com carinho o novo dia.
Contemplando a beleza do oceano Vi as ondas com seu barulho feroz. Eu achei que aquela era a voz Vinda de um animal serrano. Descobri como Deus é soberano E perfeita a sua sabedoria. A beleza do infinito eu sentia, Quando a face pelo vento era tocada. Acordei para ver a madrugada Receber com carinho o novo dia.
Sorridente deixei meu leito quente Pra sentir o sabor da natureza. No jardim descobri toda beleza Pra mudar o vazio que há na gente. É aí que o nosso corpo sente O valor de estar em alegria. Mas é bom ter em nossa companhia A presença de uma pessoa amada. Acordei para ver a madrugada Receber com carinho o novo dia.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas domingo, 02 de fevereiro de 2020
No momento em que Pinto faleceu As violas pararam de tocar Deus mandou o Nordeste se enlutar Respeitando o valor do nome seu Pernambuco ao saber entristeceu Paraíba até hoje está doente Só tem galo cantando atualmente Porque Pinto mudou-se do poleiro Com a morte de Pinto do Monteiro Abalou-se o império do repente.
Severino Lourenço da Silva Pinto, o Pinto do Monteiro (1895-1990)
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Domingos Martins da Fonseca
Falar de nobreza e cor É um grande orgulho seu Morra eu e morra um nobre, Enterre-se o nobre e eu, Que amanhã ninguém separa O pó do nobre do meu.
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Manoel Macedo
Fui cantador violeiro Nas terras do meu sertão Mas deixei a profissão Em Goiás fui açougueiro Eu trabalho o dia inteiro Com minha faca amolada Mas da profissão passada Uma coisa me consola Ainda tenho a viola Como relíquia sagrada.
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Dudu Morais
A lei do retorno é dona De uma justiça tamanha Porque quem bate se esquece Da cara do que apanha Mas quem apanhou se lembra Da cicatriz que arranha.
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Oliveira de Panelas
No saco de cego tem: Arroz, feijão e farinha fubá de milho e sardinha, tem pão, café, tem xerém algum dinheiro também, sal, bolacha, amendoim, tem pé de porco e pudim, tem tripa e carne de bode. Só outro cego é quem pode ter tanta salada assim.
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Otacílio Batista Patriota
Certa vez fui convidado Para dançar numa festa Perto de Nova Floresta Na Vila do Pau Inchado Eita forró animado: Chega a poeira cobria Mas a mulher que eu queria Do Pau não se aproximava Quando eu ia ela voltava Quando eu voltava ela ia.
A garota Manuela Quis viver só de um negócio Entrava sócio e mais sócio Dentro do negócio dela Eu fui lá falar com ela Mostrando o que possuía: Ela somava e media Meu negócio não entrava Quando eu ia ela voltava Quando eu voltava ela ia.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 18 de janeiro de 2020
Moacir Laurentino e Sebastião da Silva glosando o mote:
Quem quiser ter saudade do meu tanto Sofra e ame do tanto que eu amei.
Moacir Laurentino:
Numa noite de insônia e de saudade a angustia invadiu meu coração. Eu senti a maior recordação dos amores da minha mocidade lamentei suspirei senti vontade de beijar a mulher com quem sonhei mas sem esse direito eu já fiquei e nem ela possui o mesmo encanto quem quiser ter saudade do meu tanto sofra e ame do tanto que eu amei.
Sebastião da Silva:
Quem me fez padecer tanta ilusão deixou todos meus sonhos destruídos o murmúrio do adeus nos meus ouvidos e a tristeza rasgando o coração. Já tentei esquecer mais foi em vão só eu sei quantas vezes já chorei já gastei todos lenços que comprei ensopados das gotas dos meus prantos quem quiser ter saudade do meu tanto sofra e ame do tanto que eu amei.
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Ivanildo Vilanova e Severino Ferreira glosando o mote:
Vamos ver quem possui capacidade Pra ganhar o Nobel da Cantoria.
Ivanildo Vilanova:
Nobel foi o inventor da dinamite Criador de um prêmio especifico Deu progresso ao projeto cientifico Onde a nossa ciência tem limite Hoje em dia se atende o seu convite Sem os louros da sua academia Mas se o Deus que inspirou barra do dia Não conhece liceu nem faculdade Vamos ver quem possui capacidade Pra ganhar o Nobel da Cantoria.
Severino Ferreira:
Vamos ver quem conhece aonde é O país dos Assírios e Caldeus Jafetanis, Fenícios, Cananeus Descendentes da raça de Noé E qual foi o motivo que José Se tornou o esposo de Maria Ela teve Jesus na estrebaria E não perdeu o valor da virgindade Vamos ver quem possui capacidade Pra ganhar o Nobel da Cantoria.
Ivanildo Vilanova:
Pra ganhar o Nobel só é preciso Conhecer de sentido e odalinfa Ser parente da paz, irmão da ninfa Ser parente do amor, irmão do riso É tirar oito e meio em improviso Tirar nove em métrica e harmonia Nove e meio em repente e teoria Tirar dez na escola da saudade Vamos ver quem possui capacidade Pra ganhar o Nobel da Cantoria.
Severino Ferreira:
Vamos ver quem possui inteligência Pra lembrar Tiradentes, o mineiro Que foi preso no Rio de Janeiro Por um povo de pouca consciência Que D. Pedro gritou: “Independência” Que o mundo esperava e pretendia Qual o mês, a semana, hora e o dia Que a princesa assinou a liberdade Vamos ver quem possui capacidade Pra ganhar o Nobel da Cantoria.
Ivanildo Vilanova:
Vamos ver quem possui perspectiva Pra falar sobre monte, terra e gleba Pra falar sobre a vida de algum peba Arrancando as raízes da maniva E a gata que está receptiva Quer um gato pra sua companhia Quanto mais ela arranha, morde e mia Mas o gato ansioso tem vontade Vamos ver quem possui capacidade Pra ganhar o Nobel da Cantoria.
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Pinto do Monteiro glosando o mote
O cavalo do vaqueiro Nas quebradas do sertão.
Quebra galho de aroeira, De jurema e jiquiri, Rasga beiço e calumbí, Mororó e quixabeira. Quebra-faca e catingueira, Urtiga braba e pinhão; Pau-serrote e pau-caixão, Baraúna e marmeleiro, O cavalo do vaqueiro Nas quebradas do sertão.
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Dedé Monteiro glosando o mote:
É ruim plantar esperança Pra colher desilusão.
São Severino dos Ramos Enriqueceu com promessa. Dilma promete e tropeça, Nós, sem tropeçar, penamos. E a seca, enquanto esperamos, Vai minando a região Que inda aguarda a plantação Da semente da bonança. É ruim plantar esperança Pra colher desilusão.
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Antonio Piancó Sobrinho glosando o mote:
Só partindo é que se sabe Como era bom ter ficado.
Parte gente todo dia Para as capitais do sul Pensando num mundo azul Repleto de fantasia Porém a sua alegria Termina mal tem chegado Só o serviço pesado No mundo inteiro lhe cabe Só partindo é que se sabe Como era bom ter ficado.
Passa os dias ressentido Lamentando o seu pesar Pensando um dia voltar Para o seu torrão querido Com o coração partido E o peito dilacerado Chorando, desesperado Pede a Deus que a dor se acabe Só partindo é que se sabe Como era bom ter ficado.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas domingo, 12 de janeiro de 2020
Severino Lourenço da Silva Pinto, o Pinto do Monteiro (1895-1990)
Improvisos de Pinto do Monteiro, a Cascavel do Repente, em cantorias diversas
Ninguém deve ignorar Porque Pinto do Monteiro Largou de mão a viola E passou a usar pandeiro O volume é mais menor E o pacote mais maneiro.
Eu admiro o tatu Com desenho no espinhaço, Que a natureza fez Sem ter régua, nem compasso Eu tenho compasso e régua, Pelejo, porém, não faço.
Sua terra é muito ruim Só dá quipá e urtiga Planta milho, o milho nasce Não cresce nem bota espiga De legume de caroço Só dá sarampo e bexiga.
Homem deixe de história Que se eu for ao Pajeú, Dou em Jó e dou em Louro, Em Zé Catota e em tu, E fico no meio da rua, Cantando e dançando nu.
Em dezembro, começa a trovoada, Em janeiro, o inverno principia, Dão início a pegar a vacaria: Haja leite, haja queijo, haja coalhada! Em setembro, começa a vaquejada: É aboio, é carreira, é queda, é grito! Berra o bode, a cabra e o cabrito; A galinha ciscando no quintal, O vaqueiro aboiando no curral; Nunca vi um cinema tão bonito!
Esta palavra saudade Conheço desde criança Saudade de amor ausente Não é saudade, é lembrança Saudade só é saudade Quando morre a esperança.
Saudade é tudo e é nada Saudade é como o perfume Eu só comparo a saudade Com o peso do ciúme Que a gente carrega o fardo Mas não conhece o volume.
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Pinto de Monteiro cantando com João Furiba:
João Furiba
Se você quiser ter sorte na sua mercearia, coloque uma etiqueta em cada mercadoria e ponha meu nome nela que conquista a freguesia.
Pinto do Monteiro
Triste da mercadoria que nela tiver seu nome! Pode vir um guabiru Com oito dias de fome, Caga o pão, mija no queijo, Passa por cima e não come.
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No vídeo abaixo, Severino Pinto e Lourival Batista cantando de improviso o gênero Meia Quadra.
Constante da Coleção Música Popular do Nordeste, com 4 discos, lançada em 1972.
A abertura da cantoria é feita por Lourival.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas domingo, 05 de janeiro de 2020
Quando a chuva passava aparecia Muita água descendo o tabuleiro E um açude na curva do terreiro Com uma quenga de coco eu construía Como eu nunca entendi de engenharia Meu diploma foi só de agricultor O açude não tinha sangrador Toda vez que enchia, ele arrombava No passado era assim que se criava Um menino feliz e sonhador!
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Cicinho Gomes
Eu admiro o canção Na cabeça de uma estaca; Olha pra baixo e pra cima Acuando a jararaca Como quem diz : “Ó meu Deus! Ah se eu tivesse uma faca!”
Eu admiro demais É uma gata parir, Pegar o filho na boca, Levar pra onde quer ir. Nem fere o filho no dente, Nem deixa o gato cair.
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Bráulio Bessa
Sou o gibão do vaqueiro, Sou cuscuz sou rapadura Sou vida difícil e dura Sou nordeste brasileiro Sou cantador violeiro, Sou alegria ao chover Sou doutor sem saber ler, Sou rico sem ser grã-fino Quanto mais sou nordestino, Mais tenho orgulho de ser.
Da minha cabeça chata, Do meu sotaque arrastado Do nosso solo rachado, Dessa gente maltratada Quase sempre injustiçada, Acostumada a sofrer Mais mesmo nesse padecer Eu sou feliz desde menino Quanto mais sou nordestino, Mais orgulho tenho de ser.
Terra de cultura viva, Chico Anísio, Gonzagão De Renato Aragão Ariano e Patativa. Gente boa, criativa Isso só me dá prazer E hoje eu quero dizer Muito obrigado ao destino, Quanto mais sou nordestino Mais tenho orgulho de ser.
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Zé Saldanha
Sou poeta sertanejo, Sei o caminho onde passo Tem muito poeta grande Que nunca fez o que faço Nem sabe tudo que sei Nem traça o traço que traço.
Baralho tem 4 ases, Quatro Duques, 4 Três, Quatro 4, quatro 5, Quatro 8, quatro 6, Quatro 9, quatro 7, Quatro 10, quatro valetes, Quatro Damas, quatro Reis.
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Generino Batista
Nós somos dois caborés cantando aqui neste escuro é um em cima de um toco o outro em cima de um muro e quem tá de fora dizendo: – Ô caborés sem futuro!.
Eu moro num pé de serra que não sabe ler ninguém o meu pai chama “promode” minha mãe chama “quiném” e o filho de um casal deste que português é que tem?
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Manoel Dodô
Na profissão de carreiro, eu faço tudo e não deixo, compro sebo ensebo o eixo, a canga e o tamoeiro, sete palmos de fueiro medidos na minha mão, uma vara de ferrão, dois canzis de mororó: carro de boi e forró faz eu gostar do sertão.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas quinta, 02 de janeiro de 2020
Desejo um ano porreta Deus lhe dê tudo o que quer Peleja, trabalho, treta, Os carim duma mulher Desarrede o negativo Abufele o positivo Tenha o horizonte por régua Num tenha medo da vida Tenha o céu como medida E um sucesso pai d’égua!
Macho véi, felicidade, É pra se pegar de unha Num aceite a falsidade Que é onde a maldade acunha Num se agonie no camim Nem permita o farnizim Num esmoreça seje macho Corra o mundo, ande légua E até na baixa da égua Que o buraco é mais embaixo
Vá anotano os seus querê Tudo o que você deseje Dipendure onde se vê Leia pra que num fraqueje! Seja um cão chupano manga Teja de terno ou de tanga Nunca espere vá buscar Persistência atrai sucesso Que vai fazer seu progresso Quando menos se esperar
No amor num se arrelie Nem só fique arrodiano Num bata fofo, se avie Se avexe e faça um bom plano Mas fique limpo na nota Num pegue qualquer marmota Nem viva de fulerage Cachorro é quem pega peba Num viva de mistureba Nas grota da vadiage
Amor é uma corralinda Mas num seje um farofêro Num peça pinico ainda Seja o galo do terrêro Pastore que a hora chega Gato gosta é de mantêga Dê seu bote devagar Mas dêxe as unhas de fora Que o seu cabresto tóra Antes do ovo gorar
Comece esse novo ano Sem os erros do passado Chô mundiça! É o novo plano Chame a sorte pro seu lado Muche as orêia e rebole No mato tudo que é mole Grite do alto do nordeste – Eu sou herdeiro de Deus E os mundos também são meus Oxente, cabra da peste!
Agora qui tás mais forte Seje feliz dicumforça Nosso Sinhô sendo o norte Brinque, dance, grite e torça Nada há de lhe derrubar Comece logo a sonhar Com a Paz e nunca dê trégua O poeta ainda lhe diz CABRA VÉI, SEJE FELIZ, E UM ANO NOVO PAI D’ÉGUA!
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 28 de dezembro de 2019
GRANDES MOTES, GRANDES GLOSAS E UM FOLHETO DE ABC
GRANDES MOTES, GRANDES GLOSAS E UM FOLHETO DE ABC
Publicado em
Moacir Laurentino e Sebastião da Silva glosando o mote:
A poeira da estrada Apagou o nome dela.
Sebastião da Silva
Eu passeei com meu bem Pelo cantinho da sorte, Já cruzei de Sul a Norte, De Leste a Oeste também E o destino ingrato vem Nos deixa dores, sequela, E hoje da minha bela Tenho lembrança e mais nada. A poeira da estrada Apagou o nome dela.
Moacir Laurentino
O antigo casarão Do meu amor verdadeiro, Que eu abracei no terreiro, Lhe dei aperto de mão, Hoje só tem solidão, A tristeza e a sequela, Está velhinha a cancela, Pendida e escancarada. A poeira da estrada Apagou o nome dela.
Sebastião da Silva
Naquele belo recanto, Que foi nossa moradia, Onde havia Cantoria, Muita festa em todo canto, Houve novena de santo, No altar e na capela, Só tem o santo e a vela, Onde a missa era rezada. A poeira da estrada Apagou o nome dela.
Moacir Laurentino
A mulher que me amou, Que me queimou como brasa, Eu fui visitar a casa E tudo se divisou, A saudade ela deixou, A sua saia amarela, O resto de uma chinela E uma blusa remendada. A poeira da estrada Apagou o nome dela.
Sebastião da Silva
Naquela nossa casinha, Que tinha na encruzilhada, Bem na beira da estrada, A casa era dela e minha, Lá o nome dela tinha, Desenhado na janela, Mas hoje não estou com ela E a casa já está fechada. A poeira da estrada Apagou o nome dela.
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Geraldo Amâncio glosando o mote:
Pra que tanto tesouro acumulado Se ninguém leva nada no caixão.
Não adianta um pecador enganar E nessa vida viver da fase crítica Entre luta, entre roubo, entre política Pra depois nesse mundo ele enricar Que se a gente também for comparar Desde um rico para um pobre cristão Para Deus vale mais quem pede um pão Do que um presidente ou deputado Pra que tanto tesouro acumulado Se ninguém leva nada no caixão.
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Bob Motta glosando o mote:
Quer ver cachaça o que faz? Não beba e preste atenção…
Chama cachorro de cacho, chama mestre de aprendiz, militar de militriz, e nunca sossega o facho. Bêbado de cima abaixo, anda nu na multidão, caga em cima do balcão, não deixa ninguém em paz, Quer ver cachaça o que faz? Não beba e preste atenção…
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Rafael Neto glosando o mote:
Me afoguei na maré da sedução Quando o barco do amor perdeu o rumo.
Já cruzei muitos mares caudalosos, Porém nesse eu quase perco a vida. Nesse barco a passagem é só de ida Nos prazeres dos mares ondulosos, Meus desejos carnais são poderosos Pra tirar minha vida do seu prumo, E pra viver ou morrer eu mesmo assumo, Que o culpado de tudo é a paixão. Me afoguei na maré da sedução Quando o barco do amor perdeu o rumo.
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ABC PARA LEMBRAR RAULZITO E GONZAGÃO – Rouxinol do Rinaré
Amigos que apreciam Meus cordéis, peço atenção Pois vou falar de dois mitos Saudosos dessa nação No ABC pra lembrar Raulzito e Gonzagão.
Baião é ritmo dançante Do nordeste brasileiro Se originou da toada Do popular violeiro E imortalizou Luiz Nosso maior sanfoneiro.
Cantando, Luiz Gonzaga, Resgatou nosso nordeste Tocou baião, polca e xote, Com o baião passou no teste Engrandeceu nosso chão Como um bom “cabra da peste”.
Declarou Luiz Gonzaga: – Após a minha partida Eu quero enfim ser lembrado Como quem cantou a lida Do sertanejo e amou Toda essa gente sofrida.
Eu quero que não esqueçam Que cantei sempre o sertão Os padres, os cangaceiros, O covarde, o valentão, As secas, os animais, E as aves de arribação…
Fui um historiador Do nordeste brasileiro Documentei seus costumes Junto de cada parceiro Cantei minha região, Fui fiel e verdadeiro.
Gonzagão e Raul Seixas Provam genialidade Cada qual compondo um hino, Conforme a realidade, Um falando do sertão E o outro de liberdade.
Hino nacional do povo Segundo Mestre Marçal É a toada Asa Branca E do Raul liberal Sociedade Alternativa É o hino universal.
Inda criança Raul Escutava Gonzagão Na adolescência o Elvis Completava a formação Musical para que ele Criasse o Rock-Baião.
Juntando tais influências Raulzito genial Fez então Let Me Sing E o Sétimo Festival Da Canção ele venceu De forma sensacional.
K, lembrei de Karolina Que era mulher faceira. Conforme Luiz Gonzaga Também era presepeira… A “Karolina com K”, Dançarina de primeira.
Luiz marcou Raul Seixas Cantando Cintura Fina Lorota Boa, entre outras, De raiz bem nordestina Porém Raul foi autêntico E isso é que me fascina.
Mas, pra Raul e Luiz, Tinha o destino proposto No ocaso da existência Sumirem feito sol posto, Morreram em Oitenta e Nove, Ambos no mês de Agosto.
No dia dois desse mês Luiz foi pro infinito E no dia Vinte e Um Seguia-lhe Raulzito Segundo Otávio Menezes* Houve um encontro bonito.
Os covers que me desculpem, Reflitam por um segundo: “Cada um é um universo…” “Cada cabeça é um mundo…” “Siga o seu próprio caminho…” Aqui Raul foi profundo!
Porque Raul sempre teve Forte personalidade Curtiu Luiz, Lennon e Elvis Com particularidade, Não foi cover de ninguém. Tinha a própria identidade.
Quero lembrar Raulzito Não como um simples roqueiro Pois cantou diversos gêneros Com o intuito verdadeiro De dar um alertar, um toque, Para o povo brasileiro.
Raul com certeza não Foi “apenas o cantor” Ele que desde criança Sonhava em ser escritor Com a mente além de seus dias Foi um livre pensador.
Sessenta e quatro anos fez Que Raulzito nasceu E agora já vinte anos Completou que ele morreu, Mas é eterno na mente De quem o compreendeu.
Todos tiveram parceiros. Gonzaga: Humberto Teixeira E o famoso Zé Dantas. Raul teve um de primeira: O mago Paulo Coelho, Que marcou sua carreira.
Um dia Raul falou Algo que me convenceu. Ele disse: “Antes de ler O livro que o Guru deu Abra o olho, meu ‘cumpadi’, Procure escrever o seu!”
Viva Raul Santos Seixas Que cumpriu sua missão E embarcou no Trem das Sete, “O último trem do sertão”, Pra festejar no infinito Com Luiz, Rei do Baião.
White wings, versão De “Asa Branca” em inglês, Umas das muitas proezas Que Dom Raulzito fez. O som ficou bem “maneiro’, Isso eu garanto a vocês!
Xote Ecológico tem letra Falando de ecologia Gonzagão com Aguinaldo Nessa bela poesia Nos fala de Chico Mendes E o crime, então, denuncia.
“Y lá é psiloni”, Assim cantou Gonzagão. Brincou com nosso alfabeto Em um gostoso baião Cujo título apropriado É “ABC do sertão”.
Zumbizando feito a mosca Na sopa, Raul provou. Que a verdade incomoda. Nas musicas que ele cantou Lucidez é o legado Que para os seus fãs deixou.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 14 de dezembro de 2019
MANOEL XUDU, UM GRANDE POETA, UM MESTRE DO REPENTE
MANOEL XUDU, UM GRANDE POETA, UM GÊNIO DO REPENTE
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O grande poeta paraibano Manoel Xudu (1932-1985)
O meu verso é como a foice De um brejeiro cortar cana. Sendo de cima pra baixo, Tanto corta, como abana, Sendo de baixo pra cima, Voa do cabo e se dana.
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O homem que bem pensar Não tira a vida de um grilo A mata fica calada O bosque fica intranquilo E a lua chora com pena Por não poder mais ouvi-lo
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Eu admiro um caixão Comprido como um navio Em cima uma cruz de prata No meio um defunto frio E um cordão de São Francisco Torcido como um pavio.
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Nessa vida de amargura O camponês se flagela Chega em casa à meia-noite Tira a tampa da panela Vê o poema da fome Escrito no fundo dela.
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Uma novilha amojada Ao se apartar do rebanho, Quando volta, é com uma cria Que é quase do seu tamanho; Ela é quem lambe o bezerro, Por não saber lhe dar banho.
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Carneiro do meu sertão, Na hora em que a orelha esquenta, Dá marrada em baraúna Que a casca fica cinzenta E sente um gosto de sangue Chegar à ponta da venta.
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Uma galinha pequena Faz coisa que eu me comovo: Fica na ponta das asas, Para beliscar o ovo, Quando vê que vem, sem força, O bico do pinto novo.
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Tem coisa na natureza Que olho e fico surpreso: Uma nuvem carregada, Se sustentar com o peso, De dentro de um bolo d’água, Saltar um corisco aceso.
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O ligeiro mangangá Passa, nos ares, zumbindo; As abelhas do cortiço Estão entrando e saindo, Que, de perto, a gente pensa Que o pau está se bulindo.
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A raposa arrepiada Se aproxima do poleiro, Espera que as galinhas Pulem no meio do terreiro; A que primeiro descer, É a que morre primeiro.
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Eu tava na precisão Quando me casei com Nita Nada tinha pra lhe dar Dei-lhe um vestido chita Ela olhou sorrindo e disse Oh! Que fazenda bonita!
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É uma bola de ouro Pra todo humilde vaqueiro, Que ganha do fazendeiro, Um belo chapéu de couro. Conduz aquele tesouro À noite, para o colchão; Para, na escuridão, Não ser roído do rato. Chapéu de couro, o retrato Do vaqueiro do sertão.
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Vê-se o sertanejo moço Com três meses de casado; Antes de ir pro roçado, Da mulher, beija o pescoço. Ela lhe traz, no almoço, Uma bandeja de angu, A titela de um nhambu, Depois lhe abraça e suspira. O sertanejo admira As manhãs do Pajeú.
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Mamãe que me dava papa Me dava pão e consolo Dava café, dava bolo Leite fervido e garapa Mas uma vez deu-me um tapa E depois se arrependeu Beijou aonde bateu Desmanchou a inchação “quem perdeu mãe tem razão De chorar porque perdeu”.
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Dia 13 de março terça-feira Ano mil novecentos trinta e dois Pouco tempo depois que o sol se pôs Mamãe dava gemidos na esteira Numa casa de barro e de madeira Muito humilde coberta de capim Eu nasci pra viver sofrendo assim Minha dor vem dos tempos de menino Vivo triste por causa do destino E a saudade correndo atrás de mim.
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Quando Deus, que é juiz pra todo jugo, Molha as terras sedentas e vermelhas, O corisco por cima abala as telhas, Cai a água, me molho e me enxugo. Vê-se um sapo escanchado num sabugo, Como um cabra remando uma canoa… Sai cortando as maretas da lagoa, Chega os braços parecem um cata-vento. Salta fogo das nuvens de momento, Cai a chuva na terra, o trovão zoa.
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No sertão, todo dia, bem cedinho Vê-se um galo descendo do poleiro, Um cabrito berrando no chiqueiro, No terreiro, fuçando, um bacorinho. Um preá sai torcendo o seu focinho, Como um cego tocando realejo; Na cozinha, uma velha espreme o queijo, Um bezerro berrando no curral. O retrato do corpo natural É a veste do homem sertanejo.
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Um ferreiro suado numa tenda, Agarrado no cabo da marreta, Consertando algum dente da carreta Que quebrou e precisa duma emenda; Um crioulo no pé duma moenda, Já um pouco queimado de aguardente; O bagaço espirrando pela frente E uma bica de caldo derramando, Um bueiro, mal feito, fumegando, Representa o sertão de antigamente.
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O mar se orgulha por ser vigoroso, Forte, gigantesco que nada lhe imita Se ergue, se abaixa, se move, se agita, Parece um dragão feroz e raivoso. É verde, azulado, sereno, espumoso; Se espalha na terra, quer subir pro ar, Se sacode todo, querendo voar, Retumba, ribomba, peneira, balança, Nem sangra, nem seca, nem para, nem cansa, São esses fenômenos da beira do mar.
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O próprio coqueiro se sente orgulhoso Porque nasce e cresce na beira da praia No tronco, a areia da cor de cambraia O caule enrugado, nervudo e fibroso Se o vento não sopra silencioso Nem sequer a fronde se vê balançar Porém, se o vento com força soprar A fronde estremece, perde toda a calma As folhas se agitam, tremem, batem palma Pedindo silencio na beira do mar.
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Não há tempestades e nem furacões, Chuvada de pedra no bosque esquisito Quedas de coriscos e meteorito Tiros de granadas, obuses, canhões, Juntando os ribombos de muitos trovões Que tem pipocado na massa do ar Cascata rugindo, serra a desabar, Estrondo, ribombos, rumores de guerra, Nuvens mareantes, tremores de terra Que imitem a zoada na beira do mar.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 07 de dezembro de 2019
A saudade é companheira De quem não tem companhia.
Vivo em eterna agonia Sem saber o resultado Deus já me deu o atestado Pra eu baixar à terra fria. Em volta só vejo o mal Deste meio social, E espero sozinho o dia De minha hora derradeira… A saudade é companheira De quem não tem companhia.
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José Lucas de Barros glosando o mote:
A viola, em silêncio, está chorando, Com saudade da voz do violeiro.
Chico Motta viveu de cantoria, Imitando as graúnas sertanejas, Nos ardores de inúmeras pelejas Que aprendeu a enfrentar com galhardia; Seu programa, nem bem raiava o dia, Acordava o sertão alvissareiro, Mas, depois do seu verso derradeiro, Que inda está, nas quebradas, ecoando, A viola, em silêncio, está chorando, Com saudade da voz do violeiro.
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Pinto do Monteiro glosando o mote:
Aquela chuvinha fina Me faz chorar de saudade.
Me lembro perfeitamente, Quando em minha idade nova, O meu pai cavava a cova E eu plantava a semente. Eu atrás, ele na frente, Por ter força e mais idade, Olhando a fertilidade Da vastidão da campina, Aquela chuvinha fina Me faz chorar de saudade.
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Severino Ferreira glosando o mote:
O Nordeste poético ainda chora Com saudade de Pinto do Monteiro.
Sei que Pinto deixou como recinto A Monteiro que é sua cidade O Nordeste até hoje tem saudade De um poeta pacato e tão distinto Outro galo não faz mais outro pinto Que seja poeta e verdadeiro Se pegar a galinha no terreiro E tentar fabricar o ovo “gora” O Nordeste poético ainda chora Com saudade de Pinto do Monteiro.
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Waldir Teles glosando o mote:
Quando morre um alguém que a gente adora Nasce um broto de dor no coração.
Quando morre um parente ou um amigo Resta só lamentar, ninguém dá jeito A tristeza se aloja em nosso peito A angústia se apossa do abrigo O seu corpo levado pra o jazigo É seguido por uma multidão Nem compensa apertar na sua mão É inútil dizer não vá agora Quando morre um alguém que a gente adora Nasce um broto de dor no coração.
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Jó Patriota glosando o mote:
A casa que tem criança Deus visita todo dia.
Quando a criança adormece A mãe já fraca do parto Nos quatro cantos do quarto Deus em pessoa aparece. O Santo Espírito desce Distribuindo alegria Aquela rede sombria Tem uma mão que balança A casa que tem criança Deus visita todo dia.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 30 de novembro de 2019
Toda vez que se prende um passarinho Diminui na floresta um seresteiro.
Um pequeno vivente exilado Canta o solo agrural da orfandade No pequeno calabouço da saudade Uma lágrima, no canto afinado Lembra o laço que o tornou destronado Do seu reino, velho angico altaneiro Dos filhotes, não sabe o paradeiro Um covarde caçador desfez seu ninho Toda vez que se prende um passarinho Diminui na floresta um seresteiro.
Vá na mata , sinta o cheiro da ramagem O olor das flores, seu verdume As abelhas doidivanas, no costume Um regato cristalino, bela imagem Borboletas multicores em passagem Pergunte lá; se está tudo prazenteiro Se, sem musica, sem cantor, isto é certeiro Fauna e flora lhe responde: é só espinho Toda vez que se prende um passarinho Diminui na floresta um seresteiro.
Sob o visgo da covarde armadilha De um covarde que não teve coração Mente má que semeia escuridão Mão cruel que apaga a luz que brilha Que descarta a liberdade da cartilha Que despreza o que disse o conselheiro Ainda há tempo se arrependa companheiro Deixe o menestrel voltar pro seu cantinho Toda vez que se prende um passarinho Diminui na floresta um seresteiro.
Quem não fez nenhum crime, o que merece? Sem juízo, viver posto na prisão? Pegar pena perpétua, sem razão? Então, o que quer que ele confesse? Se o homem é o rei, por que se esquece? Que liberdade, só presta por inteiro Que esse bicho pequenino é o curandeiro Dos que sofrem na mata sem carinho Toda vez que se prende um passarinho Diminui na floresta um seresteiro.
O pentagrama natural da mãe natura Sente a falta das notas do cantor Quando em solo delirante, o torpor Invadia tudo em sua tablatura O compasso da pequena criatura Fez-se pausa no tempo, em tempo inteiro Em exílio eternal do seu terreiro Melancólico, canta então pobre bichinho Toda vez que se prende um passarinho Diminui na floresta um seresteiro.
Um corista está faltando no coral A sinfônica sente a falta do cantor Sente a flora, o gorjeio que faltou A cantata de então não é igual Sua falta faz falta no festival Se perturbe, se comova carcereiro Quebre as talas, abra a porta do viveiro Deixe a mata ter de volta o cantorzinho Toda vez que se prende um passarinho Diminui na floresta um seresteiro.
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Gregório Filó glosando o mote:
Meu engenho de saudade Quebra cana todo dia.
O meu engenho de aço Não moeu mais uma cana Já faz mais de uma semana Que um alfenim eu não faço Não vendi mais um cabaço De garapa a freguesia A máquina da nostalgia É que trabalha à vontade Meu engenho de saudade Quebra cana todo dia.
Nunca mais fiz uma farra Por causa da falta dela Vou como um boi de barbela Atrelado à almanjarra A moenda só esbarra De encontro à melancolia E a fornalha não esfria Queimando a felicidade Meu engenho de saudade Quebra cana todo dia.
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Manoel Xudu glosando o mote:
A viola é a única companheira Do poeta nas horas de amargura.
Se eu morrer num sábado de aleluia E for levado ao campo mortuário, Se alguém visitar o meu calvário, Jogue água em cima com uma cuia. Leve junto a viola de imbuia, Deixe em cima da minha sepultura. Muito embora que fique uma mistura De arame, de pus, terra e madeira, A viola é a única companheira Do poeta nas horas de amargura.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 23 de novembro de 2019
Pedro Bandeira e Manoel Xudu: dois grandes cantadores nordestinos
Pedro Bandeira
Colega Manoel Xudu Abra o palco da cortina, Se firme bem na cadeira Erga o peito e se previna, E diga como deixou A cidade de Carpina.
Manoel Xudu
Vai bem minha Planaltina De poetas um viveiro, Situada entre Paudalho Nazaré e Limoeiro, E agora mandou seu vate Vir visitar Juazeiro.
Pedro Bandeira
Mas você não é romeiro Nem comprador de pequi, Nem carola nem turista Ninguém lhe esperava aqui, Sem eu lhe dar carta branca Pra entrar no Cariri.
Manoel Xudu
Eu vim porque conheci Que havia necessidade, De conhecer os colegas Que moram nessa cidade, E saber se o novo príncipe Tem ou não autoridade.
Pedro Bandeira
Saiba que sou majestade No reinado poesia, Você pra cantar comigo Precisa ter fidalguia, Nobreza, brio e respeito Honra e aristocracia.
Manoel Xudu
Há tempo que conhecia A fama do meu amigo, Porém eu sou dos poetas Que nunca teme perigo, Só digo que um cabra canta Depois que cantar comigo.
Pedro Bandeira
Você está no meu abrigo Se não quiser passar fome, Respeite meu auditório Meu cetro e meu cognome, Minha esposa e minha filha Minha plateia e meu nome.
Manoel Xudu
Acho bom que você tome O conselho que lhe dou, Estou no seu auditório Mas seu escravo não sou, Penetre em qualquer terreno Que se eu puder também vou.
Pedro Bandeira
O sangue do meu avô No meu sangue inda evapora, Me dando ideia e talento Entusiasmo e sonora, Pra rebater desaforo De repentista de fora.
Manoel Xudu
Com sua proposta agora, Sei que o jeito que tem, É eu lhe dar um acocho Dos ossos virar xerém, Que canto a vinte e dois anos E nunca perdi pra ninguém.
Pedro Bandeira
Eu nunca perdi também E agora vou lhe provar, Que daqui a meia hora Você começa a chorar, Troca a viola em cachaça E nunca mais fala em cantar.
Manoel Xudu
É mais fácil se esgotar O mar com uma peneira, Bala de aço esmagar-se Em tronco de bananeira, Do que Manoel Xudu Temer a Pedro Bandeira.
Pedro Bandeira
É mais fácil uma caveira Ter nojo dum urubu, Uma cobra de veado Se assombrar com um cururu, Do que o príncipe dos versos Respeitar Manoel Xudu.
Manoel Xudu
É mais fácil um canguçu Correr com medo dum bode, Menino enjeitar bolacha Moleque enjeitar pagode Do que eu correr com medo Dum cantador sem bigode.
Pedro Bandeira
Nós sabemos que Deus pode Manobrar tudo que é seu, Transformar o gelo em fogo Ressuscitar quem morreu, Não pode é criar poeta Pra cantar mais do que eu.
Manoel Xudu
Mas agora apareceu Miguel Alencar Furtado, Que é Juiz e deu um tema Muito bem metrificado, E vamos saber do tema Quem canta mais inspirado.
* * *
Mote:
Vi a noite enlutando o horizonte, Com saudade do dia que morreu.
Pedro Bandeira
Cinco e meio da tarde mais ou menos Resolvi vê de Deus os espetáculos, Transportei-me das baixas aos pináculos Pra poder me inspirar olhando Vênus, Comecei vislumbrar astros pequenos O Cruzeiro do Sul resplandeceu, Quando o rosto da lua apareceu Eu estava na crista de um monte, Vi à noite enlutando o horizonte Com saudade do dia que morreu.
Manoel Xudu
Quando o sino tocava Ave–Maria E o sol se escondia no ocaso, De um voo transportei-me ao Parnaso Num balão que eu fiz de poesia, Uma estrela brilhava o sol morria E a natura chegava ao apogeu, Tive sede e um querubim me deu Água pura tirada duma fonte, Vi à noite enlutando o horizonte Com saudade do dia que morreu.
Pedro Bandeira
Contemplei azul além do mar Vi a treva envolvendo as ondas pardas, As libélulas pousaram nas mostardas E agripinas saíram do pomar, Escutei uma musa solfejar Uma musica crida por Orfeu, Estendi-me nos braços de Morfeu Reclinei no seu busto a minha fronte, Vi à noite enlutando o horizonte Com saudade do dia que morreu.
Manoel Xudu
Eu também me achava esmorecido Numa tarde perdido no deserto, Sem achar um amigo ali por perto Que indicasse por onde eu tinha ido, Quando o bravo leão deu um rugido Que o bosque da serra estremeceu, Mas o manto de Deus se estendeu Parecendo a varanda de uma ponte, Vi à noite enlutando o horizonte Com saudade do dia que morreu.
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Pedro Bandeira
Atendi ao pedido do Juiz Mas a nossa polêmica continua, Pra você minha volta vai ser crua Encomende-se a Deus pra ser feliz, Se é mesmo um poeta como diz Mostre aqui sua personalidade, Se vier com mentira e vaidade Entra grande na luta e sai pequeno, Nunca mais quer entrar no meu terreno Sem primeiro pedir-me a liberdade.
Manoel Xudu
Eu não vim procurar inimizade Com você seus irmãos e outros mais, Mas se quer destruir o meu cartaz É perdida de vez sua vontade, Com poeta de toda qualidade No Nordeste eu tenho combatido, No Brasil o meu nome é conhecido Desde o Norte ao Sul Leste e Oeste, Quem meter-se comigo a fazer teste Leva pau perde o jeito e sai vencido.
Pedro Bandeira
Vou coser sua boca e um ouvido Dou-lhe um murro na cara estoura os pés, Cantador do seu jeito eu dou em dez Só enquanto mamãe troca um vestido, Fuxiqueiro insultante e desconhecido Atrasado sem luz e sem valor, Decoreba perverso e traidor Beberrão de latada e pé de serra, Volte e digas chorando em sua terra Que agora encontrou superior.
Manoel Xudu
Repentista se enche de pavor Quando ouve meu verso e meu baião, Sente logo tremer o coração Gela o sangue, o rosto muda a cor, Em martelo eu sou raio abrasador Cantador sendo fraco eu dou em cem, A pancada que dou é como o trem Um gigante pra mim inda é pequeno, Cascavel que eu pegar perde o veneno Só me curvo a Deus e a mais ninguém.
Pedro Bandeira
Otacílio Batista canta bem Lourival é o rei do trocadilho, Zé Faustino morreu deixou seu filho Clodomiro não perde pra ninguém, Dr. Dimas um título também tem Pinto velho é o rei do Pajeú, Louro Branco e Moacir no Iguatu Os Irmãos Bernardino se deleitam, Todos esses poetas me respeitam Quanto mais uma égua como tu.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 16 de novembro de 2019
Poeta cantador pernambucano Otacílio Batista Patriota (1923-2003)
Otacílio Batista
Certa vez fui convidado Para dançar numa festa Perto de Nova Floresta Na Vila do Pau Inchado Eita forró animado: Chega a poeira cobria Mas a mulher que eu queria Do Pau não se aproximava Quando eu ia ela voltava Quando eu voltava ela ia.
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O poeta e o passarinho são ricos de inteligência simples como a natureza eternos como a ciência estrelas da liberdade peregrinos da inocência.
Herdeiros da providência, um no chão, outro voando, um pena com tanta pena outro sem pena penando, um canta cheio de pena, outro sem pena cantando.
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João Paraibano
Faço da minha esperança Arma pra sobreviver, Até desengano eu planto Pensando que vai nascer E rego com as próprias lágrimas Pra ilusão não morrer.
Há três coisas nesta vida Que Deus me deu e eu aceito: A terra para os meus pés, A viola junto ao peito E um castelo de sonhos Pra ruir depois de feito.
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Braulio Tavares
Superei com o valor da minha prosa o meu mestre imortal Graciliano, os romances de Hermilo e de Ariano e as novelas de João Guimarães Rosa; sou maior que Camões em verso e glosa, com Pessoa também fui comparado, tenho a verve do estilo de Machado e a melódica lira de Bandeira: sou o Gênio da Raça Brasileira quando canto martelo agalopado!
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Zé Vicente da Paraíba
O reflexo de estrelas luminosas São lanternas de Deus no firmamento Fica muito suave a voz do vento Evitando qualquer destruição Os rebanhos deitados pelo chão E cada pássaro no galho se aquieta Enriquece o juízo do poeta O cair de uma noite no sertão.
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Manuel Lira Flores
Quando as tripas da terra mal se agitam e os metais derretidos se confundem, os escuros diamantes que se fundem das crateras ao ar se precipitam. As vulcânicas ondas que vomitam grossas bagas de ferro incendiado ao redor deixam tudo sepultado só com o som da viola que me ajuda: treme o sol, treme a terra, o vento muda quando eu canto o martelo agalopado!
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Joaquim Vitorino
Tenho enorme inteligência Poeta não me dá vaia Sou vento rumorejando Nos coqueiros de uma praia Sou mesmo, que Rui Barbosa Na conferência de Haia.
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Diniz Vitorino cantando com Manoel Xudu
Manoel Xudu
Voei célere aos campos da certeza E com os fluidos da paz banhei a mente Pra falar do Senhor Onipotente Criador da Suprema Natureza Fez do céu reino vasto, onde a beleza Edifica seu magno pedestal Infinita mansão celestial Onde Deus empunhou saber profundo Pra sabermos nas curvas deste mundo Que ele impera no trono divinal.
Diniz Vitorino
Vemos a lua, princesa sideral Nos deixar encantados e perplexos Inundando os céus brancos de reflexos Como um disco dourado de cristal Face cálida, altiva, lirial Inspirando canções tenras de amor Jovem virgem de corpo sedutor Bem vestida num “robe” embranquecido De mãos postas num templo colorido Escutando os sermões do Criador.
Manoel Xudu
Os astros louros do céu encantador Quando um nasce brilhando, outro se some E cada astro brilhante tem um nome Um tamanho, uma forma, brilho e cor Lacrimosos vertendo resplendor Como corpos de pérolas enfeitados Entre tronos de plumas bem sentados Vigiando as fortunas majestosas Que Deus guarda nas torres luminosas Que flutuam nos paramos azulados.
Diniz Vitorino
Olho os mares, os vejo revoltados Quando o vento fugaz transtorna as brumas E as ondas raivosas lançam espumas Construindo castelos encantados As sereias se ausentam dos pecados Que nodoam as almas dos humanos E tiram notas das cordas dos pianos Que o bom Deus ocultou nos verdes mares E gorjeiam gravando seus cantares Na paisagem abismal dos oceanos.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 09 de novembro de 2019
No terreiro da casa do meu peito Nasce um pé de saudade todo dia.
Pedro Nunes
Vi riachos descendo apressados De chapadas, de vales e baixios Carregando nas águas para os rios O adubo das terras do Sertão Uma rosa infeliz que foi ao chão No tumulto das águas fenecia Cada pétala vermelha que caía Me deixava inda mais insatisfeito No terreiro da casa do meu peito Nasce um pé de saudade todo dia.
Rômulo Nunes
Se a cauã agorenta não mais canta, Sertanejo já fica preparado, Tira logo os bichos do roçado E aguarda ansioso a chuva santa. Seu depósito só tem milho de planta, Resultado de sua economia Tem feijão, jerimum e melancia E um semblante alegre e satisfeito No terreiro da casa do meu peito Nasce um pé de saudade todo dia.
Pedro Nunes
Os enfeites na casa de um vaqueiro São as botas, perneiras e gibão, Um chocalho com o ferro do patrão, Uma peia, uma corda, um peitoral, Nos dois loros estribos de metal Passadores, fivelas, prataria, Uma sela com boa montaria Para homem nenhum botar defeito No terreiro da casa do meu peito Nasce um pé de saudade todo dia.
Rômulo Nunes
Reviver o lugar que fui criado, É para mim o desejo principal, Esquipar em cavalo de pau, Ossos velhos que eu tinha como gado, Um pião com ponteira bem pesado, Que eu jogava com muita maestria, São brinquedos que eu tinha alegria, Nem queria saber por quem foi feito, No terreiro da casa do meu peito Nasce um pé de saudade todo dia.
Pedro Nunes
No alpendre da casa onde eu morava, Ouvi muitas histórias de vaqueiros, De cruéis e terríveis cangaceiros Que infestavam as estradas do Sertão Foi Silvino, depois foi Lampião, Atacando na hora que queria E apesar do perigo que havia Para idoso, mulher e homem feito, No terreiro da casa do meu peito Nasce um pé de saudade todo dia.
Rômulo Nunes
Bem sentado na calçada ou na cadeira, Lá ouvia as estórias de trancoso Sem dormir eu ficara bem medroso, Mesmo assim não parava a brincadeira, Quebra-pau, futebol, barra-bandeira, Esconder, pular corda e academia, Era assim que a vida me fazia, Um garoto alegre e satisfeito, No terreiro da casa do meu peito Nasce um pé de saudade todo dia.
Pedro Nunes
Os vaqueiros famosos foram tantos Nas caatingas fechadas do Sertão Vi Cazuza, Ribinga e Militão, Vi Charuto, Zé Mago e Oliveira, Severino, Eugênio e Quixabeira, Otaviano, Ricardo e Ventania Eram homens de muita valentia Para as lutas do campo e do eito No terreiro da casa do meu peito Nasce um pé de saudade todo dia.
Rômulo Nunes
Eu queria viver na natureza, Pra sentir o cheiro da neblina, Vendo o açoite do galo de campina, Bem alegre a voar com sutileza. O xexéu e o concriz, quanta beleza, O tatú, o preá, peba e cutia Caçador que atira, é covardia, Sem amor, insensível e sem respeito, No terreiro da casa do meu peito Nasce um pé de saudade todo dia.
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João Paraibano e Severino Feitosa glosando o mote:
O poeta é um ser iluminado que faz verso com arte e sentimento.
João Paraibano
Cada verso que o repentista faz, para mim tá presente em toda hora, no tinido do ferro da espora, na passada que vem dos animais, na cor verde que tem nos vegetais nas estrelas que têm no firmamento, tá na cruz do espinhaço do jumento, e no vaqueiro correndo atrás do gado. O poeta é um ser iluminado que faz verso com arte e sentimento.
Severino Feitosa
O poeta é um gênio que crepita no espaço azul esmeraldino, percorrendo as estradas do destino, sem saber o planeta aonde habita, sua mente pra o canto é infinita, cada verso que faz é seu sustento, é quem sabe cantar o parlamento, sem ter voto pra ser um deputado. O poeta é um ser iluminado que faz verso com arte e sentimento.
João Paraibano
Uma vida vivida no sertão, uma fruta madura já caindo, um relâmpago na nuvem se abrindo, um gemido do tiro do trovão, meia dúzia de amigos no salão, nem precisa de um piso de cimento, minha voz, as três cordas do instrumento, o meu quadro de louco está pintado. O poeta é um ser iluminado que faz verso com arte e sentimento.
Severino Feitosa
O poeta é um simples mensageiro, que acaba uma guerra e um conflito, ele sabe cantar o infinito, todas pedras que têm no tabuleiro, a passagem do fim do nevoeiro, que ultrapassa o azul do firmamento, que conhece o impulso desse vento, todas as rosas que enfeitam o nosso prado. O poeta é um ser iluminado que faz verso com arte e sentimento.
João Paraibano
Foi mamãe que me deu a luz da vida e me ensinou a viver da humildade, eu nasci para ter felicidade, porque toco na lira adquirida, poesia me serve de bebida, um concerto me serve de alimento, uma pedra me serve de assento e todo rancho de palha é meu reinado. O poeta é um ser iluminado que faz verso com arte e sentimento.
Severino Feitosa
O poeta é uma criatura que procura mostrar, no seu caminho, toda uva do fabrico de vinho, e toda planta que faz nossa fartura, é quem sabe cantar a amargura da pessoa, que está num sofrimento, é quem sabe cantar o regimento do quartel, que Jesus é delegado. O poeta é um ser iluminado que faz verso com arte e sentimento.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 02 de novembro de 2019
A GENIALIDADE DE IVANILDO VILANOVA
A GENIALIDADE DE IVANILDO VILANOVA
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O Poeta pernambucano de Caruaru Ivanildo Vilanova, um dos maiores nomes da cantoria nordestina na atualidade
É o céu uma abóbada aureolada, Rodeada de gases venenosos, Radiantes planetas luminosos Gravidade na cósmica camada! Galáxia também hidrogenada, Como é lindo o espaço azul-turquesa E o sol, fulgurante tocha acesa, Flamejando sem pausa e sem escala! Quem de nós pensaria em apagá-la? Só o Santo Autor da Natureza!
De tais obras, o homem e a mulher São antigos e ricos patrimônios. Geram corpos em forma de hormônios, E criam seres sem dúvida sequer. O homem, após esse mister, Perpetua a espécie, com certeza. A mulher carinhosa e indefesa Dá à luz uma vida, novo brilho, Nove meses, no ventre, aloja o filho, Pelo Santo Poder da Natureza!
O peixe é bastante diferente: Ninguém pode entender como é seu gênio! Ele reserva porções de oxigênio E mutações para o meio ambiente! Tem mais cartilagem resistente Habitando na orla ou profundeza, Devora outros peixes pra despesa Tem a época do acasalamento Revestido de escamas, esse elemento, Com a força da Santa Natureza!
O poraquê ou o peixe elétrico, é um tipo genuíno, Habitante dos rios e águas pretas, E com ele possui certas plaquetas Que o dotam de um mecanismo fino! E com tal cartilagem, esse ladino Faz contato com muita ligeireza, E quem tocá-lo padece de surpresa Descarga mortífera, absoluta, Sua alta voltagem eletrocuta, Com os fios… da Santa Natureza!
A tartaruga é gostosa, feia e mansa, Habitante dos rios e oceanos! Chegar aos quatrocentos anos Pra ela é rotina… é confiança! Guarda ovos na areia e nem se cansa De por eles zelar como defesa. Nascido os filhotes, com presteza, Nas águas revoltas já se jogam, Por instinto da raça não se afogam E também pelo Poder da Natureza!
O canário é pássaro cantor, Diferente de garça e pelicano. Papagaio, arara e tucano, Todos eles com majestosa cor! O gavião é um tipo caçador E columbiforme é a burguesa, O aquático flamingo é, da represa, A ave, a rapace agigantada, Eis o mundo das aves, a passarada Quanto é grande, poderosa e bela, a Natureza!
A gazela, o antílope e o impala A zebra e o alce, felizardo, Não habitam em comum com o leopardo, O leão e o tigre-de-bengala! O macaco faz tudo mas não fala, Por atraso da espécie,ou por franqueza, Tem o búfalo aspecto de grandeza, O boi manso e o puma tão valente, Cada um de uma espécie diferente Isso é coisa também da Natureza!
E acho também interessante O réptil de aspecto esquisito O pequeno tamanho de um mosquito, A tromba preênsil do elefante A saliva incolor do ruminante A mosca nociva e indefesa A cobra que ataca de surpresa Aplicar o veneno é seu mister: De uma vez mata trinta, se puder Mas é coisa também da Santa Natureza!
No Nordeste há quem diga que o carão Possui certos poderes encantados E, que, através de fenômenos variados, Prevê a mudança de estação. De fato, no auge do verão, Ele entoa seu cântico de tristeza E, de repente, um milagre, uma surpresa: Cai a chuva benéfica e divina! Quem lhe diz, quem lhe mostra, e quem lhe ensina? É somente o Autor da Natureza!
Quem é que não sabe que o morcego Com o rato bastante se parece? Nas cavernas escuras sobe e desce Sugar sangue dos outros é seu emprego! Às noites escuras tem apego, Asqueroso ele é, tenho certeza. Tem na vista sintoma de fraqueza Porém, o seu ouvido é muito fino: Também tem um sonar, aparelho pequenino, Que lhe deu o Autor da Natureza!
Admiro a formiga pequenina, Fica tal inimiga da lavoura. No trabalho, aplicada professora, Um exemplo de pura disciplina! Através das antenas se combina Nos celeiros alheios faz limpeza. Formigueiro é a sua fortaleza Onde cada uma delas tem emprego, Uma entra, outra sai, não tem sossego Quanto é grande e bonita a Natureza!
E a aranha pequena, tão arguta, De finíssimos fios faz a teia Nesse mundo almoça, janta e ceia É ali que passeia, vive e luta! Labirinto intrincado ela executa Seu trabalho é bordado em qualquer mesa. Quem pensar destruir-lhe a fortaleza Perderá de uma vez toda a esperança, Sua rede é autêntica segurança Operária das Mãos da Natureza!
A planta firmada no junquilho: Begônia, tulipa, margarida, As pedras riquíssimas da jazida Com a cor, o valor, a luz, o brilho. A prata e o ouro cor de milho, O brilhante, a opala e a turquesa A pérola das joias da princesa É difícil, valiosíssima e até Alguém pensa ser vidro, mas não é: É um milagre da Santa Natureza!
O inseto do sono tsé-tsé As flores gentis, com seus narcóticos, As ervas que dão antibióticos, A mudança constante da maré! A feiura real do caburé, No pavão é enorme a boniteza, Tem o lince visão e a agudeza E o cachorro, finíssima audição! Vigilante mal pago do patrão, Isso é coisa da Natureza!
A cigarra cantante dialoga Através do seu canto intermitente. De inverno a verão canta contente E a sua canção não sai de voga! Qualquer árvore é a sua sinagoga Não procura comida pra despesa Sua música é sinônimo de tristeza “Patativa da Seca” é o seu nome Se deixar de cantar morre de fome Mas a gente sabe que é da Natureza!
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Ivanildo Vilanova pelejando com Severino Feitosa sobre o tema
Canta quem souber cantar
Ivanildo Vilanova
Antes que apareça mote, Poema, rojão e glosa, Eu quero ver se Feitosa Aguenta também meu trote, Saber se seu holofote Tem claridade estrelar E dá água no seu mar E cabe meu barco potente, Comigo o rojão é quente, Canta quem souber cantar.
Severino Feitosa
Não gosto de exageros, Não tenho sangue de persa, Muito menos de conversa De qualquer um bagunceiro, Não quero que o companheiro Venha me desafiar, Eu aqui neste lugar Só tenho amigo e parente, Comigo o rojão é quente, Canta quem souber cantar.
Ivanildo Vilanova
Sua voz é de tenor E sua presença é de artista, Você como repentista Pode até ter um valor, E com outro cantador Você pode até triunfar, Mas é bom se incomodar Quando me vê pela frente, Comigo o rojão é quente, Canta quem souber cantar.
Severino Feitosa
Se você possui cuidado No papel de cantador, E se acaso o colega for Hoje decepcionado, Regresse pra seu estado, Pode até se preparar, E quando um pouco decorar, Venha que estou novamente, Comigo o rojão é quente Canta quem souber cantar.
Ivanildo Vilanova
Eu devia cobrar taxa E além de taxa o juro, Pra cantador sem futuro Que comigo se esborracha Pois hoje aqui você acha Um santo pra seu altar, Água pra seu alguidar E vinho pra sua corrente, Comigo o rojão é quente, Canta quem souber cantar.
Severino Feitosa
Você teve algum cartaz Naquele tempo passado, Mas foi desclassificado Em diversos festivais, Hoje em dia está pra trás Que nem sabe mais falar, Antes era titular E hoje é reserva somente, Comigo o rojão é quente, Canta quem souber cantar.
Ivanildo Vilanova
Mas eu achei que seu dito Foi muito mal empregado, Só fui desclassificado Em São José do Egito, Mas não me deixou aflito Nem me tomaram o lugar, Não digo que foi azar Pois foi marcação somente, Comigo o rojão é quente Canta quem souber cantar.
Severino Feitosa
Eu que tenho poesia Pra cantar a vida inteira, Porque a minha bandeira Desfraldada é mais sadia, E tenho em minha companhia Jesus pra me ajudar E você para escapar Não vai dizer que é gente, Comigo o rojão é quente, Canta quem souber cantar.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 26 de outubro de 2019
O poeta cearense Geraldo Amâncio, um dos maiores nomes da cantoria de improviso da atualidade
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O mundo se encontra bastante avançado A ciência alcança progresso sem soma Na grande pesquisa que fez do genoma Todo o corpo humano já foi mapeado No mapeamento foi tudo contado Oitenta mil genes se podem contar A ciência faz chover e molhar Faz clone de ovelha, faz cópia completa Duvido a ciência fazer um poeta Cantando galope na beira do mar.
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Olho a tela do tempo e me torturo Vejo o filme do meu inconsciente, Meu passado maior que o meu presente Meu presente menor que o meu futuro; Se a velhice é doença eu não me curo, Que os três males que atacam um ancião: São carência, desprezo e solidão, E é difícil escapar dessa trindade; Se eu pudesse comprava a mocidade Nem que fosse pagando a prestação.
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Registrando o passado e o presente, Para tudo o cordel tem sempre espaço: Pra amor, pra política, pra cangaço, Romaria, promessa e penitente, Retirante, romeiro, presidente, Seca, fome, fartura, inundação. Qualquer um que quiser informação, Nele encontra o melhor documentário, O cordel completou um centenário Viajando nas asas do pavão.
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Entre os Dez Mandamentos dos sermões, Respeitar pai e mãe é o primeiro, O defeito de um filho é ser grosseiro; A virtude dos pais é serem bons. Todo filho tem três obrigações: Escutar, respeitar e obedecer; Respeitar pai e mãe é um dever; Esquecer mãe e pai é grosseria, Se não fossem meus pais, eu não teria O direito sagrado de viver.
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Com pintura e poesia Nossa festa está completa; Não tem quase diferença Do pintor para o poeta: Eu trago a imagem abstrata, E ele a imagem concreta.
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Itapetim és a pista De Louro, Otacílio e Dimas Aonde o carro das rimas Obedece ao motorista Que cada página é revista Escrita em diversas cores És do Pajeú das Flores A mais poética cidade Itapetim, faculdade Que diploma cantadores.
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Monteiro berço divino De povo alegre e feliz, De Pinto, de Jansen Filho, De Heleno e de Diniz; O chão que deu quatro estrelas Não foi céu porque não quis.
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Quem não cantar do meu tanto Não acompanha o meu passo, Não tem a força que eu tenho, Quando manejo o meu braço, Não planta a roça que eu planto Nem faz verso que eu faço.
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Na vida de Michael Jackson Eu digo o que aconteceu Não tinha fama arranjou Era pobre enriqueceu Era preto ficou branco Mudou de cor e morreu.
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Eu sei que Jesus do céu me conhece, Gosta do meu verso, dessa propaganda. Se eu peço um repente, o Cristo me manda, Me manda ligeiro, pois lá do céu desce. Depois, na cabeça, o verso aparece, Me desce pra boca pr’eu pronunciar. Inda tem um anjo para me ajudar. E tem uma máquina nesse meu juízo: Não faz outra coisa, só faz improviso Nos dez de galope na beira do mar.
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GERALDO AMÂNCIO CANTANDO COM VALDIR TELES
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 19 de outubro de 2019
Moacir Laurentino e Sebastião da Silva glosando o mote:
Sinto a última esperança se queimando Na fogueira da seca nordestina.
Sebastião da Silva:
Outro mote bonito aqui está, Vem falando de crise e sequidão E nessa seca que há no meu sertão, Piauí, Pernambuco, Ceará, Não se ouve o cantar do sabiá, Do canário de crista da campina, E a cigarra também não faz buzina, Não tem ave do campo mais cantando. Sinto a última esperança se queimando Na fogueira da seca nordestina.
Moacir Laurentino:
Essa dura e cruel situação, Da maneira que muita gente está Paraíba, Sergipe e Ceará, Rio Grande, Alagoas, Maranhão, Tá despida toda vegetação, Não tem mais folha verde na campina, Essa seca cruel e assassina, Com sol quente que vêm lhe sapecando. Sinto a última esperança se queimando Na fogueira da seca nordestina.
Sebastião da Silva:
Na fogueira tremenda do verão, No sertão está tudo esturricado, Está magra a criação de gado, Está morta a nossa plantação, Acabou-se a nossa produção, Que a seca pra nós é assassina, Eu espero uma luz da mão divina, Que só DEUS é quem pode estar ajudando. Sinto a última esperança se queimando Na fogueira da seca nordestina.
Moacir Laurentino:
No sertão é um grande desafio, Não tem pássaro mais cantando na mata, Não tem água descendo na cascata, Está seco do jeito de um pavio, Falta água em represa lá do rio, Não tem água de fonte cristalina, O problema da seca contamina, E o fantasma da fome rodeando. Sinto a última esperança se queimando Na fogueira da seca nordestina.
Sebastião da Silva:
Paraíba que é tão rica e boa Tá passando a maior dificuldade, Está seco em Mari e Soledade, Cajazeiras, Pombal e João Pessoa, Não caiu mais no chão uma garoa, Nem em Patos, Teixeira nem Campina, Só no vale da linda Petrolina É que a água ainda está passando. Sinto a última esperança se queimando Na fogueira da seca nordestina.
Moacir Laurentino:
O sertão vive hoje nu e cru, Sertanejo não tem mais vez nem voz, Está seco demais o nosso Orós, Onde passa tristonho o boi zebu, Vi a seca perversa em Iguatu, Aveloz, Castanhal, Araripina, Até mesmo o espaço de Campina Não tem nuvem pesada desfiando. Sinto a última esperança se queimando Na fogueira da seca nordestina.
Sebastião da Silva:
Nosso povo padece, sofre tanto, E pra que venha uma chuva pra o sertão, Muita gente inda faz uma oração, Inda reza uma prece no recanto, Inda faz a promessa e rouba santo, Para ver se essa seca se termina, Mas a seca é cruel e assassina, Cada dia, ela vai contagiando. Sinto a última esperança se queimando Na fogueira da seca nordestina.
Moacir Laurentino:
No sertão só tem nuvem de poeira, “redemoinho” por toda tardezinha, Não tem porco, guiné e nem galinha, Pelo mato só tem muita caveira, Vejo o povo matuto lá na feira, Em cidade maior ou pequenina, Um matuto se escora na esquina, Com o outro tristonho lastimando. Sinto a última esperança se queimando Na fogueira da seca nordestina.
Sebastião da Silva:
É devido essa seca tão ruim, Fica o povo enfrentando sofrimento, Falta pasto pra o bode e pra o jumento, Nosso gado não come mais capim, Todo verde que tinha levou fim, O saguim já não come mais resina, Tem somente uma ave de rapina E a fome no campo se alastrando. Sinto a última esperança se queimando Na fogueira da seca nordestina.
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Cícero Moraes glosando o mote
Tudo que há de beleza Deus colocou no sertão.
A suprema divindade Caprichou no seu trabalho Não deixou serviço falho Fez com grandiosidade Construiu com qualidade Retocou com perfeição Quem quiser diga que não Mas afirmo com certeza Tudo que há de beleza Deus colocou no sertão.
Se a seca nos traz penar Por vermos mata cinzenta O sertanejo se aguenta Sabe como se virar Come o que tava a guardar Derradeira produção E o seu silo de feijão É sua maior riqueza Tudo que há de beleza Deus colocou no sertão.
Quando chove em minha terra A natureza se agita Cria uma imagem bonita Matuto o feijão enterra Planta lá no pé da serra Porque é de barro o chão E ali, a produção Será maior na grandeza Tudo que há de beleza Deus colocou no sertão.
Cobra, sapo e caçote Aparecem na invernia Eles não têm simpatia Porque a cobra dá bote Se correr ou der pinote Ela pega à traição Faz de sua refeição O pequeno sem defesa Tudo que há de beleza Deus colocou no sertão.
Um céu bonito estrelado Que não há noutro lugar Quem observa o luar Fica logo encantado Um vaga-lume amostrado Completa a orquestração Da bela composição Do quadro da natureza Tudo que há de beleza Deus colocou no sertão.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas segunda, 14 de outubro de 2019
O paraibano Severino Lourenço da Silva Pinto, o Pinto do Monteiro (1895-1990)
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A resposta de Pinto de Monteiro numa cantoria com João Furiba
João Furiba:
Cruzei o velho Saara montado numa bicicleta. Matei leão de tabefe, Crivei serpente de seta. Fiz das penas d’uma hiena Um blusão pra minha neta.
Pinto do Monteiro:
João até que é bom poeta Mas sabe ler bem pouquinho. Vou fazer-lhe uma pergunta, responda meu amiguinho : – Quem diabo foi que te disse que hiena é passarinho ?
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O meu cavalo é dum jeito Que nem o diabo aguenta, Entra no mato fechado, Toda madeira arrebenta, Dá tapa em bunda de boi Que a merda sai pela venta.
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Lá no meio da caatinga, Sem moradia vizinha Bem na beira de um riacho Um pé de palmeira tinha. Meu avô, nesse lugar, Começou a trabalhar E chamar de Carnaubinha. Parece que estou vendo Um homem cortando cana; Uma engenhoca moendo Os três dias da semana. Fazer cerca, queimar broca, Raspar milho e mandioca, Da massa, fazer farinha; Comer com mel de engenho, Ai, que saudades que eu tenho Da minha Carnaubinha.
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Ovo de pato e marreca Quebrar na beira do poço, Abrir milho, na boneca, Pra ver se tinha caroço; Ir pra beira da estrada Jogar pedra e dar pancada Em cabra, bode e suíno; Em cachorro, pontapé, Que isso tudo foi e é Brincadeira de menino.
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Mas essa estória de dente, Para mim, nada adianta; Eu não preciso de dente; Eu quero é peito e garganta: Pois sabiá não tem dente, É quem mais bonito canta!
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Eu sou Severino Pinto Da Paraíba do Norte Sou feio, porém sou bom Sou magro, mas muito forte Depois d’eu tomar destino Temo a Deus não temo à morte.
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Há vários dias que ando, Com o satanás na corcunda: Pois, hoje, almocei na casa Duma negra tão imunda, Que a prensa de espremer queijo Era as bochechas da bunda!
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Eu admiro o tatu Com desenho no espinhaço Que a natureza fez Sem ter régua nem compasso E eu com compasso e régua Tenho planejado e não faço.
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Esta palavra saudade conheço desde criança saudade de amor ausente não é saudade, é lembrança saudade só é saudade quando morre a esperança.
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Gostei muito de mulher No meu tempo de rapaz Mas depois que fiquei velho A trouxa envergou pra trás Sentou-se em cima dos ovos Que a ponta encostou no ás.
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Admiro o vagalume Enxergando de mato a dentro Com sua lanterna acesa Sem se importar com o vento Apaga de vez em quando Poupando seus elementos.
(“elemento” no linguajar nordestino é pilha)
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No tempo da mocidade Eu também já fui vaqueiro. Não tinha jurema grossa, Mororó nem marmeleiro. Fui cabra de vista boa, Negro de corpo maneiro.
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SEVERINO PINTO E LOURIVAL BATISTA
Uma cantoria improvisada de Meia-Quadra nos anos 70
Constante da coleção Música Popular do Nordeste, organizada por Marcus Pereira
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 05 de outubro de 2019
O grande poeta cantador João Pereira da Luz, o João Paraibano (1952-2014)
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Muitas cenas são revistas Na hora crepuscular O bico de um peito cheio Proíbe um pagão chorar A casca do fruto racha A voz do silêncio é baixa Mas dá pra Deus escutar.
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É bonito o matuto se firmar Num galão carregando duas latas Um cachorro sentar nas duas patas Convidando o seu dono pra caçar Uma gata na boca carregar Um filhote que nasceu sem a visão Quando a boca se cansa põe no chão Mas o dente não fere a sua cria Deus pintou o sertão de poesia Meu orgulho é ser filho do sertão.
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Branca, preta, pobre e rica, toda mãe pra Deus é bela; acho que a mãe merecia dois corações dentro dela: um pra sofrer pelos filhos; outro pra bater por ela.
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Ao passar em Afogados diga a minha esposa bela que derramei duas lágrimas sentindo saudades dela tive sede, bebi uma e a outra guardei pra ela.
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O sol diminui os raios Depois que a tarde se fecha O vento carrega a folha Da galha de um pé de ameixa Sai dando tabefe nela Depois se aborrece e deixa.
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Toda noite quando deito um pesadelo me abraça meu cabelo que era preto está da cor da fumaça ficou branco após os trinta eu não quis gastar com tinta o tempo pintou de graça.
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Fiz capitão na bacia de feijão verde e farinha quando o angu tava feito mãe saía da cozinha subia em cima da cerca dava um grito e papai vinha.
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Ainda lembro do cheiro que minha mãe dava n’eu da cor da primeira nota que meu padrinho me deu eu não peguei com vergonha papai foi quem recebeu.
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Quem vive numa prisão leva a vida no desprezo pede uma esmola a quem passa nas mãos um cigarro aceso pernas do lado de fora e o resto do corpo preso.
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Meu passado foi assim comendo juá banido o vento dando empurrão no lençol velho estendido com tanta velocidade que mudava a qualidade que a tinta dava ao tecido.
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Vou pro meu sertão antigo pra ver tapera sem centro ver minha mãe na cozinha cortando cebola e coentro botando um prato no pote pra não cair mosca dentro.
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MINHA INFÂNCIA
Minha infância foi na casa De três janelas da frente A cruz de palha na porta Lata de flor no batente Um jumento dando as horas E um galo acordando a gente
Catei algodão de ganho Matei preá na coivara Levei queda de jumento Derrubei enxu de vara De vez enquanto uma abelha Deixava um ferrão na cara
Rodei mais de um cata-vento Feito de lata amassada Pegava mosca na mão Depois matava afogada Presa num lençol de nata De um caldeirão de coalhada
Até rolinha eu criava Em gaiola de palito Piei mocotó de cabra Quebrei perna de cabrito O meu passado na roça Foi pobre mais foi bonito
Fiz capitão na bacia De feijão verde e farinha Quando o angu estava feito Mãe saía da cozinha Subia em cima da cerca Dava um grito papai vinha
Vi em oco de cortiço Abelha entrando e saindo Me escondi por trás de cerca Para ver vaca parindo E roubei açúcar da lata Quando mãe estava dormindo
Um cinto de couro cru Pai nunca deixou de ter Mais educou cinco filhos Sem precisar de bater Bastava um rabo de olho Para a gente lhe obedecer.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas quinta, 03 de outubro de 2019
BALÉ RUSSO DE IGOR MOISEYEV, EXECUTANDO A DANÇA DE ZORBA
O paraibano Manoel Lourenço da Silva, o Manoel Xudu (1932-1985)
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Analise o caju e a castanha, São os dois pendurados num só cacho, Bem unidos, um em cima, outro embaixo, Porém tendo um do outro a forma estranha, Dela, extrai o azeite, o sumo, a banha, Dele, o suco pro vinho e o licor, Quando ambos maduros mudam a cor Ele fica amarelo e ela escura, Mas o gosto dos dois não se mistura, Quanto é grande o poder do Criador.
* * *
Dia 13 de março terça-feira Ano mil novecentos trinta e dois Pouco tempo depois que o sol se pôs Mamãe dava gemidos na esteira Numa casa de barro e de madeira Muito humilde coberta de capim Eu nasci pra viver sofrendo assim Minha dor vem dos tempos de menino Vivo triste por causa do destino E a saudade correndo atrás de mim.
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O mar se orgulha por ser vigoroso, Forte, gigantesco que nada lhe imita Se ergue, se abaixa, se move, se agita, Parece um dragão feroz e raivoso. É verde, azulado, sereno, espumoso; Se espalha na terra, quer subir pro ar, Se sacode todo, querendo voar, Retumba, ribomba, peneira, balança, Nem sangra, nem seca, nem para, nem cansa, São esses fenômenos da beira do mar.
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Não há tempestades e nem furacões, Chuvada de pedra no bosque esquisito Quedas de coriscos e meteorito Tiros de granadas, obuses, canhões, Juntando os ribombos de muitos trovões Que tem pipocado na massa do ar Cascata rugindo, serra a desabar, Estrondo, ribombos, rumores de guerra, Nuvens mareantes, tremores de terra Que imitem a zoada na beira do mar.
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Voei célere aos campos da certeza E com os fluidos da paz banhei a mente Pra falar do Senhor Onipotente Criador da Suprema Natureza Fez do céu reino vasto, onde a beleza Edifica seu magno pedestal Infinita mansão celestial Onde Deus empunhou saber profundo Pra sabermos nas curvas deste mundo Que ele impera no trono divinal.
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Os astros louros do céu encantador Quando um nasce brilhando, outro se some E cada astro brilhante tem um nome Um tamanho, uma forma, brilho e cor Lacrimosos vertendo resplendor Como corpos de pérolas enfeitados Entre tronos de plumas bem sentados Vigiando as fortunas majestosas Que Deus guarda nas torres luminosas Que flutuam nos paramos azulados.
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Quando eu segurei a tua mão Foi achando que ela estava fria Ela tava tão quente e tão macia Igualmente um capucho de algodão Vou mandar repartir meu coração Pra fazer-te presente da metade Pra gente ficar de igualdade Tu me dá teu retrato eu dou o meu O retrato me serve de museu Pra eu guardar meu romance de saudade.
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O nome da minha amada Escrevi com emoção Na palma da minha mão, No cabo da minha enxada No batente da calçada E no fundo da bacia Na casca de melancia Mais grossa do meu roçado Pode ir lá que tá gravado O nome Ana Maria.
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Eu admiro um caixão Comprido como um navio Em cima uma cruz de prata No meio um defunto frio E um cordão de São Francisco Torcido como um pavio.
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O homem que bem pensar Não tira a vida de um grilo A mata fica calada O bosque fica intranquilo A lua fica chorosa Por não poder mais ouvi-lo.
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Sou igualmente a pião saindo de uma ponteira que quando bate no chão chega levanta a poeira com tanta velocidade que muda a cor da madeira.
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Tristeza é a do peruzinho Beliscando essa maniva Correndo atrás da galinha A sua mãe adotiva Como quem está dizendo Ah se mamãe fosse viva !
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A mulher que eu casei Além de linda é brejeira Daquelas que vai à missa No domingo e terça-feira Das que faz uma sombrinha Com um pé de carrapateira.
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Estou como um penitente Que não possui um barraco, Dorme à-toa pela rua, Um guabiru fura o saco, Quando recebe uma esmola Ela cai pelo buraco.
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Judas pegou uma corda, Morreu com ela enforcado, Não estava arrependido, Estava desesperado, E o desespero da culpa Nunca redime o pecado.
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Com você canto apertado Que só cobra de cipó. Que, com três dias de fome, Tenta engolir um mocó, De tanto forçar a boca, Finda estourando o gogó.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 21 de setembro de 2019
UM MOTE BEM ATUAL E UM POEMA DE PATATIVA DO ASSARÉ
Poetas repentistas Sebastião da Silva e Valdir Teles glosando o mote:
Comparado aos bandidos de hoje em dia, Lampião foi honesto até demais.
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Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré (1909-2002)
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A MULHER QUE MAIS AMEI – Patativa do Assaré
Era um modelo perfeito A mulher que mais amei, Linda e simpática de um jeito Que eu mesmo dizer não sei. Era bela, muito bela; Para comparar com ela, Outra coisa eu não arranjo E por isso tenho dito Que se anjo é mesmo bonito, Era o retrato dum anjo.
Sei que alguém não me acredita, Mas eu digo com razão, Foi a mulher mais bonita De cima de nosso chão; Era mesmo de encomenda E do amor daquela prenda Eu fui o merecedor, Eu era mesmo sozinho Dono de todo carinho Daquele anjo encantador.
Era bem firme a donzela, Só em mim vivia pensando. Quando eu olhava ela, Ela já estava me olhando. Para a gente conversar Quando eu não ia, ela vinha, Um do outro sempre bem perto Nosso amor dava tão certo Quem nem faca na bainha.
E por sorte ou por capricho, Eu tinha prata, ouro e cobre. Dinheiro em mim era lixo Em casa de gente pobre. Nós nunca perdíamos ato De cinema e de teatro De drama e mais diversão, Não faltava coisa alguma, As notas eu tinha de ruma Para nós andar de avião.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 14 de setembro de 2019
Anastácio e Zé Limeira, O Poeta do Absurdo, glosando dois motes.
Primeiro mote:
É lindo queimar-se as flores No santo mês de Maria.
Anastácio
No mês de maio a novena Tem grande veneração, No Brejo, Agreste e Sertão É muito honrada esta cena, Rosedal, rosa e verbena Se vê brotar todo dia… O aroma que a rosa cria Nos faz esquecer as dores… É lindo queimar-se as flores No santo mês de Maria.
Zé Limeira
Você pra mim é menino, Queimo flor uma porção, Boto fogo em barbatão Cercado de arame fino. No pagode do suíno, Quando a poica grita e chia, Corre Mané e Sufia E até os agricultores… É lindo queimar-se as flores No santo mês de Maria.
* * *
Segundo mote:
Você hoje me paga o que tem feito Com os poetas mais fracos do que eu.
Anastácio
Zé Limeira, você cuide em rezar Que é preciso hoje aqui dar-lhe um surrote Apresento as virtudes do meu dote Para você aprender a me honrar: Se você resolver me acompanhar, Diga logo a esse povo que perdeu, Um fantasma chegou, lhe interrompeu, Atraiu sua voz, o verso e o peito… Você hoje me paga o que tem feito Com os poetas mais fracos do que eu.
Zé Limeira
Sou um nêgo um bocado esbagaçado , Sou o vatis das glória desta terra, Sou a febre que chama berra-berra, Mastigando eu sou cobra de veado, Sou jumento pru fora do cercado, Sou tabefe que dero em seu Lameu… Se tivé bom guardado bote neu, Seu caminho de bonde ruim, estreito… Você hoje me paga o que tem feito Com os poetas mais fracos do que eu.
Anastácio
Cantador sem origem, sem ciência, Miserável, lebrento , pé de peia, És miséria da guerra da Coréia, Seu corrupto, ladrão da consciência. Castigado da santa Providência, Que não honra o que Cristo santo deu, Foste tu, imbecil, o fariseu, Quem é bom dizes tu que tem defeito… Você hoje me paga o que tem feito Com os poetas mais fracos do que eu.
Zé Limeira
Zé Limeira onde canta, todo mundo Vai olhá bem de perto a sua orige, Já cantei no sertão, no Céu da Virge Sou doutô de meisinha , furibundo. Viva o Reis, o Juiz, Pedro Segundo. Sou a cobra que o boi nunca lambeu, Sou tijolo da casa de Pompeu, Peripécia da filha do Prefeito.. Você hoje me paga o que tem feito Com os poetas mais fracos do que eu.
* * *
Zé Limeira e José Alves Sobrinho glosando o mote
Canta, canta, cantador, Que teu destino é cantar.
Zé Limeira
Quando o carão tá cantando É sinal que vem inverno, Eu sou um nego moderno, Foi não foi eu tô pensando. Amanhã tô viajando Pru sertão de Bogotá Tico-tico no fubá, Padre, juiz e doutor, Canta, canta, cantador, Que teu destino é cantar.
José Alves Sobrinho
Minha vida é esta cantiga, Meu amor é esta viola… Deus me botou nesta escola Egrégia, sublime e antiga. Se minha viola amiga, Quiser um dia parar, A dor não vou suportar Porque ordena Nestor: Canta, canta, cantador, Que teu destino é cantar.
Zé Limeira
Numa berada de serra Dom Pedro ficou de coca, Começou tirá taboca Do cabeceira da terra, Veio a febre berra-berra Pru dentro dum caçuá, Comendo o tamanduá Da filha do Promotor, Canta, canta, cantador, Que teu destino é cantar.
José Alves Sobrinho
Este tema deslumbrante Que nos deu Nestor Rolim, Despertou dentro de mim Um sentimento gigante! Por isso eu canto perante O povo deste lugar, Já fazendo despertar A musa do sonhador.. Canta, canta, cantador, Que teu destino é cantar.
Zé Limeira
Se apagou-se a lamparina Prumode o vento assoprou, Me adiscurpe, seu Nestor, Caboco da Palestina. Joguei minha lazarina No tronco do jatobá, Fiz Lampião avuá Na baixa do corredor, Canta, canta, cantador, Que teu destino é cantar.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 07 de setembro de 2019
Frondoso e bonito, o velho umbuzeiro Que brotou das fendas abertas da terra. Cresceu num aceiro do pé de uma serra Passando agruras o tempo inteiro. Foi ficando forte a cada janeiro, Mudando a paisagem que tem no lugar. Felizes daqueles que vem contemplar, Seu verde, a sombra e sua doçura O doce da fruta na forma mais pura Que o puro da brisa que sobra do mar.
* * *
Arnaldo Pessoa
As flores do Pajeú Eram os improvisadores Muitos desapareceram Mas deixaram sucessores Eu sou o fruto mais novo Da árvore dos cantadores.
* * *
Miro Pereira
O meu pai não tem estudo Mamãe é analfabeta Eu pouco fui à escola Somente Deus me completa Com esse sublime dom De repentista e poeta.
* * *
Zé Fernandes
A seca seca primeiro Os depósitos cristalinos Depois seca as esperanças De milhões de peregrinos Mas bota enchente de lágrimas Nos olhos dos nordestinos.
* * * Adauto Ferreira Lima
Quando o sujeito envelhece Quase tudo lhe embaraça Convida a mulher pra cama Agarra, beija e abraça Porém só faz duas coisas: Solta peido e acha graça.
* * *
Pedro Tenório de Lima (Poeta analfabeto do sertão do Pajeú)
Me criei abraçando a agricultura Já tô véi, a cabeça tá cinzenta Pra onde vou é levando a ferramenta E uma faca de doze na cintura Minha boca lambendo rapadura E meu almoço, um punhado de farinha A merenda é um ovo de galinha Namorei abraçando as raparigas Me deitando por cima das formigas Que uma cama bonita eu não tinha.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 31 de agosto de 2019
O meu pai não tem estudo Mamãe é analfabeta Eu pouco fui à escola Somente Deus me completa Com esse sublime dom De repentista e poeta.
Manoel Bentevi
Na vida ninguém confia Em nada sem ter certeza São obras da natureza Tudo que a terra cria: Gente, ave, bicharia, Tudo começou assim. O homem é quem é ruim Nada bom ele planeja Por muito forte que seja A morte pega e dá fim.
Pinto do Monteiro
Pode entrar, seu Severino, e me pagar, se puder. Rico na casa do pobre alguma coisa ele quer: ou a sela, ou o cavalo, ou a filha, ou a mulher.
Zé Galdino
Infância foi ilusão Por quem por ela passou A velhice é um museu Que o tempo fabricou Pra guardar as fantasias Que a juventude deixou.
Paulo Robério
No Império D. Pedro prometeu Vender todas as joias da Coroa Socorrer no Nordeste a gente boa Que na seca inclemente esmoreceu Viajou pra Europa e esqueceu De cumprir a promessa feita cá Com banquete e luxúria gastou lá Não mandou pro Nordeste um só “vintém” Entra ano , sai ano e nada vem E o Sertão continua ao Deus dará.
Moacir Laurentino
Acho bonito o inverno Quando o rio está de nado Que o sapo faz oi aqui Outro oi do outro lado Parece dois cantadores Cantando mourão voltado.
Jacó Passarinho
Nossa Senhora, é Mãe Nossa, Jesus Cristo é Nosso Pai! Repente na minha boca É tanto que sobra e cai.
Manoel Filó
No sertão tem uma aranha De uma qualidade escassa Que tapa a sua morada Com lã da cor de fumaça O tecido é tão perfeito Que a chuva bate e não passa.
Gustavo Dourado
A educação é tudo: Amplia o conhecimento Faz do homem passarinho No imenso firmamento Nos conduz ao infinito… Nas asas do pensamento…
Francisco Caetano
Meu dom é dado por Deus Quando eu morrer ele fica Eu sou pobre igual a Jó Mas a minha rima é rica Possui o gosto da fonte Do olho d`água da bica
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CEGO OLIVEIRA – NA PORTA DOS CABARÉS
CEGO OLIVEIRA – MINHA RABEQUINHA
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 17 de agosto de 2019
Sepultura é a única residência Que não cobra aluguel do morador.
Pra quem vai prestar contas a Jesus Tem pra sempre gratuita uma morada E como símbolo na porta de entrada Tem o nome do dono numa cruz Não tem conta de água nem de luz Não precisa avalista ou corretor E Deus perdoa seu saldo devedor Quando o banco da vida abre falência Sepultura é a única residência Que não cobra aluguel do morador.
Não existe desvio no caminho Quando o cerco da morte está armado Pelos súditos o rei vive cercado Mas no dia que morre vai sozinho Dos dois lados do túmulo tem vizinho Mas não há um diálogo a se propor E a caveira jamais vai recompor A beleza que tinha a aparência Sepultura é a única residência Que não cobra aluguel do morador.
O local é salgado pelo pranto Dos que perdem seus entes mais queridos Os irmãos, as esposas, os maridos E os amigos que vão praquele canto Condomínio fechado, campo santo É pra lá que vai todo pecador E ao entrar a balança do Senhor Tira um peso da nossa consciência Sepultura é a única residência Que não cobra aluguel do morador.
Empresário, princesa, vagabundo Evangélico e ateu, homem ou mulher Apesar de ser grátis ninguém quer Nesta casa morar nenhum segundo O portal que nos leva a outro mundo Não exige função superior E nem precisa RG que o emissor Quando chama já sabe a referência Sepultura é a única residência Que não cobra aluguel do morador.
Com chibanca ou enxada o homem faz Esta casa sem planta e sem dinâmica Onde o piso é sem pedra de cerâmica E o seu teto sem lustres de cristais Sem textura as paredes laterais Sem contato com o mundo exterior E uma hora qualquer seu construtor Vai pra lá encerrar sua existência Sepultura é a única residência Que não cobra aluguel do morador.
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Dedé Monteiro glosando o mote:
São os sons que ninguém pode esquecer Se já foi residente no sertão.
O latido amistoso de um “jupi”, Vira-lata raçudo sem ter raça, Uma banda de pífanos na praça, O penoso cartar da juriti, Um boaito saindo do jequi E um vaqueiro a pegá-lo pela mão, O estrondo redondo do trovão Avisando que em breve vai chover, São os sons que ninguém pode esquecer Se já foi residente no sertão.
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Zé Silva glosando o mote
Mocidade é um vento passageiro Beija a face da gente e vai embora.
Como é bom ser menino, ser criança, Ter um mundo de sonhos, de ilusões, Caminhar num caminho de emoções, Aquecido no sol da esperança. No entanto, esse tempo de bonança, Como tudo que é bom, pouco demora. Como a marcha dos anos me apavora E a tudo transforma tão ligeiro! Mocidade é um vento passageiro Beija a face da gente e vai embora.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 10 de agosto de 2019
Das quatro e meia em diante, Sinto de Deus o poder, Um sopro espatifa as nuvens Para o dia amanhecer, Deus enfeita o firmamento E a vassoura do vento Varre o céu pra o sol nascer.
Otacílio Batista:
Nas brancas areias formosas da praia Um homem com trinta e seis anos de idade Chorava com pena dessa humanidade Que tomba, desmaia, delira e fracassa Usava um túnica da cor de cambraia Seus olhos brilhavam sem pestanejar Nenhuma sereia podia imitar Sua voz de veludo a Deus dirigida Eu sou o caminho, a verdade e a vida Palavras de Cristo na beira do mar.
José Monte:
É bonito se olhar numa represa A marreca puxando uma ninhada Com um gesto de mãe tão dedicada No encontro das águas da represa Quanto é lindo o arrolho da burguesa Num conserto de notas musicais A lagarta com letras naturais Numa folha escrever fazendo um cheque E palmeira selvagem abrindo o leque Espantando o calor que a tarde faz.
Manoel Xudu:
O mar se orgulha por ser vigoroso Forte e gigantesco que nada lhe imita Se ergue, se abaixa, se move se agita Parece um dragão feroz e raivoso É verde, azulado, sereno, espumoso Se espalha na terra, quer subir pra o ar Se sacode todo querendo voar Retumba, ribomba, peneira e balança Não sangra, não seca, não para e nem cansa São esses os fenômenos da beira do mar.
O próprio coqueiro se sente orgulhoso Porque nasce e cresce na beira da praia No tronco a areia da cor de cambraia Seu caule enrugado, nervudo e fibroso Se o vento não sopra é silencioso Nem sequer a fronde se vê balançar Porém se o vento com força soprar A fronde estremece perde toda calma As folhas se agitam, tremem e batem palma Pedindo silêncio na beira do mar
Não há tempestades e nem furacões Chuvadas de pedras num bosque esquisito Quedas coriscos ou aerólito Tiros de granadas de obuses canhões Juntando os ribombos de muitos trovões Que tem pipocado na massa do ar Cascata rugindo serra a desabar Nuvens mareantes, tremores de terra Estrondo de bombas, rumores de guerra Que imite a zoada das águas do mar.
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DESAFIOS – UM DOCUMENTÁRIO DA TV SENADO
O universo em torno dos cantadores e dos repentistas e a riqueza contida em suas memórias. O documentário reúne uma coletânea de histórias sobre os cantadores de viola nordestinos, homens de raciocínio rápido e língua afiada, que deixaram um rastro de poesia mundo afora.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas domingo, 04 de agosto de 2019
GRANDES MOTES, GRANDES GLOSAS E UM FOLHETO DE MENTIRAS
GRANDES MOTES, GRANDE GLOSAS E UM FOLHETO DE MENTIRAS
O cearense Geraldo Amâncio e o paraibano Severino Feitosa, dois dos maiores nomes da cantoria nordestina na atualidade
Geraldo Amâncio e Severino Feitosa glosando o mote:
Se eu fosse Jesus, o Nazareno, não matava o poeta cantador.
Geraldo Amâncio
Vem Geraldo que eu tenho muita fé, me pediu que eu fizesse esses arranjos, conterrâneo de Augusto dos Anjos, que é nascido na terra de Sapé, vem dizer o poeta como é, é pra ele um eterno sonhador, um artista de invejável valor, comunica seu dom nesse terreno. Se eu fosse Jesus, o Nazareno, não matava o poeta cantador.
Severino Feitosa
Se eu tivesse o poder do soberano, não tirava da terra um Oliveira, um Geraldo, um Valdir e um Bandeira, Moacir, nem Raimundo Caetano, Sebastião nem João Paraibano, e muitos outros que têm tanto valor, não tirava a garganta de tenor de quem tem esse seu direito pleno. Se eu fosse Jesus, o Nazareno, não matava o poeta cantador.
Geraldo Amâncio
Sei que um carro virou numa ladeira, já passei para o mundo essa mensagem, pois eu ia também nessa viagem que a morte levou nosso Ferreira, eu me vi na viagem derradeira, eu gritei por sentir a grande dor, foi a morte que fez esse terror, de levar nosso astro, esse moreno. Se eu fosse Jesus, o Nazareno, não matava o poeta cantador.
Severino Feitosa
Se Xudu decantou o santo hino, da maneira que foi Zezé Lulu, não esqueço Louro do Pajeú, Rio Grande, recorda Severino, Pernambuco, também, José Faustino, que foi um repentista de valor, Paraíba não esquece Serrador e Santa Cruz não esquece de Heleno. Se eu fosse Jesus, o Nazareno, não matava o poeta cantador.
Geraldo Amâncio
Quem já foi Juvenal Evangelista, um encanto pra o nosso Ceará, mas morreu encostado ao Amapá e se encontra com os irmãos Batista, desse povo que tem na minha lista, Pinto velho pra mim foi um terror, eu não posso esquecer um Beija-Flor, e Pajeú inda lembra Zé Pequeno. Se eu fosse Jesus, o Nazareno, não matava o poeta cantador.
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Roberto Macena e Zé Vicente glosando o mote:
Velhice, um prêmio divino Que Deus oferece à gente
Roberto Macena
Eu perdi minha beleza, Mas não vou fugir da ética. Que eu mudei a minha estética Por conta da natureza. Mesmo assim, não há tristeza, Que eu não fico decadente: Tô mais é experiente Que com isso, não amofino. Velhice, um prêmio divino Que Deus oferece à gente.
Zé Vicente
Vovô muito me encanta, É meu verdadeiro mestre. Morando em área silvestre, Mas sempre me acalanta. Se eu sofrer da garganta, Ainda canto repente. Meu avô estando presente, Ele é meu otorrino. Velhice, um prêmio divino Que Deus oferece à gente.
Roberto Macena
Não adianta fazer prece Nem usar agilidade, Que, quando passa a idade, Tudo de ruim acontece O que é de nervo amolece, Fica tudo diferente: Dói a perna, dói o dente E o cabra fica mofino. Velhice é um prêmio divino Que Deus oferece à gente.
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Sebastião Dias e Zé Viola glosando o mote:
Existe um dicionário Na mente do cantador
Sebastião Dias
Existe um Deus que controla A mente de um repentista Que nasceu pra ser artista Do oitão da fazendola É o homem da viola Nascido no interior Nem precisa professor Pra ser extraordinário Existe um dicionário Na mente do cantador
Zé Viola
Acumulo cada ano Cantando mares e terra Paz, conflito, briga e guerra Peixe, céu e oceano A viola é o piano O povo é meu instrutor O palco me traz calor E o cachê é meu salário Existe um dicionário Na mente do cantador
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UM FOLHETO DE CORDEL DE EDMILSON GARCIA
UM CONTADOR DE MENTIRAS
Foi lá nos anos oitenta Que conheci um senhor Nas terras da Paraíba Araruna, interior….. Ele era conhecido Como seu “Zé Nicanor”
Homem de vários ofícios Foi vaqueiro, agricultor, Político e viajante, Palestrante e pescador Arrancador de botija E grande “conversador”
Nasceu, cresceu por ali E ali se fez conhecido Pra todos contava histórias E todos lhe davam ouvido Difícil era acreditar Ou aguentar seu “muído”
Pois tinha um “defeitinho” Que pretendo descrever Tudo ele aumentava Talvez pra se aparecer Decorava tudo em mente Pois não sabia escrever
Dizia ser viajado Conhecia o Brasil inteiro De Porto Alegre à Natal Do Acre ao Rio de Janeiro Morou em Serra Pelada Mas não quis ser garimpeiro
Deitava na preguiçosa Todo dia à tardesinha Pra conversar com os amigos E contar uma “mentirinha” Loroteiro igual à ele Em Araruna não tinha
Era gente muito boa Dizendo à bem da verdade Mas mentia por costume Era uma barbaridade Cada uma que contava Estremecia a cidade
Me falou de uma brigada Que uma vez ele deu Na serra de dona Inês Com um tal de Zebedeu Bateu tanto no sujeito Que o cabra quase morreu
Falou que em Guarabira Num sábado dia de feira Três cabras lhe ameaçaram Cada um com uma peixeira Tomou as facas dos cabras Só na base da rasteira 1 Quando se empolgava mesmo, Só falava em valentia Não tinha medo de nada Fazia e acontecia Se tivesse quem escutasse Aí é que ele mentia
Falava de Lampião Que por sinal era “amigo” Muitas vezes ao cangaceiro Chegou a lhe dar abrigo Contava e ainda dizia Pode crer no que lhe digo
Viajou o Brasil todo Representando o nordeste Rasgava de norte a sul Depois de leste à oeste Dizia que era o autor De “Tieta do Agreste”
Falava de pescaria De caçada e de forró Inventando e aumentando Chega engrossava o gogó Sequer ficava vermelho E “sério” como ele só
Só pescava peixe grande Com anzol feito de pau Pegava boi sem cavalo No meio do matagal Ganhou primeiro lugar Numa vaquejada em Natal
Na política de Araruna Nunca perdeu eleição Foi prefeito sete vezes E louvado em cada gestão Depois dele, é que vieram Os Targino e Maranhão
Disse que na mocidade Chegou à ser senador Ganhou com um bilhão de votos Foi aclamado em louvor Dizia que era primo De Dom Pedro “o imperador”
Ainda naquela época Já usava um computador Fabricado em Mata Velha Por um tal de Agenor O mesmo que fez a máquina Pra fabricar isopor
Uma vez pegou um peixe Que tinha fugido de um rio Achou-o em cima da serra Todo tremendo de frio Falou que o peixe era “fêmea” E que estava no cio
Contou que numa caçada Atirou num gavião Mas o chumbo se espalhou E correu rasteiro no chão Com o tiro matou um peba, Um macaco e um carão
Ele, como pescador Disse ser profissional Uma vez fez pescaria No açude do coqueiral Pois lá, tem muita traíra Tilápia e também pial
Jogou a tarrafa n’água Escutou um barulhão Quando ele puxou pra fora Arrastou um tubarão Pra levar o peixe pra casa Precisou d’um caminhão
Mandou tirar um retrato Bem de perto, “tela cheia” Pra mostrar pra todo mundo Que a história não era feia Disse que somente a foto Pesou uma arroba e meia
Teve a coragem de dizer Uma vez sentado na praça Que trocou cinco galinhas Por um cachorro de caça Depois deu o “vira lata” Por dez garrotes de raça.
Me confessou que uma vez Deu de cara com um leão Ao lado da sua casa Bem na beira do oitão Quando o bicho lhe avistou Já partiu pra agressão
Quando o felino avançou Ele gritou: é agora!!!!!! O bicho já quis fugir Mas não deu pra ir embora Deu-lhe um “tabefe” tão grande Matou a fera na hora
Quando ia caçar onça Nunca errava a “butada” Quando pegava no tiro Já trazia esquartejada E quando pegava à laço Trazia viva, amarrada
Amansava burro brabo Montava e nunca caía Pegava touro na mata Ou qualquer rês que fugia Capava jumento “à unha” Tudo isso ele fazia
Acabou com os lobisomens Que tinha na região Só d’uma vez foram sete Tudo sangrado à facão Tirava o couro e vendia Na feira de Riachão
E da vez que ele disse Que saiu pra uma “farrada” Namorou quatorze vezes Isso, n’uma madrugada Ali, eu me segurei Pra não ter que dar rizada
Era amigo de Pelé Desde a década de cinquenta Jogaram juntos no México Ganharam o tri em setenta, Foi presidente da FIFA La nos idos de quarenta
Uma vez fez um relato Que fez esquentar o clima Dizendo ter sido amigo De um tal de Zé Fukushima O fabricante da bomba Que arrasou Hyroshima
Quando bebia uma caninha Ficava meio arrojado Falava que era rico Tinha muita terra e gado Comprava até capim seco Só na base do fiado
Disse ter uma bicicleta Que era movida à gás Com farol, luz alta e baixa E que corria demais Uma noite, deu cem por hora Que o clarão ficou pra traz
Andava muito de noite Sem medo de assombração Só procurando botija Pra ajudar no ganha-pão Uma vez arrancou uma Que rendeu mais de um milhão
Uma vez numa conversa Nessa eu estava presente Na casa de Zé do Leite Na frente de muita gente Teve a coragem de dizer Que o Papa era seu parente
Disse que a pedra da boca Foi ele que descobriu E a boca que tem na pedra Ele mesmo esculpiu Filmou e botou na “net” E mostrou parao Brasil
Ainda dizia que nele, Três coisas que dava ira Era um bisaco furado, Uma espingarda sem mira, E um cabra velho barbado Viver contando mentira
Mesmo sabendo que ali Ninguém lhe acreditava Todo dia e toda hora Mentia porque gostava Já eu, garanto e sustento Que isso é só um por cento Das coisas que ele contava.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 27 de julho de 2019
Minha viola querida, Certa vez, na minha vida, De alma triste e dolorida Resolvi te abandonar. Porém, sem as notas belas De tuas cordas singelas, Vi meu fardo de mazelas Cada vez mais aumentar.
Vaguei sem achar encosto, Correu-me o pranto no rosto, O pesadelo, o desgosto, E outros martírios sem fim Me faziam, com surpresa, Ingratidão, aspereza, E o fantasma da tristeza Chorava junto de mim.
Voltei desapercebido, Sem ilusão, sem sentido, Humilhado e arrependido, Para te pedir perdão, Pois tu és a joia santa Que me prende, que me encanta E aplaca a dor que quebranta O trovador do sertão.
Sei que, com tua harmonia, Não componho a fantasia Da profunda poesia Do poeta literato, Porém, o verso na mente Me brota constantemente, Como as águas da nascente Do pé da serra do Crato.
Viola, minha viola, Minha verdadeira escola, Que me ensina e me consola, Neste mundo de meu Deus. Se és a estrela do meu norte, E o prazer da minha sorte, Na hora da minha morte, Como será nosso adeus?
Meu predileto instrumento, Será grande o sofrimento, Quando chegar o momento De tudo se esvaecer, Inspiração, verso e rima. Irei viver lá em cima, Tu ficas com tua prima, Cá na terra, a padecer.
Porém, se na eternidade, A gente tem liberdade De também sentir saudade, Será grande a minha dor, Por saber que, nesta vida, Minha viola querida Há de passar constrangida Às mãos de outro cantor.
***
MINHA SERRA
Quando o sol nascente se levanta Espalhando os seus raios sobre a terra, Entre a mata gentil da minha serra Em cada galho um passarinho canta.
Que bela festa! Que alegria tanta! E que poesia o verde campo encerra! O novilho gaiteia a cabra berra Tudo saudando a natureza santa.
Ante o concerto desta orquestra infinda Que o Deus dos pobres ao serrano brinda, Acompanhada da suave aragem.
Beijando a choça do feliz caipira, Sinto brotar da minha rude lira O tosco verso do cantor selvagem.
***
ARTE MATUTA
Eu nasci ouvindo os cantos das aves de minha serra e vendo os belos encantos que a mata bonita encerra foi ali que eu fui crescendo fui vendo e fui aprendendo no livro da natureza onde Deus é mais visível o coração mais sensível e a vida tem mais pureza.
Sem poder fazer escolhas de livro artificial estudei nas lindas folhas do meu livro natural e, assim, longe da cidade lendo nessa faculdade que tem todos os sinais com esses estudos meus aprendi amar a Deus na vida dos animais.
Quando canta o sabiá Sem nunca ter tido estudo eu vejo que Deus está por dentro daquilo tudo aquele pássaro amado no seu gorjeio sagrado nunca uma nota falhou na sua canção amena só canta o que Deus ordena só diz o que Deus mandou.
* * *
O POETA DA ROÇA
Sou fio das mata, cantô da mão grossa, Trabáio na roça, de inverno e de estio. A minha chôpana é tapada de barro, Só fumo cigarro de páia de mío.
Sou poeta das brenha, não faço o papé De argum menestré, ou errante cantô Que veve vagando, com sua viola, Cantando, pachola, à percura de amô.
Não tenho sabença, pois nunca estudei, Apenas eu sei o meu nome assiná. Meu pai, coitadinho! vivia sem cobre, E o fio do pobre não pode estudá.
Meu verso rastêro, singelo e sem graça, Não entra na praça, no rico salão, Meu verso só entra no campo e na roça Nas pobre paioça, da serra ao sertão.
Só canto o buliço da vida apertada, Da lida pesada, das roça e dos eito. E às vez, recordando a feliz mocidade, Canto uma sodade que mora em meu peito.
Eu canto o cabôco com sua caçada, Nas noite assombrada que tudo apavora, Por dentro da mata, com tanta corage Topando as visage chamada caipora.
Eu canto o vaquêro vestido de côro, Brigando com o tôro no mato fechado Que pega na ponta do brabo novio, Ganhando lugio do dono do gado.
Eu canto o mendigo de sujo farrapo, Coberto de trapo e mochila na mão, Que chora pedindo o socorro dos home, E tomba de fome, sem casa e sem pão.
E assim, sem cobiça dos cofre luzente, Eu vivo contente e feliz com a sorte, Morando no campo, sem vê a cidade, Cantando as verdade das coisa do Norte.
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Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 20 de julho de 2019
O cearense Geraldo Amâncio e o paraibano Severino Feitosa, dois dos maiores nomes da cantoria nordestina na atualidade
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Geraldo Amâncio e Severino Feitosa glosando o mote:
Comigo o rojão é quente, canta quem souber cantar.
Geraldo Amâncio
Eu sei que você reclama, que é um repentista antigo, porém pra cantar comigo, acho pouco a sua fama, é muito bom pra o programa, pra todo mundo acordar, pra falar, pra conversar, mas é fraco pra o repente. Comigo o rojão é quente, canta quem souber cantar.
Severino Feitosa
Seus erros ninguém perdoa, porque você é pequeno, sua dose de veneno está pronta em João Pessoa, lhe afogo na lagoa, lhe jogo dentro do mar, e você morre sem voltar pra o Ceará novamente. Comigo o rojão é quente, canta quem souber cantar.
Geraldo Amâncio
No gramado eu sou atleta, hoje aqui em João Pessoa, não faço cantiga à toa, a minha idéia é completa, eu prefiro outro poeta, com quem possa me ocupar, é perdido eu trabalhar com certo tipo de gente. Comigo o rojão é quente, canta quem souber cantar.
Severino Feitosa
Geraldo, você recita para a platéia achar graça, em todo canto que passa, tem a cantiga bonita, mas aqui onde visita, é meu reino, é meu lugar, você tem que respeitar, para ser independente. Comigo o rojão é quente, canta quem souber cantar.
Geraldo Amâncio
Muita coisa eu estou vendo e a platéia está notando, é Severino apanhando, pensando que está batendo, é um coitado sofrendo, eu sem querer judiar, quem se acostuma apanhar, morre na peia e não sente. Comigo o rojão é quente, canta quem souber cantar.
Severino Feitosa
Lhe falta a inspiração para seguir os meus passos, estou vendo os seus fracassos, se afracou nesse rojão, se eu lhe der um empurrão, a cabeça vai rodar, esse nariz vai parar da caixa prego pra frente. Comigo o rojão é quente, canta quem souber cantar.
Geraldo Amâncio
Não tem vez esse rapaz, quando está no meu caminho, ele é bem devagarinho, já não sabe o que é que faz, cinqüenta léguas pra trás, doido pra me acompanhar, se acaso você cansar, procure um toco e se sente. Comigo o rojão é quente, canta quem souber cantar.
Severino Feitosa
Sei nadar em qualquer rio, me criei nessa escola, no braço dessa viola, não aprendo cantar frio, me pediram o desafio, e eu quero lhe açoitar, já ouvi alguém gritar, Feitosa a cantiga esquente ! Comigo o rojão é quente, canta quem souber cantar.
Geraldo Amâncio
Nossa cantiga é assim, faz tempo que eu lhe conheço, eu sou manso no começo, que é para bater no fim, você diz que dá em mim, eu começo a duvidar, sabe o povo do lugar, tanto apanha como mente. Comigo o rojão é quente, canta quem souber cantar.
Severino Feitosa
Conheço o interior, que o colega foi nascido, se mete a ser atrevido, não passa de agitador, é pequeno cantador, a sua fama é vulgar quem de você apanhar, não sabe o que é repente. Comigo o rojão é quente, canta quem souber cantar.
Geraldo Amâncio
Eu uso a matéria prima, que nunca saiu à toa, agrada a qualquer pessoa, que de mim se aproxima, Sou a cascavel da rima, quem vier me acompanhar, vou morder seu calcanhar e arranchar em seu batente. Comigo o rojão é quente, canta quem souber cantar.
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A dupla Edmilson Ferreira e Antonio Lisboa improvisando com o mote:
Sou vaqueiro criado no sertão, meu perfume é de casca de madeira
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 13 de julho de 2019
Qualquer dia do ano se eu puder para o céu eu farei uma jornada como a lua já está desvirginada até posso tomá-la por mulher; e se acaso São Jorge não quiser eu tomo-lhe o cavalo que ele tem e se a lua quiser me amar também dou-lhe um beijo nas tranças do cabelo deixo o santo com dor de cotovelo sem cavalo, sem lua e sem ninguém.
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Expedito de Mocinha
Eu nasci e me criei Aqui nesse pé de serra Sou filho nato da terra Daqui nunca me ausentei Estudei não me formei Porque meu pai não podia Jesus filho de Maria De mim se compadeceu E como presente me deu Um crânio com poesia.
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Firmo Batista
Um dia eu estava olhando a serra Jabitacá conheci que nela está a natureza sonhando o vento passa embalando o corpo robusto dela a nuvem cobrindo ela pingos de orvalho descendo e o Paraíba dizendo a minha mãe é aquela.
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Zé Limeira
Eu briguei com um cabra macho Mas não sei o que se deu: Eu entrei por dentro dele, Ele entrou por dentro deu, E num zuadão daquele Não sei se eu era ele Nem sei se ele era eu.
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Marcos Passos
Aos primeiros sinais da invernada, Logo após longo tempo de estiagem, Lá da serra, do vale e da barragem Escutamos os sons da trovoada. Vislumbrando a campina esverdeada, Sertanejo se anima igual criança. Logo mais, quando o mato se balança E um corisco atravessa o céu nublado, Cai a chuva no colo do roçado, Germinando o pendão da esperança.
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Jó Patriota
Na madrugada esquisita O pescador se aproveita Vendo a praia como se enfeita Vendo o mar como se agita Hora calmo, hora se irrita Como panteras ou pumas Depois se desfaz em brumas Por sobre as duras quebranças Frágeis, fragílimas danças De leves flocos de espumas.
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A ARTE DA CANTORIA
Dois ícones da poesia nordestina, os cantadores Otacílio Batista e Oliveira de Panelas improvisam em vários estilos.
Sextilhas, Gemedeira, Mourão-de-sete-pés (trocado), Mourão-de-você-cai, Oito-pés-a-quadrão, Dez-pés-a-quadrão, Martelo-alagoano e Galope-à-beira-mar.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 06 de julho de 2019
Um caboclo na cabana Deitado em sua palhoça Olhando o verde da roça Diz sorrindo prá serrana: Bote um traguinho de cana Bebe, tempera a garganta Almoça , pensa na janta Faz um cigarro de fumo Abre a porta e sai no rumo Da sombra de qualquer planta.
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O poeta e o passarinho São ricos de inteligência Simples como a natureza Eternos como a ciência Estrelas da liberdade Peregrinos da inocência.
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Diniz Vitorino
Nós temos por certa a morte, mas ninguém deseja tê-la… Quando morre uma criança, o pai lamenta em perdê-la, mas Jesus, todo de branco, abre o céu pra recebê-la.
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Meu colega, você vive da fama que teve outrora, e esses versos bem bolados que o povo escuta e decora, você faz de ano em ano e eu faço de hora em hora!
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Joaquim Vitorino
Tenho enorme inteligência Poeta não me dá vaia Sou vento rumorejando Nos coqueiros de uma praia Sou mesmo, que Rui Barbosa Na conferência de Haia.
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Zé de Vidal
O coveiro é um vivente De pequena autoridade; De baixo nível e salário, Porém na realidade, Preso que coveiro prende Nunca mais tem liberdade!
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José Lucas de Barros
Quando menino, eu queria Ser homem com rapidez, Depois, contabilizando Tudo que o tempo me fez, Hoje morro de vontade De ser menino outra vez.
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João Paraibano
Quando esbalda o nevoeiro, rasga-se a nuvem, a água rola, um sapo vomita espuma; onde o boi passa se atola, e a fartura esconde o saco que a fome pedia esmola.
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O menino e o rapaz, estando juntos na sala, um fala porém não ri, o outro ri mas não fala; um tem na mão um brinquedo, tem o outro uma bengala.
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Linda é a baixa de arroz quando está amarelando; uma vara em pé no meio com um molambo balançando, pros passarinhos pensarem que tem gente tocaiando.
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A cabra abana as orelhas para espantar o mosquito, e se acocora lambendo os cabelos do cabrito, depois vai olhar de longe pra ver se ficou bonito!
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Não fale mal de Zefinha, Que nunca foi amor seu, A mulher que fez da sua Honra um presente e me deu. Sonhou beijando um poeta, Quando acordou era eu.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 29 de junho de 2019
Esta coluna oferece hoje aos seus leitores o folheto O Romance do Pavão Misterioso, um clássico da literatura de cordel nordestina.
O Pavão Misterioso está no noticiário dos últimos dias, por conta da ação de piratas, corruptos e canalhas que querem acabar com a Lava Jato, a maior operação contra a bandidagem de colarinho branco que já foi feita no Brasil.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 15 de junho de 2019
O grande cantador pernambucano Oliveira de Panelas, um dos maiores nomes da poesia popular nordestina da atualidade
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Oliveira de Panelas
No silente teclado universal Deus pôs som nas sutis constelações, e na batida dos nossos corações colocou a pancada musical, quando a harpa da brisa matinal vai fazendo concerto pra aurora, nessas lindas paisagens que Deus mora em tecidos de nuvens está escrito: é a música o poema mais bonito que se fez do princípio até agora.
Quando as pétalas viçosas das roseiras dançam juntas com o sol se levantando, vem a brisa suave carregando pólen vivo das grávidas cerejeiras, verdejantes, frondosas laranjeiras, soltam hálito cheiroso à atmosfera, toda mãe natureza se aglomera: de perfume, verdume, que beleza!… É o canto da própria natureza, festejando o nascer da primavera!
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Dimas Batista
Alguém já me perguntou: o que são mesmo os poetas? Eu respondi: são crianças dessas rebeldes, inquietas, que juntam as dores do mundo às suas dores secretas.
Nossa vida é como um rio no declive da descida, as águas são a saudade duma esperança perdida, e a vaidade é a espuma que fica à margem da vida.
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Diniz Vitorino Ferreira
Qualquer dia do ano se eu puder para o céu eu farei uma jornada como a lua já está desvirginada até posso tomá-la por mulher; e se acaso São Jorge não quiser eu tomo-lhe o cavalo que ele tem e se a lua quiser me amar também dou-lhe um beijo nas tranças do cabelo deixo o santo com dor de cotovelo sem cavalo, sem lua e sem ninguém.
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Canhotinho
Acho tarde demais para voltar estou cansado demais para seguir, os meus lábios se ocultam de sorrir, sinto lágrimas, não posso mais chorar; eu não posso partir e nem ficar e assim nem pra frente nem pra trás, pra ficar sacrifico a própria paz, pra seguir a viagem é perigosa, a vereda da vida é tão penosa que me assombro com as curvas que ela faz.
Te prepara, ladrão da consciência, Que tuas dívidas de monstro já estão prontas, Quando o Justo cobrar as tuas contas, Quantas vezes pagarás à inocência? Teu período banal de existência Se compõe de miséria, dor e pragas; Em teu corpo, se abrem vivas chagas, Que tu’alma de monstro não suporta… Se o remorso bater à tua porta, Como pagas? Com que? E quanto pagas?
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Antonio Marinho
Quem quiser plantar saudade Escalde bem a semente Plante num lugar bem seco Quando o sol tiver bem quente Pois se plantar no molhado Ela cresce a mata a gente.
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Toinho da Mulatinha
Em Sodoma tão falada Passei uma hora só Lá vi a mulher de Ló Numa pedra transformada Dei uma talagada Com caldo de mocotó E saí batendo o pó Adiante vi Simeão Tomando café com pão Na barraca de Jacó.
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Pinto do Monteiro
Admiro um formigão Que é danado de feio Andando ao redor da praça Como quem dá um passeio Grosso atrás, grosso na frente E quase torado no meio.
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Odilon Nunes de Sá
Admiro a mocidade Não querer envelhecer Velho ninguém quer ficar Moço ninguém quer morrer Quem morre moço não vive Bom é ser velho e viver.
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Léo Medeiros
Ensinei Ronaldinho a jogar bola Fui o mestre de Zico e Maradona Seu Luiz aprendeu tocar sanfona Bem depois que saiu da minha escola Caboré no pescoço eu botei mola Também fiz beija-flor voar pra trás Conquistei cinco copas mundiais Defendendo a nossa seleção Inventei em Paris o avião O que é que me falta fazer mais?
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 08 de junho de 2019
Cantador Valdir Teles, um dos maiores nomes da poesia nordestina na atualidade
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Valdir Teles glosando o mote:
Quando chega o inverno Deus coloca Mais fartura na mesa do roceiro.
A matuta faz fogo de graveto Ferve o leite que tem no caldeirão Bota sal na panela do feijão E assa um taco de bode num espeto Onde a música do sapo é um soneto Mais bonito da beira de um barreiro Não precisa zabumba nem pandeiro Que o compasso da música é Deus que toca. Quando chega o inverno Deus coloca Mais fartura na mesa do roceiro.
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Júnior Adelino glosando o mote:
Sobre os trabalhos da obra Tudo eu sei ninguém me ensina.
No ramo da construção Faço ponte, creche e praça Com tijolo, cal e massa Eu ergo qualquer mansão Levanto em cima do chão Parede bem grossa ou fina Torre que não se inclina Que não se quebra nem dobra Sobre os trabalhos da obra Tudo eu sei ninguém me ensina.
Com o prumo e a colher Lápis ,régua, espátula e rolo Cimento, areia e tijolo Faço o que o dono quiser Sobrado, muro ou chalé Do tamanho de uma colina Ser pedreiro é minha sina Tenho talento de sobra Sobre os trabalhos da obra Tudo eu sei ninguém me ensina.
Nasci com a vocação E aprendi de longa data Que o alicerce e a sapata São partes da fundação Numa grande construção As ferragens predomina Que a faculdade divina Me dá aula e nada cobra Sobre os trabalhos da obra Tudo eu sei ninguém me ensina.
Eu sei dizer que o concreto É quem garante o sustento Com pedra, areia e cimento Começo qualquer projeto Nunca fui um arquiteto Nada disso me domina Construo com disciplina Qualquer coisa com manobra Sobre os trabalhos da obra Tudo eu sei ninguém me ensina.
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Pedro Ernesto Filho glosando o mote:
Cada um tem seu valor, Precisa é ser descoberto.
O pequeno sanfoneiro Com arte desafinada Que de calçada em calçada Vive a ganhar seu dinheiro, Não é Alcimar Monteiro Nem Gonzagão, nem Roberto, Porém deixou boquiaberto O povo do interior. Cada um tem seu valor, Precisa é ser descoberto.
O sertanejo frustrado Vítima da sociedade, Somente vai à cidade Quando se vê obrigado, Falando pouco e errado Porque vive no deserto, Mas se houvesse escola perto Talvez que fosse um doutor. Cada um tem seu valor, Precisa é ser descoberto.
A prostituta de bar Tem na consciência um farne, Negocia a própria carne A fim de se alimentar, O bom conceito de um lar Foi pela sorte encoberto, Talvez que até desse certo Se tivesse havido amor. Cada um tem seu valor, Precisa é ser descoberto.
O bom vaqueiro voraz No mato faz reboliço, Desenvolvendo um serviço Que acadêmico não faz; Coveiro é útil demais Quando um túmulo está aberto Rico não se torna esperto Para fazer o favor. Cada um tem seu valor, Precisa é ser descoberto.
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Louro Branco e Zé Cardoso glosando o mote
Não existe mais respeito Nos namoros de hoje em dia.
Louro Branco
Rapaz que tem companheira Não leva Salve Rainha Mas leva uma camisinha Escondida na carteira Tira a roupa da parceira Mama chega o peito esfria Chupa na língua macia Como quem chupa confeito Não existe mais respeito Nos namoros de hoje em dia.
Zé Cardoso
Vi um casal na calçada Ela com ele abraçado Ele na boca colado Ela na língua enganchada Uma velha admirada Dizia: “Vixe Maria!” E com tristeza dizia: “Eu nunca fiz desse jeito” Não existe mais respeito Nos namoros de hoje em dia.
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Mariana Teles glosando o mote:
Um café com pão quente às cinco e meia Deixa a casa cheirando a poesia.
Quando o sol se despede da campina E a textura da nuvem muda a cor O alpendre recebe o morador Regressando da luta campesina Entre os ecos da casa sem cortina Corre um grito chamando por Maria… E da cozinha pra sala a boca esfria O mormaço da xícara quase cheia Um café com pão quente às cinco e meia Deixa a casa cheirando a poesia.
Meia hora antecede a hora santa Às seis horas da virgem concebida E o cálice que serve de bebida Desce quente nas veias da garganta Já o trigo depois que sai da planta Faz o pão quando a massa fica fria E o tempero da cor do fim do dia Tem mistura de terço, fé e ceia Um café com pão quente às cinco e meia Deixa a casa cheirando a poesia.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 25 de maio de 2019
GRANDES MESTRES DO REPENTE - CEGO ADERALDO E OUTROS
Aderaldo Ferreira de Araújo, mais conhecido como “Cego Aderaldo” um dos maiores cantadores da poesia popular nordestina (1878-1967)
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Cego Aderaldo
(atendendo a um pedido do Padre Cícero)
À ordem do meu padrinho Vou colher algumas flores… Fazer minhas poesias Cheias de grandes louvores Saudando, primeiramente, A Santa Virgem das Dores.
O nome do santo Padre Anda pelo mundo inteiro, A cidade está crescendo Com este povo romeiro, Devido às grandes virtudes Do santo de Juazeiro.
Nossa Senhora das Dores É que nos dá proteção, Ordena ao nosso bom Padre, E ele cumpre a Missão, Ensinando a todo mundo O ponto da salvação.
Deixo aqui no Juazeiro Todos os sentidos meus Juntamente ao meu Padrinho Que me limpou com os seus, Vou correr por este mundo Levando a bênção de Deus.
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João Paraibano
Vê-se a serra cachimbando… Na teia, a aranha borda; O xexéu canta um poema; Depois que o dia se acorda, Deus coloca um batom roxo Na flor do feijão de corda.
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Do nevoeiro pra o chão a nuvem faz passarela; o sapo pinota n’água, entra na lama e se mela; faz uma cama de espuma pra cantar em cima dela.
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Sempre vejo a mão divina no botão de flor se abrindo, no berço em que uma criança sonha com Jesus sorrindo; a mão caçando a chupeta que a boca perdeu dormindo.
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Roberto Queiroz
Admiro o Zé Ferreira Um cantador estupendo Se a roupa se suja, lava Se rasga, bota remendo Gasta menos do que ganha Que é pra não ficar devendo.
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Luciano Carneiro
Eu não tive vocação Pra diácono nem vigário Tornei-me então um poeta Não muito extraordinário Mas sou com muita alegria No campo da poesia Um verdadeiro operário.
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Leonardo Bastião
Ontem vi uma coruja, Sentada numa cancela, Demorei trinta segundos, Olhando a feiura dela, Quando me vi no espelho, Tava mais feio do que ela.
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Admiro o juazeiro, Nascido na terra enxuta, A fruta é pequena e ruim, A madeira é torta e bruta, Mas a bondade da sombra, Cobra a ruindade da fruta.
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Eu não vou plantar saudade, Que não estou mais precisando, A caçamba da saudade, Toda vez que vai passando, Ao invés de levar a minha, Derrama a que vai levando.
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Josué Romano
Eu já suspendi um raio E já fiz o tempo parar. Já fiz estrela correr, Já fiz sol quente esfriar. Já segurei uma onça Para um moleque mamar!
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 18 de maio de 2019
UM MOTE E UM FOLHETO FEMININO
UM MOTE E UM FOLHETO FEMININO
Poeta João Paraibano, um dos gênios da cantoria nordestina (1952 / 2014)
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João Paraibano glosando o mote
Jesus salva a pobreza nordestina, Com três dias de chuva no Sertão.
O bezerro mamando a cauda abana; A espuma do leite cobre o peito; Cada estaca de cerca tem direito A um rosário de flor da jitirana. No impulso do vento a chuva espana A poeira do palco do verão; A semente engravida e racha o chão, Descansando dos frutos que germina. Jesus salva a pobreza nordestina, Com três dias de chuva no Sertão.
Quando Deus leva em conta a nossa prece O relâmpago clareia, o trovão geme, Uma nuvem se forma, o vento espreme, Pelos furos do véu, a água desce; A campina se enfeita, a rama tece Um tapete de folhas sobre o chão; Cada flor tem formato de um botão No tecido da roupa da campina. Jesus salva a pobreza nordestina, Com três meses de chuva no Sertão.
No véu negro da barra, o sol se esconde; Um caniço amolece e cai no rio; Nos tapetes de grana do baixio, Um tetéu dá um grito, outro responde; A frieza da terra faz por onde Pé de milho dar nó no esporão E a boneca, na sombra do pendão, Lava as tranças com gotas de neblina. Jesus salva a pobreza nordestina, Com três meses de chuva no Sertão.
A presença do Sol é por enquanto. Onde vinga uma fruta, a flor desprende; Cada nuvem que a mão de Deus estende Cobre os ombros do céu, de canto a canto. Camponês não precisa roubar santo, Nem lavar mucunã pra fazer pão; Faz cacimba na areia com a mão Onde o pé deixa um rastro, a água mina. Jesus salva a pobreza nordestina,
Com três meses de chuva no Sertão. A cabocla mulher do camponês Caça ninho nas moitas quando chove Quando acha dez ovos, tira nove, Deixa o outro servindo de indez; As formigas de roça fazem vez De beatas seguindo procissão; As que vêm se desviam das que vão, Sem mão dupla, farol e nem buzina. Jesus salva a pobreza nordestina, Com três meses de chuva no Sertão.
Sertanejo apelida dois garrotes, Bota a canga nos dois e desce a serra; Passa o dia no campo arando terra, Espantando mocó pelos serrotes; Sabiá, pra o conforto dos filhotes, Forra o ninho com pasto de algodão; Bebe o suco da polpa do melão, Limpa o bico nas varas da faxina Jesus salva a pobreza nordestina, Com três meses de chuva no Sertão.
Treme o gado na lama do curral, Sopra o vento, cheirando a chão molhado; Cada pingo de chuva, congelado, Brilha mais do que pedra de cristal. Uma velha, durante o temporal, Se ajoelha, rezando uma oração, Fecha os lhos com medo do trovão E abre a porta, depois que a chuva afina Jesus salva a pobreza nordestina, Com três meses de chuva no Sertão.
Cresce a planta, viçosa, e frutifica Com um cacho de flor em cada galha; Vê-se o milho mudando a cor da palha E o telhado chorando pela bica; A cigarra emudece, a acauã fica Sem direito a fazer lamentação; Deus afina a corneta do carão, Só depois de três meses, desafina. Jesus salva a pobreza nordestina, Com três meses de chuva no Sertão.
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MULHER TAMBÉM FAZ CORDEL – Salete Maria da Silva
O folheto de cordel Que o povo tanto aprecia Do singelo menestrel À mais nobre academia Do macho foi monopólio Do europeu foi espólio Do nordestino alforria
Desde que chegou da França Espanha e Portugal (Recebido como herança) De caravela ou nau O homem o escrevia Fazia a venda e lia Em feira, porto e quintal
Só agora a gente vê Mulher costurando rima É necessário dizer Que de limão se faz lima Hoje o que é limonada Foi águas podre, parada Salobra com lama em cima
A mulher não se atrevia Nesse campo transitar Por isso não produzia Vivia para seu lar Era o homem maioral Vivia ele, afinal Para o mundo desbravar
Tempo de patriarcado Também de ortodoxia À mulher não era dado Sair pela cercania Exibindo algum talento Pois iria a julgamento Quem não a condenaria?
Era um tempo obscuro Para o sexo feminino O castigo era seguro Para qualquer desatino Como não sabia ler Como podia escrever E mudar o seu destino?
Sem ter a cidadania Vivendo vida privada Pouco ou nada entendia Não era emancipada Só na cultura oral Na forma original Se via ela entrosada
Nas cantigas de ninar Na contação de história Tava a negra a rezar A velha sua memória Porém disso não passava Nada ela registrava Para sua fama e glória
Muitas vezes era tida Como musa inspiradora Aquela de cuja vida Tinha que ser sofredora Era mãe zelosa e pura Qual sublime criatura Porém não era escritora
Sempre a versão do homem Impressa nalgum papel Espero que não me tomem Por feminista cruel Mas o fato é que a mulher Disto temos que dar fé Tinha na vista um véu
O homem que a desejava Queria-a qual princesa Sempre que a venerava Era por sua beleza Só isto tinha virtude Para macho bravo e rude Mulher com delicadeza
De sua cria cuidando Cosendo calça e camisa Para o homem cozinhando Como vir ser poetisa? Isto era coisa para macho Até hoje ainda acho Gente que assim profetiza.
Até porque o folheto Era vendido na feira E era um grande defeito Mulher sem eira nem beira Era preciso viagens Contatos e hospedagens Pra fazer venda ligeira
E durante muitos anos Assim a coisa se deu Em muitos cordéis tiranos A mulher emudeceu O homem falava dela Mas não falava com ela Nem ela lhe respondeu
Ocorre que em trinta e oito No ano mil e novecentos Um fato dito afoito Veio soprar outros ventos Uma mulher escreveu No cordel se intrometeu Mostrando novos talentos
Talvez seja o primeiro Cordel de uma mulher Neste solo brasileiro Nenhum registro sequer Confere a este fato Que seja o dito exato Mas não é coisa qualquer
Filha de um editor Família de trovadores Se esta mulher ousou A ela nossos louvores Mas temos a lamentar Porque não pode assinar O verso como os autores
Não era uma desvalida Que escrevia um cordel Mas uma moça entendida Parente de menestrel Mesmo assim se escondia Pois a vida requeria Não assumir tal papel
A Batista Pimentel Com prenome de Maria Não assinou o cordel Como a história merecia Mas que o destino tirano Um Altino Alagoano Era quem subscrevia
Pseudônimo usou Para a obra ser aceita O marido orientou: “Assim tudo se ajeita” Tava pronto pra vender Quem poderia dizer Ser o autor a sujeita?
Neste tempo já havia Escola, educação Alguma mulher já lia Tinha certa instrução Tinha delas que votavam Outras até trabalhavam Nalguma repartição
Outro tempo aparecendo Reclamando outra postura A população crescendo Emprego e certa fartura Indústria se instalando O povo se empregando Buscando alguma leitura
Mas foi muito gradual No campo do popular Tinha aqui um bom sinal E um retrocesso acolá No nordeste nada é reto Até hoje analfabeto Não conhece o bê-á-bá
Somente em setenta e dois Vicência Macedo Maia Viria escrever depois: Nascia o verso de saia! No estado da Bahia Deu-se a tal rebeldia Que hoje não leva vaia
Depois disso, alagoana Potiguar e cearense Também tem a sergipana Paraíba e maranhense Tem delas no Piauí Também estão a surgir Paulista e macapaense
Em todo o nosso Brasil Mulheres versejam bem Muito verso se pariu Não se excluiu ninguém Tem rima a dar com pau — acho que me expressei mal — Pois com a vagina também
Mas a grande maioria Se concentra no nordeste Onde um dia a poesia Era do cabra da peste Hoje as mulheres estão Rimando e não é em vão Do litoral ao agreste
Talvez seja sintomático Que o cordel no sertão Ainda seja simpático E noutros lugares não O tal cordel já foi tido Como jornal e foi lido Em muita ocasião
Serviu para ensinar Muita gente aprender a ler Serve para recitar E muita gente entreter Cordel é sempre estudado Em tese de doutorado Mas tem gente que não vê
Alguns pensam hoje em dia Que cordel é só tolice Que não tem categoria Que é mera invencionice Feito por homem, não presta Por mulher então, detesta Veja quanta idiotice
Mesmo assim elas versejam E muito bem por sinal Algumas até desejam Ir para uma bienal Mostrar a nossa cultura A nossa literatura Etecétera e coisa e tal
Versos de todos matizes De toda forma e cor Algumas são infelizes Reproduzindo o horror Do machismo autoritário Consumismo perdulário Que tanto as dominou
Mas são as contradições Presentes neste sistema Onde mulheres padrões Vivem também nos esquemas Eu só quero é celebrar Da mulher o versejar Longe dos velhos dilemas
Nosso tempo nos permite Botar o verso na rua Quem vai colocar limite Quem ousa sentar a pua? Cordel também é cultura Quem nunca fez a leitura Iletrado continua
O cordel é centenário Nesse Brasil de mistura É recente no cenário Da fêmea a literatura Só estamos começando Devagar, engatinhando Quem agora nos segura?
Trinta cordéis eu já tenho Publicados pelo mundo Mais uma vez me empenho Me emocionando no fundo Metade é sobre mulher Para mostrar como é Amor e verso profundo
Aqui encerro meu verso Cumprindo o meu papel Se ele foi controverso Deselegante ou pinel Só quis dizer para o povo O que para alguém é novo: Mulher também faz cordel!
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 11 de maio de 2019
O meu verso é como a foice De um brejeiro cortar cana. Sendo de cima pra baixo, Tanto corta, como abana, Sendo de baixo pra cima, Voa do cabo e se dana.
***
O homem que bem pensar Não tira a vida de um grilo A mata fica calada O bosque fica intranquilo E a lua chora com pena Por não poder mais ouvi-lo
***
Eu admiro um caixão Comprido como um navio Em cima uma cruz de prata No meio um defunto frio E um cordão de São Francisco Torcido como um pavio.
***
Nessa vida de amargura O camponês se flagela Chega em casa à meia-noite Tira a tampa da panela Vê o poema da fome Escrito no fundo dela.
***
Uma novilha amojada Ao se apartar do rebanho, Quando volta, é com uma cria Que é quase do seu tamanho; Ela é quem lambe o bezerro, Por não saber lhe dar banho.
***
Carneiro do meu sertão, Na hora em que a orelha esquenta, Dá marrada em baraúna Que a casca fica cinzenta E sente um gosto de sangue Chegar à ponta da venta.
***
Uma galinha pequena Faz coisa que eu me comovo: Fica na ponta das asas, Para beliscar o ovo, Quando vê que vem, sem força, O bico do pinto novo.
***
Tem coisa na natureza Que olho e fico surpreso: Uma nuvem carregada, Se sustentar com o peso, De dentro de um bolo d’água, Saltar um corisco aceso.
***
O ligeiro mangangá Passa, nos ares, zumbindo; As abelhas do cortiço Estão entrando e saindo, Que, de perto, a gente pensa Que o pau está se bulindo.
***
A raposa arrepiada Se aproxima do poleiro, Espera que as galinhas Pulem no meio do terreiro; A que primeiro descer, É a que morre primeiro.
***
Eu tava na precisão Quando me casei com Nita Nada tinha pra lhe dar Dei-lhe um vestido chita Ela olhou sorrindo e disse Oh! Que fazenda bonita!
***
É uma bola de ouro Pra todo humilde vaqueiro, Que ganha do fazendeiro, Um belo chapéu de couro. Conduz aquele tesouro À noite, para o colchão; Para, na escuridão, Não ser roído do rato. Chapéu de couro, o retrato Do vaqueiro do sertão.
***
Vê-se o sertanejo moço Com três meses de casado; Antes de ir pro roçado, Da mulher, beija o pescoço. Ela lhe traz, no almoço, Uma bandeja de angu, A titela de um nhambu, Depois lhe abraça e suspira. O sertanejo admira As manhãs do Pajeú.
***
Mamãe que me dava papa Me dava pão e consolo Dava café, dava bolo Leite fervido e garapa Mas uma vez deu-me um tapa E depois se arrependeu Beijou aonde bateu Desmanchou a inchação “quem perdeu mãe tem razão De chorar porque perdeu”.
***
Dia 13 de março terça-feira Ano mil novecentos trinta e dois Pouco tempo depois que o sol se pôs Mamãe dava gemidos na esteira Numa casa de barro e de madeira Muito humilde coberta de capim Eu nasci pra viver sofrendo assim Minha dor vem dos tempos de menino Vivo triste por causa do destino E a saudade correndo atrás de mim.
***
Quando Deus, que é juiz pra todo jugo, Molha as terras sedentas e vermelhas, O corisco por cima abala as telhas, Cai a água, me molho e me enxugo. Vê-se um sapo escanchado num sabugo, Como um cabra remando uma canoa… Sai cortando as maretas da lagoa, Chega os braços parecem um cata-vento. Salta fogo das nuvens de momento, Cai a chuva na terra, o trovão zoa.
***
No sertão, todo dia, bem cedinho Vê-se um galo descendo do poleiro, Um cabrito berrando no chiqueiro, No terreiro, fuçando, um bacorinho. Um preá sai torcendo o seu focinho, Como um cego tocando realejo; Na cozinha, uma velha espreme o queijo, Um bezerro berrando no curral. O retrato do corpo natural É a veste do homem sertanejo.
***
Um ferreiro suado numa tenda, Agarrado no cabo da marreta, Consertando algum dente da carreta Que quebrou e precisa duma emenda; Um crioulo no pé duma moenda, Já um pouco queimado de aguardente; O bagaço espirrando pela frente E uma bica de caldo derramando, Um bueiro, mal feito, fumegando, Representa o sertão de antigamente.
***
O mar se orgulha por ser vigoroso, Forte, gigantesco que nada lhe imita Se ergue, se abaixa, se move, se agita, Parece um dragão feroz e raivoso. É verde, azulado, sereno, espumoso; Se espalha na terra, quer subir pro ar, Se sacode todo, querendo voar, Retumba, ribomba, peneira, balança, Nem sangra, nem seca, nem para, nem cansa, São esses fenômenos da beira do mar.
***
O próprio coqueiro se sente orgulhoso Porque nasce e cresce na beira da praia No tronco, a areia da cor de cambraia O caule enrugado, nervudo e fibroso Se o vento não sopra silencioso Nem sequer a fronde se vê balançar Porém, se o vento com força soprar A fronde estremece, perde toda a calma As folhas se agitam, tremem, batem palma Pedindo silencio na beira do mar.
***
Não há tempestades e nem furacões, Chuvada de pedra no bosque esquisito Quedas de coriscos e meteorito Tiros de granadas, obuses, canhões, Juntando os ribombos de muitos trovões Que tem pipocado na massa do ar Cascata rugindo, serra a desabar, Estrondo, ribombos, rumores de guerra, Nuvens mareantes, tremores de terra Que imitem a zoada na beira do mar.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 04 de maio de 2019
Gás sarin na estação Atentado às torres gêmeas Casamento entre fêmeas De Dalila a traição Caim que matou o irmão Hitler vil e sanguinário Propina em judiciário Fuzilamento de alguém Satanás quando não vem Ele manda o secretário.
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Zé Limeira glosando o mote
Escrevi o nome dela Com o leve do azul do céu.
A minha poica maluca Brigou com setenta burro, Deu cento e noventa murro Na cara de Zé de Duca. Dei-lhe um bufete na nuca Que derrubei seu chapéu… Vai chegando São Miguel Montado numa cadela… Escrevi o nome dela Com o leve do azul do céu.
Me chamo José Limeira, Cantador do meu sertão, O Sino de Salamão Tocando na laranjeira, Crepusco de fim-de-feira, Museu de São Rafael, O Juiz prendeu o réu, Dispois fechou a cancela… Escrevi o nome dela Com o leve do azul do céu.
Quando Abel matou Caim No Rio Grande do Sul, Deu-lhe um quilo de beiju Com as berada de capim. Nisso chegou São Joaquim Que já vinha do quartel Cumode prendê Abel, Dois pedaço de costela… Escrevi o nome dela Com o leve do azul do céu.
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Severino Feitosa glosando o mote:
Eu querendo também faço Igualzinho a Zé Limeira
Confúcio foi na Bahia Pai-de-Santo e curandeiro Anchieta era pedreiro No farol de Alexandria Hitler nasceu na Turquia Vendia manga na feira A Revolução Praieira Degolou Torquato Tasso Eu querendo também faço Igualzinho a Zé Limeira.
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Carlos Severiano Cavalcanti glosando o mote:
Devagar, como fogo de monturo, a saudade invadiu meu coração.
Na fazenda, nasci e me criei, peraltava e fazia escaramuça, morcegava, no campo, a besta ruça, jararaca até mesmo já matei. Não me lembro da vez em que acordei assombrado com tiros de trovão, pinotava da rede para o chão e saía correndo pelo escuro. Devagar, como fogo de monturo, a saudade invadiu meu coração.
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Louro Branco e Zé Cardoso glosando o mote:
Não existe mais respeito Nos namoros de hoje em dia.
Louro Branco:
Não existe mais respeito Nos namoros de hoje em dia Rapaz que tem companheira Não leva Salve Rainha Mas leva uma camisinha Escondida na carteira Tira a roupa da parceira Mama chega o peito esfria Chupa na língua macia Como quem chupa confeito Não existe mais respeito Nos namoros de hoje em dia.
Zé Cardoso:
Vi um casal na calçada Ela com ele abraçado Ele na boca colado Ela na língua enganchada Uma velha admirada Dizia: “Vixe Maria!” E com tristeza dizia: “Eu nunca fiz desse jeito” Não existe mais respeito Nos namoros de hoje em dia.
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Davi Calisto Neto glosando o mote
Pra que tanta ganância e correria Se ninguém veio aqui para ficar?
Se o final é normal pra que correr E se morrer é ruim mais é comum Se o caixão vai leva de um em um Se o dinheiro não pode socorrer… Eu só quero o bastante para comer Para viver para vesti e pra calçar Mesmo sendo pouquim se não faltar Eu só quero esse tanto todo dia Pra que tanta ganância e correria Se ninguém veio aqui para ficar?
Todo homem podendo tem que ter Moradia, saúde e alimento Um pouquinho também de investimento Que um dia ele pode adoecer Necessita também de algum lazer Para o corpo cansado descansar Mais tem gente que pensa em enricar Não descansa de noite nem de dia Pra que tanta ganância e correria Se ninguém veio aqui para ficar?
Pra que tanta ganância por poder Exibir a fortuna adquirida Se o que a gente ganhar durante a vida É preciso deixa quando morrer Se na cova não tem como caber E no caixão ninguém tem como levar Lá no céu não tem banco para guardar O que o morto juntou quando vivia Pra que tanta ganância e correria Se ninguém veio aqui para ficar?
Sei que a vida da gente se encerra E muita gente se esquece com certeza E é por isso pensando na riqueza Que alguns loucos estão fazendo guerra O pior é que brigam pela terra Para depois nela mesma se enterrar Toda essa riqueza vai ficar E só o corpo que vai para a terra fria Pra que tanta ganância e correria Se ninguém veio aqui para ficar?
Pra que tanta ganância e ambição Se essa vida é bastante passageira Tudo finda num monte de poeira Na mortalha, na cova e no caixão Ninguém pode pedir prorrogação Quando o jogo da vida terminar A não ser uma vela pra queimar O destino é partir de mãos vazia Pra que tanta ganância e correria Se ninguém veio aqui para ficar?
A ganância infeliz desenfreada Deixa o mundo sem paz e sem sossego Pois tem gente com mais de um emprego E muita gente morrendo sem ter nada Mais a vida da gente é emprestada E qualquer dia o seu dono vem buscar Qualquer vida que a morte carregar Ninguém pode tirar segunda via Pra que tanta ganância e correria Se ninguém veio aqui para ficar?
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 27 de abril de 2019
Pedro Bandeira e Manoel Xudu: dois grandes cantadores nordestinos
Pedro Bandeira
Colega Manoel Xudu Abra o palco da cortina, Se firme bem na cadeira Erga o peito e se previna, E diga como deixou A cidade de Carpina.
Manoel Xudu
Vai bem minha Planaltina De poetas um viveiro, Situada entre Paudalho Nazaré e Limoeiro, E agora mandou seu vate Vir visitar Juazeiro.
Pedro Bandeira
Mas você não é romeiro Nem comprador de pequi, Nem carola nem turista Ninguém lhe esperava aqui, Sem eu lhe dar carta branca Pra entrar no Cariri.
Manoel Xudu
Eu vim porque conheci Que havia necessidade, De conhecer os colegas Que moram nessa cidade, E saber se o novo príncipe Tem ou não autoridade.
Pedro Bandeira
Saiba que sou majestade No reinado poesia, Você pra cantar comigo Precisa ter fidalguia, Nobreza, brio e respeito Honra e aristocracia.
Manoel Xudu
Há tempo que conhecia A fama do meu amigo, Porém eu sou dos poetas Que nunca teme perigo, Só digo que um cabra canta Depois que cantar comigo.
Pedro Bandeira
Você está no meu abrigo Se não quiser passar fome, Respeite meu auditório Meu cetro e meu cognome, Minha esposa e minha filha Minha plateia e meu nome.
Manoel Xudu
Acho bom que você tome O conselho que lhe dou, Estou no seu auditório Mas seu escravo não sou, Penetre em qualquer terreno Que se eu puder também vou.
Pedro Bandeira
O sangue do meu avô No meu sangue inda evapora, Me dando ideia e talento Entusiasmo e sonora, Pra rebater desaforo De repentista de fora.
Manoel Xudu
Com sua proposta agora, Sei que o jeito que tem, É eu lhe dar um acocho Dos ossos virar xerém, Que canto a vinte e dois anos E nunca perdi pra ninguém.
Pedro Bandeira
Eu nunca perdi também E agora vou lhe provar, Que daqui a meia hora Você começa a chorar, Troca a viola em cachaça E nunca mais fala em cantar.
Manoel Xudu
É mais fácil se esgotar O mar com uma peneira, Bala de aço esmagar-se Em tronco de bananeira, Do que Manoel Xudu Temer a Pedro Bandeira.
Pedro Bandeira
É mais fácil uma caveira Ter nojo dum urubu, Uma cobra de veado Se assombrar com um cururu, Do que o príncipe dos versos Respeitar Manoel Xudu.
Manoel Xudu
É mais fácil um canguçu Correr com medo dum bode, Menino enjeitar bolacha Moleque enjeitar pagode Do que eu correr com medo Dum cantador sem bigode.
Pedro Bandeira
Nós sabemos que Deus pode Manobrar tudo que é seu, Transformar o gelo em fogo Ressuscitar quem morreu, Não pode é criar poeta Pra cantar mais do que eu.
Manoel Xudu
Mas agora apareceu Miguel Alencar Furtado, Que é Juiz e deu um tema Muito bem metrificado, E vamos saber do tema Quem canta mais inspirado.
* * *
Mote:
Vi a noite enlutando o horizonte, Com saudade do dia que morreu.
Pedro Bandeira
Cinco e meio da tarde mais ou menos Resolvi vê de Deus os espetáculos, Transportei-me das baixas aos pináculos Pra poder me inspirar olhando Vênus, Comecei vislumbrar astros pequenos O Cruzeiro do Sul resplandeceu, Quando o rosto da lua apareceu Eu estava na crista de um monte, Vi à noite enlutando o horizonte Com saudade do dia que morreu.
Manoel Xudu
Quando o sino tocava Ave–Maria E o sol se escondia no ocaso, De um voo transportei-me ao Parnaso Num balão que eu fiz de poesia, Uma estrela brilhava o sol morria E a natura chegava ao apogeu, Tive sede e um querubim me deu Água pura tirada duma fonte, Vi à noite enlutando o horizonte Com saudade do dia que morreu.
Pedro Bandeira
Contemplei azul além do mar Vi a treva envolvendo as ondas pardas, As libélulas pousaram nas mostardas E agripinas saíram do pomar, Escutei uma musa solfejar Uma musica crida por Orfeu, Estendi-me nos braços de Morfeu Reclinei no seu busto a minha fronte, Vi à noite enlutando o horizonte Com saudade do dia que morreu.
Manoel Xudu
Eu também me achava esmorecido Numa tarde perdido no deserto, Sem achar um amigo ali por perto Que indicasse por onde eu tinha ido, Quando o bravo leão deu um rugido Que o bosque da serra estremeceu, Mas o manto de Deus se estendeu Parecendo a varanda de uma ponte, Vi à noite enlutando o horizonte Com saudade do dia que morreu.
* * *
Pedro Bandeira
Atendi ao pedido do Juiz Mas a nossa polêmica continua, Pra você minha volta vai ser crua Encomende-se a Deus pra ser feliz, Se é mesmo um poeta como diz Mostre aqui sua personalidade, Se vier com mentira e vaidade Entra grande na luta e sai pequeno, Nunca mais quer entrar no meu terreno Sem primeiro pedir-me a liberdade.
Manoel Xudu
Eu não vim procurar inimizade Com você seus irmãos e outros mais, Mas se quer destruir o meu cartaz É perdida de vez sua vontade, Com poeta de toda qualidade No Nordeste eu tenho combatido, No Brasil o meu nome é conhecido Desde o Norte ao Sul Leste e Oeste, Quem meter-se comigo a fazer teste Leva pau perde o jeito e sai vencido.
Pedro Bandeira
Vou coser sua boca e um ouvido Dou-lhe um murro na cara estoura os pés, Cantador do seu jeito eu dou em dez Só enquanto mamãe troca um vestido, Fuxiqueiro insultante e desconhecido Atrasado sem luz e sem valor, Decoreba perverso e traidor Beberrão de latada e pé de serra, Volte e digas chorando em sua terra Que agora encontrou superior.
Manoel Xudu
Repentista se enche de pavor Quando ouve meu verso e meu baião, Sente logo tremer o coração Gela o sangue, o rosto muda a cor, Em martelo eu sou raio abrasador Cantador sendo fraco eu dou em cem, A pancada que dou é como o trem Um gigante pra mim inda é pequeno, Cascavel que eu pegar perde o veneno Só me curvo a Deus e a mais ninguém.
Pedro Bandeira
Otacílio Batista canta bem Lourival é o rei do trocadilho, Zé Faustino morreu deixou seu filho Clodomiro não perde pra ninguém, Dr. Dimas um título também tem Pinto velho é o rei do Pajeú, Louro Branco e Moacir no Iguatu Os Irmãos Bernardino se deleitam, Todos esses poetas me respeitam Quanto mais uma égua como tu.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 13 de abril de 2019
Cantoria de improviso com os poetas repentistas Moacir Laurentino e Sebastião da Silva
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O CASAMENTO DOS VELHOS – Louro Branco
Tem certas coisas no mundo Que eu morro e num acredito Mas essa eu conto de certo Dum casamento bonito De um viúvo e uma viúva Bodoquinha Papaúva E Tributino Sibito.
O véio de oitenta ano Virado num estopô A véia setenta e nove Maluca por um amor Os dois atrás de esquentar Começaram a namorar Porque um doido ajeitou.
Um dia o véio comprou Um corpete pra Bodoquinha Quando a véia foi vestir Nem deu certo, coitadinha De raiva quase se lasca Que o corpete tinha as casca Mas os miolo num tinha.
No dia três de abril Vêi o tocador Zé Bento Mataram trinta preá Selaram oitenta jumento Tributino e Bodoquinha Sairam de manhazinha Pra cuidar do casamento.
O veião saiu vexado Foi se arranchar na cidade Mandaram chamar depressa Naquela oportunidade O veião chegou de choto Inda deu catorze arroto Que quase embebeda o padre.
O padre ai perguntô: Seu Tributino, o que pensa, Quer receber Bodoquinha Sua esposa, pela crença? O veião dixe: eu aceito Tô tão vexado dum jeito Chega tô sem paciência.
E perguntô a Bodoquinha: Se aceitar esclareça A véia lhe arrespondeu Dando um jeitim na cabeça Aceito de coração Tô cum tanta precisão Tô doida que já anoiteça.
Casaram, foram pra casa Comeram de fazer medo Conversaram duas horas Uns assuntos duns segredo E Bodoquinha dixe: agora, Meu pessoá, vão embora Que eu quero drumi mais cedo.
O véi vestiu um pijama Ficou vê uma raposa A véia de camisola Dixe: óia aqui sua esposa Cuma é, vai ou num vai? O veião dixe: ai, ai, ai Já tá me dando umas coisa.
A véia dixe me arroche Cuma se novo nóis fosse O véio dixe: ê minha véia Acabou-se o que era doce A véia dixe: é assim? Então se vai dar certim Que aqui também apagou-se.
Inda tomaram uns remédio Mas num deu jeito ao enguiço De noite a véia dizia: Mas meu véi, que diabo é isso? Vamo vendê essa cama Nóis sempre demo na lama Ninguém precisa mais disso.
A véia dixe: isso é triste Mas esse assunto eu esbarro Eu já bati o motor Meu véi estrompou o carro Ê, meu veião Tributino Nóis dois só tem um menino Se a gente fizer de barro.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 06 de abril de 2019
Oliveira de Panelas, grande poeta cantador pernambucano da atualidade
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Oliveira de Panelas glosando o mote:
Na porta do cu do dono
Essa rôla antigamente Vivia caçando briga Furando pé de barriga Doidinha pra fazer gente Mas hoje tá diferente No mais profundo abandono Dormindo um eterno sono Não quer mais saber de nada Com a cabeça encostada Na porta do cu do dono.
Já fez muita estripulia Firme que só bambu Mais parecia um tatu Fuçava depois cuspia Reinava na putaria O priquito era seu trono Trepava sem sentir sono E sem precisar de escada Mas hoje vive enfadada Na porta do cu do dono.
Nunca mais desvirginou Uma mata vaginosa Há muito tempo não goza A noite de gala passou Vive cheia de pudor Sonolenta e sem abono Faz da ceroula um quimono E da cueca uma estufa Vive hoje à cheirar bufa Na porta do cu do dono.
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Carlos Severiano Cavalcanti glosando o mote:
Eu plantei em janeiro o meu roçado, mas a chuva faltou, fiquei sem nada.
Fui ao silo e tirei toda a semente que restava guardada há mais de um ano e saí a plantar em solo plano na esperança de inverno consistente. O trovão ribombou e de repente envolvi-me no som da trovoada. O riacho rosnando na enxurrada, o meu milho pouquinho semeado. Eu plantei em janeiro o meu roçado, mas a chuva faltou, fiquei sem nada.
Trinta dias depois da plantação eu gostava de ver meu milharal verdejante, brilhando, colossal, alegrando meu frágil coração. Fiz a limpa primeira na intenção de arrancar todo o mato usando a enxada, começava a limpar de madrugada sem contudo sentir-me mais cansado. Eu plantei em janeiro o meu roçado, mas a chuva faltou, fiquei sem nada.
O pendão começou a tremular, quando o sol assumiu a dianteira, a trocar chão molhado por poeira, a neblina deixou de borrifar, a lavoura teimava em não murchar, mas a haste do milho, já envergada pendurava a boneca atrofiada enquanto eu contemplava amargurado. Eu plantei em janeiro o meu roçado, mas a chuva faltou, fiquei sem nada.
Perdi tudo o que tinha de semente, não deixei transformá-la no cuscuz, carreguei cabisbaixo a minha cruz, enfrentei a dureza do sol quente, vejo agora o sofrer da minha gente sem destino na terra desolada, transeunte nas margens de uma estrada indo à toa, sem rumo, em qualquer lado. Eu plantei em janeiro o meu roçado, mas a chuva faltou, fiquei sem nada.
Vejo a barra ao quebrar e fico atento, para ver se a invernada inda retorna, entretanto, a manhã já nasce morna, o que traz para mim um desalento, desespero ante a dor desse momento, minha casa sem luz, vive apagada, o sertão vendo a flora incinerada, o seu povo sem rumo e flagelado. Eu plantei em janeiro o meu roçado, mas a chuva faltou, fiquei sem nada.
Já não ouço o cantar dos rouxinóis, não escuto o arrulhar das juritis, raramente ouço poucos bem-te-vis, saltitantes nos galhos do cipós. No horizonte tem mais pores de sóis inundando de luz toda a chapada, a paisagem cinérea iluminada quando a lua esparrama o seu dourado. Eu plantei em janeiro o meu roçado, mas a chuva faltou, fiquei sem nada.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 30 de março de 2019
João de Barro bem alto faz seu ninho Preparando de argila uma argamassa Com as asas e os pés o barro amassa E a colher de pedreiro é seu biquinho Quem teria ensinado ao passarinho Construção de tão sólida firmeza? Que lhe serve de abrigo e de defesa Contra o sol, contra a chuva e contra tudo Pequenino arquiteto sem estudo Quanto é grande e formosa a natureza!
Beija-Flor:
O homem fez um motor Um rádio e televisão Fabricou um avião Obra de tanto valor O homem fez um motor Pra correr nas profundezas Fez uma cama e um mesa Um revólver e um faca Morre e não faz uma jaca Que é fruto da natureza.
Sebastião Dias:
Se a gente for corrigir A vida de outro alguém Até dentro da família Muita diferença tem Porque a mãe de um padre É mãe de um ladrão também .
Lourival Batista, o Louro do Pajeú (1915-1992)
Lourival Batista:
Mulher até trinta anos é fogo que queima e rende; de trinta até os cinqüenta, o fogo ainda se estende; e dos sessenta pra frente, ai-ai, ui-ui, tem fogão, mas não acende.
Louro Branco:
Acho bonito o inverno Quando o rio está de nado Que um sapo faz oi aqui Outro,oi do outro lado Parece dois cantadores Cantando mourão voltado.
Eliseu Ventania:
Pelo inverno, quando é de madrugada A passarada dá sinal que o dia vem Rio correndo, mato verde, açude cheio, Naquele meio, todo mundo vive bem. O sertanejo trabalhando em seu roçado Muito animado com o ronco do trovão. A meninada toma banho na lagoa, Oh! Quanto é boa nossa vida no sertão.
João Paraibano:
Faço da minha esperança Arma pra sobreviver Até desengano eu planto Pensando que vai nascer E rego com as próprias lágrimas Pra ilusão não morrer.
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Coruja dá gargalhada Na casa que não tem dono A borboleta azulada Da cor de um papel carbono Faz ventilador das asas Pra rosa pegar no sono.
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A juventude não dá Direito a segunda via Jesus pintou meus cabelos No final da boemia Mas na hora de pintar Esqueceu de perguntar Qual era a cor que eu queria.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas domingo, 24 de março de 2019
João Paraibano e Severino Feitosa glosando o mote:
Não conheço político que não mude, quando pega nas rédeas do poder.
João Paraibano:
Vem um tema do nosso José Costa, seu pedido está mais do que bem feito, disse a mim que o político quando eleito, vai fazer só as coisas que ele gosta, quem escreve pra ele, é sem resposta, que ao invés de ajudar, faz esquecer, no começo foi tanto prometer, mas depois vai faltando a virtude. Não conheço político que não mude, quando pega nas rédeas do poder.
Severino Feitosa:
O político que ganha a preferência, se elege com o voto do povão, o transporte que usa é avião, e o espaço é a sua residência, esquecendo até da presidência, nem ligando se o povo vai sofrer, inda manda um ministro esconder todas as verbas pra área de saúde. Não conheço político que não mude, quando pega nas rédeas do poder.
João Paraibano:
Se viu Lula pregando pelas ruas, prometendo enricar trabalhador, falou tanto do seu antecessor, garantindo impedir as falcatruas, para 20 viagens, faltam duas, e a pobreza é quem paga sem querer, tanta gente sem ter o que comer, precisando que o mesmo lhe ajude. Não conheço político que não mude, quando pega nas rédeas do poder.
Severino Feitosa:
No início ele é muito valente, não tolera receita e desacato, vai na frente demais do sindicato, pra poder defender a nossa gente, veja aí esse nosso presidente, que lutou muitas vezes pra vencer, mas agora só pensa em esquecer que já foi um torneiro “chei” de grude. Não conheço político que não mude, quando pega nas rédeas do poder.
João Paraibano:
Quem não lembra de Lula em Caetés, um torneiro mecânico em São Bernardo, convidava a ajudar levar o fardo desse povo que está andando a pés, Lula fez de viagem mais de dez, num jatinho a subir e a descer e a pobreza deixando a padecer, sem poder residir na terra rude. Não conheço político que não mude, quando pega nas rédeas do poder.
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DOCUMENTÁRIO: LITERATURA DE CORDEL
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 16 de março de 2019
Quem quiser ter saudade do meu tanto Sofra e ame do tanto que eu amei.
Moacir Laurentino:
Numa noite de insônia e de saudade a angustia invadiu meu coração. Eu senti a maior recordação dos amores da minha mocidade lamentei suspirei senti vontade de beijar a mulher com quem sonhei mas sem esse direito eu já fiquei e nem ela possui o mesmo encanto quem quiser ter saudade do meu tanto sofra e ame do tanto que eu amei.
Sebastião da Silva:
Quem me fez padecer tanta ilusão deixou todos meus sonhos destruídos o murmúrio do adeus nos meus ouvidos e a tristeza rasgando o coração. Já tentei esquecer mais foi em vão só eu sei quantas vezes já chorei já gastei todos lenços que comprei ensopados das gotas dos meus prantos quem quiser ter saudade do meu tanto sofra e ame do tanto que eu amei.
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Mote:
Vamos ver quem possui capacidade Pra ganhar o Nobel da Cantoria.
Ivanildo Vilanova:
Nobel foi o inventor da dinamite Criador de um prêmio especifico Deu progresso ao projeto cientifico Onde a nossa ciência tem limite Hoje em dia se atende o seu convite Sem os louros da sua academia Mas se o Deus que inspirou barra do dia Não conhece liceu nem faculdade Vamos ver quem possui capacidade Pra ganhar o Nobel da Cantoria.
Severino Ferreira:
Vamos ver quem conhece aonde é O país dos Assírios e Caldeus Jafetanis, Fenícios, Cananeus Descendentes da raça de Noé E qual foi o motivo que José Se tornou o esposo de Maria Ela teve Jesus na estrebaria E não perdeu o valor da virgindade Vamos ver quem possui capacidade Pra ganhar o Nobel da Cantoria.
Ivanildo Vilanova:
Pra ganhar o Nobel só é preciso Conhecer de sentido e odalinfa Ser parente da paz, irmão da ninfa Ser parente do amor, irmão do riso É tirar oito e meio em improviso Tirar nove em métrica e harmonia Nove e meio em repente e teoria Tirar dez na escola da saudade Vamos ver quem possui capacidade Pra ganhar o Nobel da Cantoria.
Severino Ferreira:
Vamos ver quem possui inteligência Pra lembrar Tiradentes, o mineiro Que foi preso no Rio de Janeiro Por um povo de pouca consciência Que D. Pedro gritou: “Independência” Que o mundo esperava e pretendia Qual o mês, a semana, hora e o dia Que a princesa assinou a liberdade Vamos ver quem possui capacidade Pra ganhar o Nobel da Cantoria.
Ivanildo Vilanova:
Vamos ver quem possui perspectiva Pra falar sobre monte, terra e gleba Pra falar sobre a vida de algum peba Arrancando as raízes da maniva E a gata que está receptiva Quer um gato pra sua companhia Quanto mais ela arranha, morde e mia Mas o gato ansioso tem vontade Vamos ver quem possui capacidade Pra ganhar o Nobel da Cantoria.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 09 de março de 2019
A noite parindo o dia Não tem parto mais bonito Parece que a mão de Deus Sem provocar dor nem grito Arranca o sol todo dia Do ventre do infinito
Quando o sol aquece a terra Pendura o seu agasalho O pranto da noite seca A última gota de orvalho Parece um pingo de prata Preso na ponta de um galho
A música maravilhosa Se ouve da passarada A lua tão meiga e pura Se esconde encabulada Com beijo ardente do sol Ruborizando a alvorada
A noite negra recua Sabendo que o dia veio O pagão chora no berço A mãe coloca no seio Jesus pinta o céu de azul Pra o sol passar pelo meio
A abelha traz mais flores Néctar na ponta da asa A cabôca acende o fogo E bota a chaleira na brasa E a fumaça espalha o cheiro De café torrado em casa.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas quarta, 06 de março de 2019
SONETO PRINCIPALMENTE DO CARNAVAL (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)
Severino Lourenço da Silva Pinto, o Pinto do Monteiro (1895-1990)
Improvisos de Pinto do Monteiro, a Cascaval do Repente, em cantorias diversas
Ninguém deve ignorar Porque Pinto do Monteiro Largou de mão a viola E passou a usar pandeiro O volume é mais menor E o pacote mais maneiro.
Eu admiro o tatu Com desenho no espinhaço, Que a natureza fez Sem ter régua, nem compasso Eu tenho compasso e régua, Pelejo, porém, não faço.
Sua terra é muito ruim Só dá quipá e urtiga Planta milho, o milho nasce Não cresce nem bota espiga De legume de caroço Só dá sarampo e bexiga.
Homem deixe de história Que se eu for ao Pajeú, Dou em Jó e dou em Louro, Em Zé Catota e em tu, E fico no meio da rua, Cantando e dançando nu.
Em dezembro, começa a trovoada, Em janeiro, o inverno principia, Dão início a pegar a vacaria: Haja leite, haja queijo, haja coalhada! Em setembro, começa a vaquejada: É aboio, é carreira, é queda, é grito! Berra o bode, a cabra e o cabrito; A galinha ciscando no quintal, O vaqueiro aboiando no curral; Nunca vi um cinema tão bonito!
Esta palavra saudade Conheço desde criança Saudade de amor ausente Não é saudade, é lembrança Saudade só é saudade Quando morre a esperança.
Saudade é tudo e é nada Saudade é como o perfume Eu só comparo a saudade Com o peso do ciúme Que a gente carrega o fardo Mas não conhece o volume.
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No vídeo abaixo, Severino Pinto e Lourival Batista cantando de improviso o gênero Meia Quadra.
Constante da Coleção Música Popular do Nordeste, com 4 discos, lançada em 1972.
A abertura da cantoria é feita por Lourival.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 23 de fevereiro de 2019
Pedro Malta, pesquisador da cultura popular nordestina
A grande dupla Ivanildo Vilanova e Valdir Teles numa cantoria em Fortaleza-CE
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Valdir Teles e Ivanildo Vilanova glosando o mote:
Não conheço esquerdista que não mude, quando pega nas rédeas do poder.
Valdir Teles
Logo após ser eleito está mudado, cada um tem direito a secretária, segurança, assessor, estagiária, gabinete com ar condicionado, vai lembrar-se do proletariado, com favela e cortiço pra viver, ou será que não vai se aborrecer, com esgoto, favela, lodo e grude. Não conheço esquerdista que não mude, quando pega nas rédeas do poder.
Ivanildo Vilanova
Pode ser um sujeito agitador, boia-fria, sem terra, piqueteiro, camarada, comuna, companheiro, se um dia tornar-se senador, vindo até se eleger governador, qual será o seu novo proceder, vai mudar, vai mentir ou vai manter as promessas que fez de forma rude. Não conheço esquerdista que não mude, quando pega nas rédeas do poder.
Valdir Teles
No período que um adolescente, quer mudar o planeta e o país, através dos arroubos juvenis, vira líder, orador e dirigente, mas se um dia ele sair presidente, o que foi nunca mais poderá ser, aí diz que o remédio é esquecer as loucuras que fez na juventude. Não conheço esquerdista que não mude, quando pega nas rédeas do poder.
Ivanildo Vilanova
Todo jovem, a princípio é sectário, atuante, grevista, condutor, antagônico, exaltado, pregador, um perfeito revolucionário, cresce, casa e se torna secretário, veja aí o que trata de fazer, leva logo a família a conhecer Disneylândia, Washington e Hollywood. Não conheço esquerdista que não mude, quando pega nas rédeas do poder.
Valdir Teles
Quem vivia de luta e de vigília, invasão, pichamento e barricada, através disso aí fez a escada, pra chegar aos tapetes de Brasília, vai pensar no progresso da família, no que faz pra do posto não descer, nunca falta quem queira se vender, sempre acha covarde que lhe ajude. Não conheço esquerdista que não mude, quando pega nas rédeas do poder.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 16 de fevereiro de 2019
Pedro Malta, pesquisador da cultura popular nordestina
De um lado a dor e a fome Percorrendo na artéria. Um guri sem sobrenome, No apogeu da miséria. Do outro lado, os verdugos, Tratando como refugos Quem vive na letargia… É triste ver meu pais Gratificando juiz Com auxilio moradia.
Hélio Crisanto
O Nordeste tem sido a grande escola Dos maiores poetas cantadores Sustentáculos e eternos defensores Da origem maior que nos consola Inspirados no ritmo da viola Nos acordes de arame na madeira Cantam de improviso a vida inteira E o que cantam somente Deus ensina Venham ver a viola nordestina Defendendo a cultura brasileira.
Sebastião da Silva
Eu não estava dormindo Apenas dei um cochilo Sonhei que estava pescando Nas águas do rio Nilo Pescando cada traíra Que a cabeça dava um quilo.
Zé Bernardino do Pajeú
Doutor de cara fechada Sem conhecer o caminho Pergunta pra um garotinho Descalço, roupa rasgada Me responda se esta estrada É a que vai pra Orós? Raciocínio veloz Diz a criança ao doutor Num sei não, mas se ela for Vai fazer falta pra nós.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 09 de fevereiro de 2019
Todo dia me sento meia hora No batente da casa da saudade.
No lugar que nasci e fui criado, Todo dia a saudade me aperta, Bate forte em meu peito e me alerta Pra lembrar bons momentos do passado, Tiro um tempo para ficar sentado Meditando com mais profundidade, Confiante sentindo-me à vontade Vendo o mundo, a paisagem, fauna e flora. Todo dia me sento meia hora No batente da casa da saudade.
Toda vez que visito o meu sertão, Passo uns dias na casa dos meus pais, A saudade que sinto dói demais Que não cabe dentro do coração, Tenho viva toda recordação De papai na nossa propriedade, Que partiu para outra eternidade, Não está entre nós e foi-se embora. Todo dia me sento meia hora No batente da casa da saudade.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 05 de janeiro de 2019
QUATRO MOTES NORDESTINADOS
QUATRO MOTES NORDESTINADOS
José de Sousa Dantas glosando o mote:
Vejo o corpo da terra se queimando na fogueira da seca nordestina
O barreiro tá seco esturricado não tem água no açude e na barragem só tem nuvem cinzenta de estiagem todo eito do campo está pelado não existe alimento para o gado o cinzeiro no espaço faz cortina foram embora meus galos de campina e os que ficam não estão cantarolando Vejo o corpo da terra se queimando na fogueira da seca nordestina.
Falta rama no pé de juazeiro não tem pasto na roça e no baixio na vazante do açude e nem do rio não tem sombra de angico e de pereiro já morreram mofumbo e marmeleiro é preciso a intercessão divina para a chuva molhar toda campina ninguém sabe, só Deus quem sabe quando! Vejo o corpo da terra se queimando na fogueira da seca nordestina.
* * *
Carlos Aires glosando o mote:
Se hoje vivo morando na cidade Não me esqueço da vida no sertão
As cidades são belas, e eu não nego Lindas praças com ruas e avenidas Clubes festas e coisas divertidas Mas, aqui vivo triste e não sossego Essa dor que no peito hoje carrego Bate forte e machuca o coração Traficante, bandido e ladrão Vive solto e eu preso atrás da grade Se hoje vivo morando na cidade Não me esqueço da vida no sertão
Sempre lembro das coisas lá da roça A casinha singela que eu morava Tinha portas, porém não precisava De fechá-las porque a gente nossa Mesmo pobre abrigada numa choça Enfrentando a pobreza e a sequidão É incapaz de fazer uma invasão Pois respeita a nossa privacidade Se hoje vivo morando na cidade Não me esqueço da vida no sertão
Eu aqui tenho a casa arrumada Com estante, sofá, televisor Quando escrevo é num computador Confortável é cama arrumada Não me esqueço do cabo da enxada Do machado, da foice, do facão Nem da vida na minha região Que eu vivia em plena liberdade Se hoje vivo morando na cidade Não me esqueço da vida no sertão
O conforto é bom e necessário E a cidade isso tudo oferece Quem viveu lá na roça não esquece O lugar que nasceu mesmo precário Empregado eu virei um operário Vivo sempre às ordens do patrão Recordando do gado e do alazão E assim vou vivendo de saudade Se hoje vivo morando na cidade Não me esqueço da vida no sertão
* * *
Alexandre Morais glosando o mote:
O caçote lambe o chão Da cacimba que secou.
Quando a seca se espalha Na paisagem sertaneja Um bode triste bodeja Pois o berro é sua fala Quem pudesse transformá-la Nos dizia: – ele berrou Dizendo a vida mostrou Que quando as águas se vão O caçote lambe o chão Da cacimba que secou
A campesina serena Volta cedo do roçado Expondo o corpo suado Que o sol ressecou sem pena Nasceu branca, tá morena E com jeito que gostou Diz o que alguém ensinou Aqui no nosso torrão O caçote lambe o chão Da cacimba que secou.
Uma abelha voa perdida Em busca de água e flor Toda folha perde a cor Gafanhoto perde a vida Uma vaca recém parida Do vivente que gerou Lambe o beiço, diz eu dou Com saliva a salvação E o caçote lambe o chão Da cacimba que secou.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 29 de dezembro de 2018
CANTADORES POPULARES - 12
CANTADORES E POETAS POPULARES (12)
Respeitada a ortografia da época
Germano da Lagôa
DO CÉO TERÁS O CASTIGO
Agora ficou provado Que procedes de Caim; Nunca vi um tronco ruim Dar um fructo apreciado. Tens um instincto malvado. Do direito és inimigo Eu em verdade te digo Que o diabo é teu socio; Tú com Deus não tens negocio; Do Céo terás o castigo!
Alma que o diabo engeitou, Lingua que a terra não come; Maldicto seja o teu nome; Na terra que te criou, O diabo te atentou, Tomaste elle por amigo; Eu te renego e maldigo! Coração vil e tyranno, Se permaneces no engano, Do Céo terás o castigo!
***
O VIGÁRIO DO TEIXEIRA
Não deve ser maltratado Quem tem bom procedimento, Quem desde o seu nascimento E’ do povo apreciado; Só tú o tens aggravado Com tua lingua grosseira; Abandona essa carreira Que tú mesmo comprehendes Que és malvado se offendes Ao vigário do Teixeira.
Raça de animal amphibio. Conhecido cangaceiro, Assassino e desordeiro, Coração perverso e tibio, Falla de um de teu calibio; Que tenha a tua maneira; Tua lingua traiçoeira Até aos santos maltrata, Somente tu achas falta No vigário do Teixeira.
Caçando nos quatro ventos Que comprehendem o Brasil, Não ha animal tão vil Que tenha os teus pensamentos, Que são mais sanguinolentos Do que a cobra mordedeira. Aranha caranguejeira, Coração de iniquidade, Abusaste da bondade Do vigário do Teixeira.
Pedro Fernando Malta - Repentes, Motes e Glosas sábado, 22 de dezembro de 2018
DEZ MESTRES DO IMPROVISO
DEZ MESTRES DO IMPROVISO E UM FOLHETO DE GRACEJO
O grande cantador repentista João Paraibanno (1952-2014)
João Paraibano
Toda noite quando deito um pesadelo me abraça meu cabelo que era preto está da cor da fumaça ficou branco após os trinta eu não quis gastar com tinta o tempo pintou de graça.
Quando o dia começa a clarear Um cigano se benze e deixa o rancho A rolinha se coça num garrancho Convidando um parceiro pra voar Um bezerro cansado de mamar Deita o queixo por cima de uma mão A toalha do vento enxuga o chão Vagalume desliga a bateria Das carícias da noite nasce o dia Aquecendo os mocambos do sertão.
Me lembro da minha mãe Dentro do quarto inquieta Passando o dedo com papa Nessa boca analfabeta Sem saber que um dedo rude Tava criando um poeta.
* * *
Rogaciano Leite
Eu nasci lá num recanto Do sertão que amo tanto Onde o céu desdobra o manto Feitos de rendas de anil Onde o firmamento extenso É um grande espelho suspenso Refletindo o rosto imenso Da minha pátria o Brasil.
* * *
Rena Bezerra
Lembro bem do meus banhos no riacho De fazer arapuca lá na mata Tomar banho escondido na cascata E descer ribanceira mundo abaixo. De subir no coqueiro e tirar cacho No curral tomar leite sem ter nata Ver os pássaros conduzindo uma cantata E eu ficar lhes ouvindo bem contente, Se o passado voltasse pro presente Mataria a saudade que nos mata.
* * *
Henrique Brandão
Um aboio penoso do vaqueiro Um cavalo relincha no roçado A cancela, por onde passa o gado A cafofa do pé de umbuzeiro Um boi “brabo” cair no formigueiro A cacimba na foz do ribeirão O cuscuz, carne assada e o pirão Um menino dizendo poesia Uma porca fuçando a lama fria Tudo isso são coisas do sertão.
Vaquejada, reisado e cantoria Uma roça com milho pendoando Um cigarro de palha, vez em quando No programa de rádio, cantoria A cigarra tocando a melodia Um jumento deitado no oitão Um sela, perneira e um gibão Às seis horas louvar Nossa Senhora Logo a lua se “amostra” sem demora Tudo isso são coisa do sertão.
* * *
Otacílio Batista
Minha mãe me criou dentro do mar Com o leite do peito de baleia Me casei no oceano com a sereia Que me fez repentista popular Canto as noites famosas de luar E linguagem das brisas tropicais Entre abraços e beijos sensuais Nos embalos das ondas seculares Conquistei a rainha mãe dos mares E o que é que me falta fazer mais?
* * *
Zé de Cazuza
O pobre do retirante Viaja sem rumo certo Quando está fatigado Acha um juazeiro perto Parecendo um guarda-chuva Que Deus armou no deserto.
* * *
Guaipuan Vieira
É bem feliz quem escreve E vê sua obra estudada É imortal quem tem vida Vida diversificada Já conquistou sua glória Prá no céu fazer morada.
* * *
Joaquim Venceslau Jaqueira
Eu andei de déo em déo E desci de gáio em gáio Jota a-já, queira ou não queira. Eu não gosto é de trabaio, Por três coisa eu sou perdido: Muiê, cavalo e baraio!…
* * *
Inacio da Catingueira
Há dez coisas neste mundo Que toda gente procura: É dinheiro e é bondade, Água fria e formosura, Cavalo bom e mulé, Requeijão com rapadura, Morá sem sê agregado, Comê carne com gordura.
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Bob Motta
Nem ostra, nem catuaba, nem caldo de tubarão, culhão de touro ou pirão, nem mesmo, uma caldeirada; vai levantar a “finada”, que vive olhando p’ro chão. Nem pentelho de barrão, lhe digo, na minha verve; isso de nada lhe serve, quando se acaba o tesão